JigCU – Junho – Parte 2

SOMIR

Apesar de morar no interior, eu posso dizer com orgulho que minha exposição à música sertaneja foi muito baixa até hoje. Até hoje eu só sei com certeza que existem umas três duplas, Zezé di Camargo & Luciano, Leandro & Leonardo (quase certeza que um deles morreu) e os meus escolhidos de hoje: Chitãozinho & Xororó. Se é pra ser raiz, vamos ser raiz.

Mas temos um problema: eles são tão raiz, mas tão raiz… que demoraram décadas antes de começar a fazer clipes. A maioria dos sucessos antigos só tem versões filmadas em programas de TV antigos (naquele tempo nem se filmava show…). O primeiro clipe que eu consigo achar de verdade é o de quando foram contratados por uma gravadora grande, lá pelo final dos anos 80. E é com ele que começamos:

Chitãozinho & Xororó – Página Virada


Gravadoras não confiavam muito em clipes naqueles tempos. A MTV brasileira ainda não havia sequer estreado, e mesmo que tivesse, jamais passaria esse clipe. Sobra uma dúvida honesta sobre quem assistiria esse material. Então, os 20 cruzados gastos aqui com a produção toda podem ser considerados até um exagero…

O clipe começa com um clima bem rural, afinal, naquele tempo música sertaneja era coisa de caipira e não de modelos de Instragram em perpétuo estado de embriaguez. Não era sobre lacração e entrevistas sobre sexo anal (Sandy, uma pioneira!), era sobre a boa e velha lamúria do homem do campo: ser corneado. A música sertaneja verdadeira não perde seu tempo com baladas e bebidas, vai direto no cerne do sofrimento humano. Bons tempos que não voltam mais.

Depois de algumas cenas de estabelecimento, com uma maria fumaça, uma casa bizarra e pessoas a cavalo, a câmera se move para mostrar a dupla, dois desocupados encostados numa cerca. A música até o momento é uma cacofonia de instrumentos e elementos desconectados com o sertanejo, mas isso é previsível: acabaram de ser contratados pela Polygram, e a gravadora estrangeira deve ter colocado todos seus engenheiros de som trabalhando em hora extra para tentar tornar o som mais comercial. Ledo engano: assim que os dois abrem o bico, estamos de volta ao campo, sentido o cheiro da bosta fresca.

Os dois exibem seus mullets clássicos, uma mistura profana de cabelo curto com comprido que em tese seria seriedade na frente com “festa no quintal”. Mas que só parece que seus cabelos foram feitos por um gato gigante na prática. Gato que deve ter sido o figurinista também, porque as roubas de ambos estão cheias de pontas soltas, que segundo as minhas pesquisas são chamadas de franjas. Saem da frente de uma piscina de motel (não importa onde esteja uma piscina com cachoeira, o lugar se torna um motel automaticamente, regras do universo) para um take cavalgando com o gado. Um dos dois (eu nunca vou saber quem é quem) quase perde o controle do animal, mas rapidamente o ser mais inteligente da cena – o cavalo – corrige o problema.

Mais cenas de animais com aquele clássico close em fusão com fundo que adoravam fazer nos anos 80, e os dois andam perdidos por aí (esse clipe é sobre dois vagabundos invadindo uma fazenda, pelo jeito) até acharem um lugar para o “Money shot” do vídeo, aquele take maravilhoso dos dois em close cantando juntos que todo mundo imagina quando se fala de sertanejo clássico. Eles são tão raiz que cantam com aquela cara num misto de constipação e contemplação, sofrendo a cada sílaba. Cantar sorrindo é para os viados de hoje em dia. Naquele tempo era para sofrer mesmo!

O clipe começa a repetir as mesmas cenas sem parar, afinal, é o refrão e não podemos perder o foco nas estrelas. Mas logo depois dele, começam um solo de saxofone, aposto que por imposição da gravadora, para dar aquela “modernizada” no som da dupla. Não funciona. Voltamos para a piscina de motel, com um take em movimento que deve ter dado um trabalho da porra em 1989. Os dois se lamentam por mais um tempo, e começam a andar em direção à estação do trem. A estação é uma aberração modernista que estraga o pouco de clima que o clipe desenvolveu até aqui, mas a Maria Fumaça chega ao resgate.

Os dois sobem num vagão aberto, e viajam como os vagabundos que se estabeleceram desde o começo do clipe. Eles parecem ser perseguidos por pessoas a cavalo no trem, talvez por terem roubado alguma coisa dos fazendeiros locais. Seria essa uma narrativa discreta de um grande roubo caipira? Mais um close no casal, digo, dupla, e a imagem se funde com a mesma do começo do clipe. Não acho que foi para amarrar a narrativa, e sim que na hora de editar perceberam que aquele era o único take da Maria Fumaça à distância.

Nota 10, assistiria de novo.

Chitãozinho & Xororó – Correnteza


Para quem não sabe, a dupla parou de compor músicas mais ou menos em 1990, vivendo de regravações sertanejas. Em 2015, o último álbum de músicas “novas” veio com regravações de músicas do Tom Jobim. Ou seja, não tem como ficar mais chato que isso!

