O cume da banalidade.

A busca constante por “likes” em redes sociais é uma das principais razões para as filas que vêm se formando nas proximidades do cume do monte Everest, segundo o jornal chinês South China Morning Post. (…) Até o momento, 11 pessoas já morreram enquanto tentavam chegar ao ponto mais alto do mundo, a 8.848 metros de altura. Esta é a temporada com o maior número de mortes desde 2015, quando um terremoto ocasionou uma avalanche que matou ao menos 22 pessoas. LINK


O ponto mais alto do mundo está cheio de gente com as motivações mais rasas… desfavor da semana.

SALLY

Quando eu era pequena, “Everest” era uma referência a algo extremamente difícil, praticamente impossível. “Tal coisa é o meu Everest” significava que para conseguir essa coisa seria necessária muita dedicação e empenho. Pois é: 2019 e banalizaram o Everest.

O monte Everest é a montanha de maior altitude de todo o planeta, portanto, não precisa ser gênio para calcular o grau de dificuldade em escalá-la. Também não precisa ser gênio para se perguntar por que merdas alguém precisa arriscar a vida e ir para o ponto mais alto da Terra sem estar totalmente preparado para isso, não é mesmo?

Mas tem muita gente arriscando uma subidinha, ao ponto de ter fila, ter congestionamento para subir o Everest, o que está causando uma série de problemas, inclusive mortes. Este não é um texto sobre alpinistas profissionais que passam uma vida se preparando para uma meta, é um texto sobre um Fulaninho qualquer que decide que precisa escalar a maior montanha do mundo e vai, sem preparo, sem roupas adequadas, sem o condicionamento físico necessário. São estas pessoas que estão congestionando o Everest.

Vivemos em um mundo que nos cobra realizações constantes. Reparem que sempre, em qualquer fase da vida, até mesmo na infância, estamos sendo cobrados para alcançar algo. Passar de ano na escola, passar na faculdade, ter um bom trabalho, casar, ter filhos, não importa. A sociedade e nossas famílias, na maior parte das vezes com a melhor das intenções, estão sempre nos cobrando realizações.

O curioso é: não importa quantas realizações alcancemos, elas não são recita certa de felicidade como nos fazem acreditar. Dinheiro, poder, amor… nada disso garante uma vida plena e feliz. Todos os dias vemos pessoas bem casadas e bem empregadas em depressão, infelizes ou correndo atrás de realizações novas por achar que ainda falta algo em suas vidas. E falta mesmo, mas não é com realizações externas que se alcança.

Este não é um discurso hippie te mandando jogar tudo pro alto e parar de trabalhar para encontrar seu “verdadeiro eu”. Longe de mim, na pobreza ninguém é feliz, podem ter certeza. O que estou dizendo é que APENAS com realizações externas não se alcança felicidade.

Na verdade, este é um discurso de equilíbrio, te sugerindo que você não foque sua vida apenas em realizações externas. Existe um trabalho interno importante de autoconhecimento a ser feito, para viver melhor, para não permitir que o mundo ou que nada fora de você te afete, te chateie ou te enlouqueça. Um trabalho da faxina e sanidade mental que vem sendo solenemente ignorado e que é fundamental para trazer serenidade, paz e suprir essa sensação de falta que torna as pessoas angustiadas.

Quando se ignora o interno e se foca apenas no externo, como em qualquer desequilíbrio, bate uma sensação de falta. Algo está errado, algo não faz sentido, algo está incompleto. Como preencher esse vazio? Como alcançar uma felicidade plena? (e não uma mera euforia momentânea, que é o que conquistas externas proporcionam). Infelizmente a pessoa olha à sua volta e vê família e sociedade empurrando-a para uma nova meta externa achando que com isso ela vai se sentir melhor. É preciso muito culhão para contrariar a pressão social, no mínimo, você vai ser tido como louco. Destoar da mandada custa caro e muitas vezes é visto até como ameaça, sabemos bem disso.

Assim vive o ser humano, como um hamster na rodinha, correndo, procurando e nunca encontrando algo que lhe traga verdadeira paz interna. Chega-se a extremos onde a sensação de falta, de não ter propósito na vida, dessa ciranda de casa-trabalho/trabalho-casa ficar tão sem significado que, em um ato de desespero, sem saber mais onde procurar, preenche-se este vazio com coisas idiotas como bebida, drogas e outros vícios nefastos, como por exemplo subir uma montanha.

Pessoas deprimidas que se cortam o fazem para sentir algo, para sentir que estão vivas, para se punir ou até para sentir que tem o controle de alguma coisa nas suas vidas. Eu equiparo esses seres humanos que estão congestionando o Everest a isso. Pessoas que precisam ir até o extremo, desesperadas por encontrar algo que esteve esse tempo todo dentro delas e que certamente não estará no topo de uma montanha. Pessoas tão desempoderadas que precisam arriscar as próprias vidas para ter uma sensação de poder, ainda que momentânea.

A sensação de vencer a maior montanha do mundo deve ser agradável para o ego… por alguns minutos. Depois, você simplesmente tem que descer e acabou. Não é felicidade, é euforia momentânea. E, como todo desafio grande, requer preparo, treinamento, sacrifícios. Infelizmente parece que as pessoas andam bem mimadinhas, pagam um guia e só querem chegar lá, tirar uma selfie e somar isso no seu currículo de realizações em uma tentativa desesperada de aplacar essa sensação de falta. Bem, já temos 11 mortos nesse desespero por “se superar”. Parabéns aos envolvidos.

Não é sobre o que você faz e sim os motivos pelos quais você faz (Golden Circle, lembram?). Subir uma montanha pode sim trazer benefícios, é uma das formas mais eficientes de meditação ativa, pode trazer um belo insight ou até uma clareza mental no processo, desde que você esteja ali pena jornada, não para contabilizar realizações ou tirar selfie no topo. É na jornada que a gente aprende, não na chegada ao destino final. Cruzar a linha de chegada ignorando a jornada te faz um perdedor em essência.

Estas pessoas que sobrem o Everest à moda caralho querem apenas o título de ter chegado ao topo (e estão conseguindo lápides). É mais uma realização vazia, para sentir um poder momentâneo. Só uma pessoa desempoderada precisa ficar buscando por poder. Poder também é algo interno, é possível que um mendigo se sinta mais poderoso do que um grande executivo que precisa se provar o tempo todo.

O Everest é um exemplo extremo que veio a calhar para o meu ponto: você não precisa escalar a montanha mais alta do mundo nem fazer nada externo para suprir uma sensação de falta, para encontrar paz interior ou para se sentir realizado. Assim como não precisa subir o Everest, também não precisa ter o carro tal, nem o casamento x, nem o parceiro y, nem o corpo z. O que você precisa é parar de acreditar no que o mundo inteiro acredita, de que a saída são realizações externas.

Não estou mandando não se casar, não ter carro, não se cuidar. Você pode fazer tudo que quiser, desde que isso venha de um lugar de vontade, de escolha, e não de “precisar” daquilo, de colocar naquilo a saída para a forma como está se sentindo, de fazer daquilo condição para a felicidade. Bens materiais são ótimos e trazem conforto, adoro, são necessários, mas não trazem felicidade, como bem diz o ditado popular.

Novamente, ninguém tem que abandonar nada. Trabalhar é necessário, mas não é tudo na sua vida. Proponho apenas olhar TAMBÉM para o interno, em vez de focar sua busca somente no externo. Equilíbrio. Cuide de ambos com o mesmo empenho, dispendendo o mesmo tempo e energia para ambos.

E não precisa brigar com o mundo, sair “espalhando a palavra” e confrontando os outros. Deixa as pessoas subirem o Everest, fazerem festa de casamento de um milhão de reais, fazer plástica. Faz o seu, olha para a sua vida. Fale sobre isso apenas com quem perguntar, respeite o tempo das pessoas, para não se tornar um chato pau no cu. Não brigue contra o mundo, não brigue contra nada. Apenas faz o seu, caladinho, que sua vida vai melhorar.

Basicamente é um texto para esboçar minha surpresa ao perceber que o grau de desespero das pessoas por esta busca as está fazendo até subir o Everest em massa, banalizando algo que antes era a exceção da exceção. Essa febre por vivenciar experiências passou dos limites, justamente por escolherem apenas experiências externas: buscaram em todos os cantos do planeta e não encontraram, então sobrem o Everest. Também não vão encontrar. Qual o próximo passo? Precisar ir para a lua?

Ou cai a ficha de que a busca não é externa ou as pessoas continuarão desesperadas por mais e mais superação, em uma vida condenada à frustração, pois existem limites para o que o corpo humano pode fazer.

Se você se identificou com algo que eu disse neste texto, saia da rodinha do hamster e pare de procurar fora. Tudo que você precisa está dentro de você, inclusive para conseguir o que você quer do lado de fora.

Para dizer que você não me perguntou nada, para dizer que o ser humano não tem mais jeito ou ainda para dizer que não quer olhar pra dentro por medo do que possa encontrar: sally@desfavor.com

SOMIR

Não é de hoje que eu falo que a evolução humana é baseada na preguiça. Nossas maiores revoluções e invenções tem o objetivo de facilitar o que era difícil, reduzir ou eliminar o esforço físico e aliviar a pressão de nos mantermos vivos. Se você analisar a história humana, vai descobrir que somos muito bons nisso: a vida de um jacaré tem basicamente o mesmo grau de dificuldade há alguns milhões de anos, a vida de um ser humano fica consideravelmente mais fácil com o passar de poucas gerações, consistentemente por milhares de anos. Cada uma das nossas necessidades básicas pode ser suprida com uma fração do esforço necessário para os primeiros seres humanos. Isso não é algo que aconteceu e acabou, é uma tendência que continua presente, numa velocidade cada vez maior.

Essa busca pela facilidade não é algo inerentemente ruim, longe disso. Demonstra que somos capazes de cooperar para melhorar a vida de todos, que podemos ajudar os menos aptos naturalmente para que eles desfrutem da vida também. Na natureza o instinto de proteção normalmente está reservado às mães e seus filhotes, mas nós expandimos o conceito enormemente. Não podemos esquecer que a mídia tende a mostrar a pior parte do ser humano e aumentar a percepção dos nossos problemas, mas que na média somos muito melhores do que isso. Uma espécie como a nossa, com tantas necessidades para sobreviver e tanta longevidade jamais alcançaria uma população de mais de 7 bilhões de indivíduos se fosse mais egoísta do que altruísta em média.

O ser humano se tornou especialmente capaz no campo de facilitar a obtenção de suas necessidades básicas e das pessoas ao seu redor. Foram milênios de sacrifícios para resolver problemas como alimentação, abastecimento de água, segurança, saúde e abrigo. Ainda está complicado para boa parte da população mundial? Está. Mas numa proporção que faria um homem das cavernas acreditar que um cidadão pobre moderno vive como um rei. O trabalho não terminou, estamos longe de abundância e estabilidade duradouras, mas não podemos negar que ficamos bons nisso de suprir necessidades básicas.

O que finalmente me leva ao tema do Everest. Como nada é de graça nessa vida, toda essa evolução humana fatalmente nos traz situações como essa. Tornaram fácil subir a maior montanha do mundo. Fácil o suficiente para formarem filas no topo, cada um esperando sua chance de fazer um selfie. Onde há demanda, há quem a supra. Os nepaleses ganham dinheiro com isso, e estendem um tapete vermelho para os turistas em busca de uma realização pessoal, meio que tornando tudo um fast food de realização pessoal.

Quanto mais temos o básico coberto pela estrutura da humanidade como um todo, o conceito de básico vai se expandindo. Aquela história de que dois meses depois de receber um aumento no seu salário, você já está gastando quase tudo de novo. É fácil se acostumar com um padrão de vida melhor. Quando uma parte considerável da humanidade consegue recursos o suficiente para ter pouca ou nenhuma preocupação com necessidades básicas como alimentação e abrigo, começamos a desejar mais.

Sim, tem muita gente passando fome no mundo, mas tem muita gente também que nunca se preocupou com isso na vida. E essa gente que está redefinindo o conceito de necessidades básicas. A realização social é algo que está logo depois dessa primeira fase mais fisiológica. Se você parar para pensar, foi só depois da estabilização da capacidade humana de providenciar para bilhões no século XX que a indústria da comunicação começou a crescer. A internet veio como a culminação daquele movimento, e hoje é parte integral da vida desses bilhões de seres humanos. A necessidade de se comunicar e formar relações tornou-se básica quando tanta gente já tinha o resto resolvido.

E seres humanos são muito bons nisso de suprir necessidades básicas. Usamos nosso talento para criar redes sociais. Você pode se mostrar para outras pessoas e receber aprovação por isso, o tempo todo se quiser. Só que como essa tecnologia já começa a alcançar todos os cantos desse mundo, a concorrência cresce de forma assustadora, todos os dias. A pessoa precisa de cada vez mais para alcançar sua cota de curtidas diária. É muita gente pedindo atenção e pouca disponibilidade de cada um de nós. Estamos na fase inicial desse processo de saciar uma necessidade básica, por isso ainda estamos no modo competitivo.

Quando estávamos na fase inicial das outras necessidades básicas, também competíamos muito: as pessoas se matavam em larga escala por comida e água diariamente até pouco tempo atrás na nossa história. Foi só com um salto tecnológico considerável que tivemos paz suficiente para começar a dividir um pouco mais, com menos medo de que fosse acabar. Curiosamente, estamos na idade da pedra da necessidade básica social, lutando uns contra os outros por um recurso que acreditamos ser muito mais raro do que deveríamos. O ser humano ainda não aprendeu que a aprovação e a atenção também vêm de dentro, que não precisa lutar até a morte (muitos desses McAlpinista’s estão morrendo no Everest) para ter acesso.

Hoje estamos nos matando por selfies, brigando nas redes sociais sem parar e nos isolando em grupos cada vez menores por um medo primal de escassez. Escassez de atenção, aprovação e propósito. Que bom que a humanidade já está chegando nessa parte da pirâmide, mas assim como nossos antepassados não sabiam que agricultura e pecuária eram bem melhores do que coleta e caça, nossos contemporâneos não sabem ainda que olhar para dentro e sentir-se bem com o que você é torna a curtida da rede social obsoleta. É bem provável que demore algum tempo ainda para o ser humano médio conseguir alcançar essa abundância de valor pessoal vinda de dentro, mas considerem-me o mesmo otimista de sempre: é o próximo passo.

Pena que demora. Enquanto isso, nada que uns prêmios Darwin não ajudem a passar o tempo.

Para dizer que o mundo só fica pior de uma máquina incrível que manda suas ideias para o mundo todo enquanto se protege dos elementos e tem acesso fácil a comida e água o dia todo: somir@desfavor.com

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Comments (13)

  • A psiquiatria está perdendo o bonde da história da medicina em não estudar a fundo pessoas que confiam em “youtubers” e vão atrás das cascatas de “digital influencers” (ambas expressões me põem nervoso instantaneamente quando as ouço!). Mas, como não sou da área, posso até estar enganado e já haver pesquisadores investigando a respeito, porque tá foda isso!
    Eu quis acreditar, nas primeiras linhas do texto da Sally, que esse lance de Everest era só uma metáfora reveladora da mixórdia em que a humanidade chafurda atualmente; infelizmente, tem mesmo “gente” fazendo isso por likes
    Não tem jeito… o “ceromano” deve ser o único bicho na face da Terra que se autocaga e se compraz nisso. Não é à toa que sua fase de dominar o planeta tenha passado e esteja agora no período de auto-extermínio (graças a D’us!).

  • Geraldo Renato da Silva

    Muitas pessoas passam mais tempo em seu mundinho virtual do que vivendo a realidade e encarando os problemas. Uma geração que vive de aparências, não lê e não tem pensamento próprio. Vive de selfies e se matam por likes. Se deixam levar por youtubers e digital influencers. O futuro parece promissor…

  • Creio que tão preocupante quanto essa falta de autoconhecimento das pessoas seja essa busca desenfreada do ser humano por “likes”. Hoje é mais importante mostrar pros outros que você está em algum lugar do que simplesmente VIVER o momento. Deparei-me com um vídeo de uma blogueira no instagram tendo que se justificar pros seguidores que ela foi ao velório do Gabriel Diniz, mas que não tirou foto e nem gravou vídeo por motivos óbvios (e parece que não estavam acreditando que ela foi por falta de “provas”). Inacreditável.

    • Acho que é tudo uma coisa só: a pessoa não tem autoestima, não tem consciência, não tem uma noção clara do que é, daí precisa buscar o reconhecimento fora de si, através do olhar de terceiros. Se alguém me critica eu surto e quero processar, se alguém me dá um pé na bunda eu quero morrer, tudo que sinto e acho de mim mesma está condicionado não ao meu interno e sim a como o externo me julga.

  • ” querem apenas o título de ter chegado ao topo (e estão conseguindo lápides)”
    Agora lembrei daquela foto do Brasil Urgente (ou um desses telejornais que só passa tragédia) que está rolando pela internet
    “Ela queria flores, vai receber balas”
    devo ser alguém muito ruim pra rir disso…

  • Redes sociais alimentam o senso competitivo do ser humano, nada de mais. Por isso que quando surgiu um boato de que uma rede social aí, não lembro se era Twitter ou Instagram, ia esconder o contador de likes, deixando-os visíveis apenas para o usuário do perfil, um monte de gente surtou.

    • Parece que o Instagram vai fazer isso, por causa dos danos psicológicos que quantidade de likes estaria causando, para se resguardar de futuros processos.

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