Mas a fama não é a mais mesma. Começar clipe com marca da produtora é prova de permuta. A qualidade visual aumentou consideravelmente. Agora eles tem um logo e tempo de fazer umas cenas de estabelecimento mais artísticas. Ainda não sei quem é quem cabelos diminuíram, passando uma vibe tiozão mais condizente com eles. Um deles agora só usa chapéu, certeza que já está com uma entrada (e mais umas prestações) na testa.

A qualidade técnica do vídeo é muito boa. Não tem o que criticar, de verdade. Só as caras amassadas e plastificadas de ambos. Só que nesse clipe rolou uma preguiça enorme na parte do roteiro! Não tem narrativa. Não admito ver os pais de Sandy (nunca sei quem é a mãe, deve ser o sem chapéu) num clipe sem nenhuma história para contar. São só takes deles numa fazenda abandonada. Cadê o luxo? Cadê a emoção de fugir do fazendeiro que eles roubaram? Parece um monte de cena stock com eles na frente. Senso artístico sem narrativa é masturbação visual.

E se tem alguma coisa sobre ser corno nessa música, está muito escondida! Nos tempos originais, eles não ficavam se escondendo atrás de metáforas. Com essa letra afrescalhada do Tom Jobim, não dá para colocar a verdadeira sofrência sertaneja para funcionar. O clipe acaba ficando melancólico, quase como se eles estivesse de despedindo da vida. Não me passou uma sensação sertaneja verdadeira. Sim, é sobre sofrer, mas sobre sofrer com uma mulher que deu para outro, não com a inevitabilidade da morte. Fica regravando música desses cariocas aviadados e perde a verdadeira alma sertaneja.

Clipe tecnicamente perfeito, música de um dos compositores mais consagrados de todos os tempos e produção musical esplendorosa. Nota 2, nunca mais vou ver.

ANÁLISE COMPARATIVA

O tempo chega para todos. Chitãozinho & Xororó começaram crianças ainda, tornaram-se famosos no meio sertanejo, explodiram nas paradas conquistando o país, reforçaram o ciclo de abuso forçando os filhos a trabalhar na área até os dois virarem ex-famosos danificados mentalmente, e agora seguem para o ocaso de suas vidas e carreiras com um estilo comprado pelo dinheiro bem investido.

A sorte deles é que tem um passado tão raiz que mesmo nessa fase de “tiozão pagando de popstar” ainda conseguem atrair um público fiel e soar mais ou menos íntegros. Regravações não ferem sua carreira, afinal, seu primeiro hit foi uma regravação (Rancho Fundo). Hoje em dia fazem música só por diversão, porque ganham muito dinheiro com seus negócios em outras áreas. Eu teria orgulho do meu passado se fosse um deles? Não. Mas, apesar de tudo, tem uma dignidade aqui que não vamos ver em mais nenhuma outra dupla sertaneja da época.

Envelheceram como o leite. E hoje em dia são um queijo fedido, mas que muita gente gosta.

Para dizer que isso foi menos agressivo do que você imaginava, para dizer que era óbvio que o caipira não ia reclamar tanto, ou para me dizer que clássico é clássico: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: ,

Comments (14)

      • Eu também achava aquilo abominável já naquela época. Mas ainda tem gente que usa, acredite. Hoje mesmo no ônibus em que vim pro trabalho tinha um…

  • Eu tinha certeza que o Somir ia escolher Chitãozinho e Xororó!

    Mas me frustrou um pouco! Cadê Evidências??? A música mais famosa de todos os tempos do sertanejo raiz, a mais cantada em karaokês pelo mundo, a clássica das clássicas!
    Decepcionou essa Página Virada aí!

    Mas valeu o post!

  • Mas gente. O tio da Sandyjunior parece um ventriloco, ele só mexe a boca, nem dá pra ouvir uma segunda voz na musica, ele também não toca o violão. Será que dividem o dinheiro meio a meio? Meio injusto.

  • “cariocas aviadados” disse o cara de Campinas kkkkkkkkkkkk
    Assisti tudo pra acompanhar os textos, mas no mudo pois não preciso de mais earworms na minha vida.

  • Vcs escaparam da sofrência este mês. Tema bem light. O de dezembro deve ser o melhor de todos, pra fechar o ânus com chave de ouro!

    • Bem light? Você tem ideia do tanto de clipes sertanejos que tivemos que assistir para encontrar um antes/depois passível de texto?

  • Credo, essa ruga embaixo dos olhos de Chitãozinho está me assustando. Será a membraninha de pobre?
    Esse saxofone não dá. O piano no segundo clipe também não. CD: Nascemos pra cantar…no chuveiro.
    Quanto ao chapéu, achei necessário, melhorou muito o visual. Mas a musiquinha parece coisa de criança. Não era sobre sofrer por uma mulher, não ouviu ele cantando “Eu vou dar”?

Deixe um comentário para Sally Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: