Gêneros Musicais – Jazz e Blues – Parte 2

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Tio Ge explica – Gêneros musicais 3 – Jazz e Blues parte 2

Continuando, então, a saga de textos sobre o tema, nesse eu comento sobre o jazz. Mas antes, preciso retomar alguns pontos do texto anterior: jazz e blues são gêneros análogos, irmãos, se desenvolvem em paralelo. Dá pra dizer, bem grosso modo, que o blues vem primeiro, o jazz é um derivado deste. A diferença sutil reside mesmo no fato de que, enquanto o blues se manteve fiel à sua estrutura harmônica, mudando apenas algumas disposições sobre os instrumentos, no jazz isso não acontece, cada vertente repousa sobre uma estrutura harmônica diferente, e numa disposição de arranjo de instrumentos diferentes, o que dificulta bastante saber quem é quem.

Pois bem, enquanto o blues se desenvolve nos vários estados do sul dos EUA no final do século XIX e começo do século XX, o jazz começa a se germinar especificamente nos arredores de New Orleans, no estado de Louisiana. Existem explicações históricas e geográficas para isso: New Orleans, se vocês forem olhar no mapa, é uma cidade portuária, ponto interessante e estratégico de migrações, está ali pertinho de Cuba e Haiti; logo, é comum ter pessoas de diferentes etnias por lá. Mais ainda, no século XVIII, naquela região, havia colônias francesas que dominavam o local, e traziam escravos de várias partes, não só da África. Daí o surgimento do dito “crioulo”, bem grosso modo, os nativos americanos, mas filhos da mistura entre negros e brancos. Vale lembrar também que essa camada da sociedade teve uma melhor educação, e mais acesso à cultura “importada” da Europa, então…

Outra diferença sutil deste em relação ao blues, é que este se desenvolve mais no meio urbano, ao contrário do meio das plantações de algodão e das fábricas, e tem forte influência da música erudita europeia. O que acontece, bem grosso modo, é que aquele “som” do blues chega logo aos jovens ouvidos, e logo os convence, os atrai, e juntando com a erudição europeia, logo temos o nascimento dessa mistura chamada jazz. Mais do que isso, o jazz nasce nos idos de 1910, mas vai ter seu boom mesmo só na década seguinte, e uma das explicações para isso tem fundamentação econômica: a sociedade americana vivia seu auge, e o gênero, que virou febre entre os jovens, parecia representar bem toda a ostentação que a época permitia. O jazz, nesse aspecto, é mais alegre e mais agitado que o blues, não tem aquelas letras emocionais pesadas. Outra característica que vale citar em relação ao jazz é que, o que vale nele, é o virtuosismo do improviso. Cada instrumento tem a “sua vez” de participar, fazendo solos e mostrando o que tem de melhor, e o bom jazzista é aquele que se destaca justamente por saber fazer um bom improviso.

Ainda sobre curiosidades históricas: da mesma forma que o blues era tocado nas “juke points”, o jazz era tocado nas “speakeasies”, que eram uma espécie de bares clandestinos que vendiam bebida alcoólica na época. Sim, havia uma espécie de lei seca em vigor naquele período do começo do século XX. São nesses lugares que brancos, negros, e crioulos, se misturam, e daí surge toda aquela mistura musical.

Quanto à origem da palavra, é bem incerta, mesmo pesquisando a fundo em manuais de filologia. Há uma história muito corrente que diz que o termo vem de “jasm”, que significa jasmim. Há outra que diz que o termo é uma derivação de “yass”, termo popular que significa “sim”, mas a grafia foi mudada de Y para J e o som de SS virou som de z.

A primeira influência que é preciso comentar antes de adentrar a fundo nas tantas vertentes do gênero é a do ragtime. Esse é um gênero do final do século XIX e começo do século XX, muito influenciado pela erudição europeia, mas é americano, e particularmente para piano. O maior nome a ser citado sobre esse gênero é Scott Joplin, e ele tem um ritmo bem saltadinho, bem parecido com o boogie-woogie. Um exemplo bacana tu pode conferir nesse vídeo aqui.

Como dito anteriormente, o jazz cresce na década de 1920, junto com o boom econômico vivenciado naquela época. Com o fim da primeira guerra, os EUA não precisavam mais tanto de instrumentos de metais e sopros, e a venda destes estava bem barata. Daí se explica a grande aquisição de trompetes, trombones, trombetas, sax e tubas por aí. Mais ainda: as “speakeasies”ostentavam instrumentos, os músicos tinham o que havia de melhor à disposição, e com a formação musical erudita, obviamente que começaram a testar outros tipos de arranjos. Afora isso, como cachê não era problema, e o show tinha que continuar, não é estranho ver a banda crescer cada vez mais.

É nesse contexto que surgem as big bands. O nome já diz tudo: se antes havia apenas aquela pequena banda com três ou quatro integrantes, apenas vocal, violão e gaita, agora a banda cresce e vira uma mini orquestra, composta por instrumentos de sopros já citados, piano, violinos, violoncelos, baixo acústico, viola de orquestra, cello, e clarineta. As bandas costumavam ter 12 integrantes, às vezes o número chegava a 17!

Mas aqui a coisa começa a mudar levemente de figura: se antes o que valia era o improviso livre, na big band a coisa tem que ficar organizada. Havia arranjos bastante complexos, mas com redução de improvisos, até porque é um tanto difícil escrever um improviso propriamente dito para que todos sigam à risca aquilo. Os músicos se organizam para combinar passagens específicas, entradas, “recheios”, e os improvisos ficam por conta apenas de alguns solos num momento específico. Ainda por cima, a banda tinha um líder, que ficava por conta geralmente ou do vocal, ou do trompetista.

Nomes aqui não faltam para citar, a lista é bem grande: Benny Goodman, Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Dizzy gillespie, Count basie, Nat King Cole, Duke Ellington, Glenn Miller, Louis Armstrong, King Oliver’s, Count Basie’s, Bill Challis… O estilo, que começa nos anos 1920, sobrevive até meados dos anos 1950, quando há a queda das big bands e a formação de outros tipos e vertentes do jazz.

Entre os anos 1930 e 1940, é muito comum chamar esse período de era do swing. Swing vem de “swing feel”, que significa sentir a música swingada, isto é, com o pulso forte fora da batida, no contratempo da música. Desenhando rapidinho: imagine que tu conte sempre 1 e 2 e 3 e 4, e a ênfase no tempo forte seja no 1 e no 3. Imagine, então, o contrário, dar ênfase do tempo forte na contagem de 2 e 4? Ou mais ainda, dar ênfase na contagem no meio tempo “e” entre um número e outro? Pois é, é isso que as big bands faziam, produzindo uma sensação de algo dançado, deslocado. Isso é o swing.

Quanto à estrutura harmônica disso tudo: segue aquela progressão clichê I-IV-V-VII com algumas experimentações utilizando a sétima diminuta e aumentada, por enquanto, e algumas progressões fora do comum como VI-II-III-VII-II-I e V-VII-II-IV-I-III. Os instrumentos de solo (sopros/metais) adoram fazer solos utilizando os modos lídio, jônio e dórico, enquanto que os instrumentos de harmonia (violão, piano) brincam com acordes com 7ª diminuta e aumentada, e acrescentam uma 9ª geralmente no baixo ou invertendo o acorde dando a parecer que a 9ª está no lugar da 3ª. Enquanto isso, as linhas de baixo passeiam por 5as e 3as paralelas, ou entre sétimas, ao contrário do blues, que utilizava apenas quintas.

Para terminar, breve comentário sobre essa vertente do jazz: ele teve grande importância no cenário cultural da época, foi usado em grandes espetáculos da Broadway, e até mesmo em filmes. Quem aí lembra do tema de James Bond de 1962? Pois é. Um representante contemporâneo dessa vertente, ou ao menos até algum tempo atrás, é Michael Bublé. Isso porque, de um tempo pra cá, ele foi ficando mais pop comercial, romântico clichê. Mas ele tem umas interpretações bem legais da “grande era” do swing, que podem ser encontradas no álbum “babalu”.

Nos anos 1940 surge o bebop, uma das mais importantes vertentes do jazz, e que influenciou tantas outras nos anos seguintes. Ele perdura até meados dos anos 1960, já que depois começa as separações para o jazz modal, o cool jazz e o free jazz. A origem do nome também é incerta: de um lado há uma história bem parecida com aquela sobre o nome do blues, que diz que a palavra vem de uma onomatopeia, algo como “bip bop”, que imitava o som dos martelos batendo nas construções de ferrovias; de outro lado, há também a referência à onomatopeia propriamente dita vinda da técnica do scat sing, que consiste basicamente em transformar em melodia qualquer som labial ou alveolar. É algo comum no jazz e mesmo no r&b e soul utilizar aquela coisa do tipo “be ba da ba tchu bi ra ba du bap…”.

Nomes aqui também não faltam para citar: Miles Davis, Tommy Potter, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Clifford Brown, Art Blakey, Coleman Hawkins, Lester Young, Jack Teagarden, Benny Goodman, Charlie Christian… Diferentemente das big bands, aqui entram em cena os quartetos e quintetos, geralmente formados por trompete, piano, sax, baixo e bateria. Agora a banda diminui de tamanho, até por que, sabem como é, com a segunda guerra mundial e a economia novamente abalada, fica difícil comprar instrumentos e mesmo pagar o cachê de vários instrumentistas na big band. Além disso, outro fator curioso para o surgimento dos quintetos de bebop diz respeito a maior liberdade que alguns instrumentistas queriam e não podiam ter em função da exigente disciplina das big bands. E é através dessa liberdade que criaram algo bastante complexo.

O bebop é realmente complexo em termos tanto de arranjo quanto de harmonia, então vamos por partes. Quanto ao arranjo, a brincadeira já começa no ritmo, que agora é mais que sincopado e bem rápido: se antes havia a ênfase no “e” da contagem dos números, agora dividem mais ainda a contagem de tempo e colocam um segundo “e”. Exemplo bem básico: 1 e E 2 e E 3 e E 4 e E…”, imagine agora que a ênfase no tempo forte recai sobre o segundo E? Pois é. Não bastasse isso, tira-se a atenção dos bumbos e coloca-se a ênfase nos pratos de condução e no chimbal. Agora a música não é mais tuts-taff, e sim taff-tatss taff-tatss. A ênfase é sempre nesse som de “tsss…”.

Não bastasse isso, a estruturação geral do arranjo também se modifica: é apresentado um tema, chamado de “head” no início da música, e em uníssono, e, a partir disso, cada instrumento tem sua vez de solar e improvisar independente e livremente, até que no final da música retornam ao tema principal apresentado no início. Muito raramente podem ocorrer algumas poucas referências nas linhas melódicas à “head” inicial, mas não é regra. Quanto à estrutura harmônica, aqui a coisa pega: começa-se usando aquela progressão blues I-IV-V, mas também a cadência do tipo II-V-I. Daí juntando as duas tem-se a progressão conhecida como “rythm changes”: I-IV-II-V-I. Essa progressão também é mencionada como progressão “I got rhythm”, já que foi utilizada pela primeira vez na música que leva o mesmo nome de George Gershwin, em 1930.

Até aqui, essa progressão não assusta, partindo de dó temos apenas dó-fá-ré-sol-dó. A coisa começa a complicar mesmo quando temos o uso de acordes estendidos e poliacordes, que são enormes acordes com as notas 9, 11, 13, tudo junto. Se antes o acorde tinha só 3 ou 4 notas, agora passa a ter até 8, é algo surreal. Além disso, daquela progressão anteriormente citada, aparecem alguns acordes menores intercalados com maiores, os chamados “acordes por empréstimo modal” (AEM), que vem de outros modos gregos paralelos ao modo principal que está sendo desenvolvida a linha harmônica. Exemplo bem rápido: partindo de dó, I-IV-II-V -> dó-fá-ré-sol, tudo maior, certo? Mas, de repente, começa a aparecer um dó menor no lugar de dó maior, ré menor com 6ª e 9ª bemol, e sol menor com sétima diminuta seguido de sol maior. Trocando pela sopa de letrinhas, fica algo do tipo: Cm7(9b)-Fm6/9-Dm9-G7-Gm7(9b).

Quando não é isso, é o uso das substituições de acordes: consiste basicamente em manter essa progressão, mas trocar algum acorde aqui ou ali de forma que este outro assuma a função do antecessor. Exemplo bem básico já existia lá no blues: pegar o grau IV e assumir com função de V. Mas o bebop vai mais longe e faz umas substituições malucas do tipo IIIm6 (terceiro grau menor com sexta, partindo de dó seria mi menor com sexta) no lugar do II, ou bVIm (sexto grau menor bemol, partindo de dó seria lá bemol menor) no lugar do V. Há também a famosa substituição tritônica (acorde subV7 para os íntimos!), que significa “resolver” a tensão do V grau usando um acorde a exatos 3 tons abaixo, que por sua vez resulta no bII7 (segundo grau bemol com sétima). Partindo de dó, como exemplo, temos sol no V grau, e ré no segundo grau. O subV7, neste caso, vai ser o acorde de ré bemol com sétima.

Não bastasse isso, há também o uso do alongamento da progressão usando encadeamentos ii-V no meio da progressão, encadeamentos com 7as e 9as no baixo, invertendo o acorde e tocando na posição 3-5-1, uso e abuso de cadências perfeitas, imperfeitas, deceptivas, meia cadência pro retorno do encadeamento principal, isso sem falar nas modulações harmônicas pesadas que vem lá da música erudita, passeando não por tons vizinhos, mas tons distantes como si maior e mi bemol menor. Achou difícil? Pois é, realmente o é, até para mim. Bebop é realmente um gênero sofisticado, para ouvidos sofisticados, para quem é ouvinte assíduo, treinado, e sabe identificar estruturas complexas na música.

Calma que ainda tem mais: não bastasse tudo isso, ainda há o uso da escala bebop, que consiste numa alteração do modo grego mixolídio. Explicando suas origens: Esse modo grego tem a fórmula tom-tom-semitom-tom-tom-semitom-tom. Partindo de dó, vou ter: dó-ré-mi-fá-sol-lá-si bemol-dó. Reparem que é a escala maior, apenas com a 7ª nota bemol. A escala bebop parte disso e aumenta meio tom no quinto grau, o que resulta em sol sustenido entre sol e lá. Essa escala produz uma sonoridade um tanto estranha, e ao mesmo tempo intensa.

Por extensão do bebop surge, no final dos anos 1940, o hardbop, que de hard não tem nada. Ele tem seu auge nos anos 1950, e decadência nos anos 1960. A ideia é fazer algo menos pesado que o bebop: aqui a coisa é relativamente mais lenta, sem aquele frenesi todo do gênero anterior, e sem aquelas melodias exigentes se utilizando da escala bebop. A única coisa que se mantém do gênero anterior é a pulsação rítmica sincopada. Há a ênfase para o piano e o saxofone, embora o trompete e trombone ainda continuem lá. Outra diferença sutil é que o hardbop incorpora alguns elementos do gospel e do blues, principalmente o uso de acordes menores, com a ênfase na 3ª menor, junto com a 5ª aumentada e sétima diminuta, além daquela linguagem do r&b que já começa a aparecer com maior intensidade aqui, se utilizando de encadeamentos com 7as e acordes suspensos. Nomes para citar aqui não são muitos: Horace Silver, Art Blakey, Miles Davis, John Coltrane, Tadd Dameron, Cannoball Adderley, Charles Mingus.

Na contramão desse estilo rápido e frenético, ao mesmo tempo, nos anos 1940 a 1950, havia o chamado cool jazz. A ideia aqui é algo lento, relaxante, pra não dizer às vezes melancólico e romântico. Há certa recusa em utilizar as complexidades do bebop, e priorizam-se elementos da música clássica, como a fuga e contraponto utilizados no período barroco, bem como o clichê I-IV-V-I, a cadência plagal (cadência do amém, muito utilizada no fim dos hinos), e, curiosamente, também a escala hexafônica, que consiste numa escala de seis tons inteiros, com a fórmula: tom-tom-tom-tom-tom-tom. Partindo de dó, como exemplo, vou ter dó-ré-mi-fá#-sol#-lá#. É outra escala que produz uma sonoridade um tanto estranha e intensa, mas… há quem goste! E digo curiosmente, pois, justamente, essa escala estranha (que mais tarde será usada no fusion jazz e em outros estilos) tem sua origem lá na música clássica.

Nomes pra citar aqui: começa passeando com Miles Davis, Stan Getz, Gerry Mulligan e Chet Baker, mas também tem Ted Gioia, Franke Rumbauer, Coleman Hawkins, Gil Evans, John Carisi, John Lewis e Charlie Parker’s. Vai se popularizando pela costa oeste dos EUA, daí essa vertente do jazz também ser chamada de “West coast jazz”.

Aliás, nota interessante aqui: a incorporação da música clássica no jazz (lembremos que a principal característica do gênero é o virtuosismo da improvisação!) é também chamada de “terceira corrente”. Digamos, bem grosso modo, que o bebop/hardbop seria uma primeira corrente, o cool jazz e o free jazz uma segunda corrente que ia contra a primeira corrente, e uma terceira, contra essas duas, seria essa “terceira corrente”. O termo, na verdade, é cunhado por Gunther Schuller em 1957 para tentar designar o uso da tradição erudita no jazz, mas isso gera bastante discussão entre os musicólogos até hoje.

A questão é que há certa influência da música clássica como em Bela Bartok e Debussy sobre algumas composições jazzísticas, e mesmo utilização da linguagem jazzística por esses compositores. Na outra ponta, nomes como Woody Herman, Mary Lou Williams, George Russel, John Lewis, Jimmy Giuffre, Ran Blake, tentavam incorporar à musica jazz os elementos de Debussy e Bartok. Para quem não estudou a fundo esses compositores eruditos, breve explicação: eles utilizam bastantes dissonâncias estranhas, intervalos de 2as, 9as, 6as, quando não o cromatismo (notas sustenidas ao lado das naturais) e a escala hexafônica. Se tu ouve Bartok no youtube e já se depara com aquela sonoridade estranha, imagina aquilo incorporado ao jazz e ao improviso?

Na contramão dos estilos bebop e hardbop, surge, nos anos 1950, o jazz modal. O termo é cunhado por George Russel em 1953, que também era compositor e teórico musical. A ideia aqui, diferentemente das outras vertentes, é pensar por escalas e não por acordes. Isso significa que toda aquela progressão complexa de acordes é deixada de lado, e aplicam-se diferentes escalas (modos) para produzir a harmonia. E os modos a serem utilizados aqui, obviamente, são os modos gregos, sendo comum utilizar mais de um modo ao mesmo tempo na mesma melodia (exemplo: modo jônio e mixolídio). Muito raramente se utilizam escalas pentatônicas ou hexafônicas aqui.

Embora seja uma “reação” contra a complexidade do bebop, também não deixa de ser um gênero difícil e sofisticado, já que saber identificar modos e escalas diferentes também se exige muito do ouvinte. Há quem diga que o primeiro e mais representativo desse gênero tenha sido o álbum “king of blue” de Miles Davis, mas isso é discutível. O fato é que ele explora sim as várias possibilidades do jazz modal nesse álbum, mas nomes para citar em relação a esse gênero não é só ele. Há também John Coltrane, Chick Corea, Bill Evans, Herbie Hancook, Bobby Hutcherson, Woody Sham, Wayne Shorter, McCoy Tyner e Larry Young.

Ainda nos meados dos anos 1950 e começo dos anos 1960, surge outra vertente com uma ideia contrária a essas anteriormente desenvolvidas: o free jazz. Aqui, o termo é autoexplicativo: “free”, liberdade, é um jazz desenvolvido com total liberdade e livre de qualquer formalidade técnica de composição. A forma tradicional de harmonia-melodia-ritmo aqui é abandonada, e tudo se transforma num verdadeiro caos. Antes os compassos eram estruturados em fórmulas, geralmente o 4/4, e a percussão com a ênfase em algum elemento (seja ele prato, bumbo, chimbal) marcava uma métrica regular. Agora, no free jazz, a percussão faz o que quer, do jeito que quer, no ritmo que quer. Existem apenas os “accelerandos” e “rittardandos”, o tempo todo, dando a impressão de que o ritmo se move como uma onda livre. Como se não bastasse, há o uso de instrumentos ditos “não convencionais”, vindos da África, por exemplo.

Em termos de harmonia, a coisa também pega, já que se desconsidera o uso do encadeamento de acordes pela escala diatônica, bem como os modos gregos. Daí o conceito de atonalismo, que vem lá do começo do século XX, começa a aparecer aqui com força. Nomes para citar aqui também são poucos, já que é um grupo pequeno que sobreviveu nesses poucos anos: Ornette Coleman, Don Cherry, Scott LaFaro, Charlie Haden, Sun Ra, Billy Higgins, Ed Blackwell, Cecil Taylor, e em menor grau, a produção tardia de John Coltrane.

No final dos anos 1960 surge o “latin jazz”, termo que designa toda a produção jazzística dos países latinos, incluindo o Brasil, com sua bossa nova. Em termos de história, sabem como é, não preciso comentar muito: nessa época o jazz já tinha se espalhado pelo mundo, não ficou apenas nos EUA e Europa, e chegando em outros lugares acaba que incorporando elementos específicos de lá. Não raro tu encontra na música cubana o uso de congas, guiros e maracas na percussão, além de xilofones, tabla, e mesmo timbales e bongos. Mas os trompetes ainda continuam lá!

Em termos de harmonia há tanto elementos da big band como do bebop, com aquelas longas e complexas progressões harmônicas, e o uso de momentos em uníssono e de solos específicos para cada instrumento. Mas a ideia aqui diz respeito ao ritmo: o baixo, ao contrário de 5ªs, agora se utiliza de tercinas, que são 3 notas agrupadas em um só tempo do compasso. Só que pra piorar mais um pouco, ainda é utilizada a poliritmia e as tercinas caem no contratempo. É bem comum encontrar, na música latina, aquele ritmo bem marcado do tipo tá/tá-tá-tá/tá-tá-tá/tá-tá-tá, ou quando não é isso, é aquele tá-ca-ti-ca-tá-ca-ti-ca-tá-ca-ti-ca… Isso vem lá da habanera, que é um gênero do século XIX.

Já a bossa nova, bem resumidamente, é a utilização da linguagem do jazz (especificamente o uso das 9as, 11# e 13b) aplicada à música brasileira. Tudo começa lá no fim dos anos 1950 e começo dos anos 1960, quando, na zona sul do Rio de Janeiro, músicos começam a fazer experimentações outras tanto com o ritmo quanto com a harmonia, em relação ao que já havia sido feito até então com as formas de samba já existentes.

Sabem como é, Sergio Mendes e João Donato, que tinham dado umas voltinhas nos EUA, entram em contato com toda aquela linguagem do jazz e trazem isso pra cá. Daí inventam de colocar a ênfase no contratempo do compasso, tornando-o sincopado, colocam uns acordes complexos e… está feito. Daí colocam-se as letras de Jobim e Moraes e o sucesso está garantido.

Ou seja, a bossa nova tem influência tanto do samba brasileiro quanto do jazz norte americano, particularmente do bebop. Mas, diferentemente do jazz desenvolvido nos países vizinhos – que tem toda uma gama de instrumentos, incluindo os trompetes, e é agitada – aqui, na bossa nova, tudo é tranquilo, música calma, relaxante, vocais baixinhos, e o arranjo fica por conta só de percussão, piano e violão.

As melodias são relativamente simples, mas a harmonia é complexa. Exemplos são muitos, dariam páginas e páginas de análise, mas vou citar só um: samba de uma nota só. A música é basicamente uma nota só repetida incessantemente, mas com vários acordes mudando rapidamente, por vezes em um só compasso. A tessitura harmônica é complexa, carregada, e usa-se bastante acordes com 9ª bemol, 11#, inversões de acordes com a 3ª no baixo ou a 9b no lugar da 3ª, acordes suspensos e por aí vai. Daí que uma simples progressão do tipo I-IV-V-VII se torna algo complexo pelo uso dessas dissonâncias.

Nomes aqui todo mundo conhece: Jobim, Vinicius de Moraes, Edu Lobo, Dorival Caymmi, Nelson Motta, Wilson Simonal, Elis Regina, Chico Buarque, Nara Leão, Gal Costa… Mas, os mais representativos mesmo, e que todo mundo se lembra, são Jobim e Moraes. Curioso é que a bossa nova é lá um movimento específico dos anos 1960, depois tudo vira o famoso “MPB”, que engloba muita coisa, inclusive o samba.

Nos anos 1970 surge o “chamber jazz”, ou jazz de câmara. Em termos de estrutura harmônica não há nada de novidade, é quase a mesma linguagem da big band. Mas a ideia aqui é utilizar instrumentos da música de câmara (geralmente um quinteto ou um ensemble composto de violinos, violoncelo, baixo acústico, oboé e fagote, piano) no estilo jazzístico. Aqui é deixado de lado os instrumentos de sopros mais comuns no jazz, como o sax e o trompete.

Certamente tu já deve ter ido a algum desses eventos chiques por aí e se deparou com algum jazz sendo tocado por instrumentos acústicos, ao invés de eletroacústicos… Mas, aqui, curiosamente também aparecem outros instrumentos como o xilofone, mandolim, cabaça, e tabla. Nomes para citar aqui são: Billy Childs, Mark Feldman, Chico Amilton, Modern Jazz Quartet, Russel Walder.

No final dos anos 1960 e particularmente nos anos 1970, surge o fusion jazz. O termo também é conhecido como “jazz rock”: bem resumidamente, alguém teve a ideia genial de trazer a linguagem do jazz agora para o rock, misturar riffs como uma base e solos de guitarras improvisados, instrumentos de sopro fazendo solos e recheios, afora instrumentos eletrônicos como teclados sintetizadores; além de experimentar o ritmo sincopado no contratempo ao invés do formato “quadradinho” do rock com ênfase no 1º tempo. Aparentemente, funcionou bem. Mas, ver os instrumentos de sopros que antes faziam solos agora sendo substituídos por guitarras, talvez tenha sido uma afronta aos compositores ortodoxos de jazz. Nomes que aparecem aqui são: John McLaughlin, Manfred Mann, Charlie Parker, Miles Davis, Chick Corea, Dave Holland, Herbie hancook, Gary Burton e Larry Coryell.

Na contramão dessa vertente, também nos anos 1970, há o smooth jazz. Ele vem derivado lá do cool jazz, da geração anterior, mas é bem diferente no que se refere ao arranjo e estruturação harmônica. Isso porque ele não é dado a exagerações e virtuosismos de harmonias complexas, nem ritmo sincopado. O ritmo é quadradinho, ênfase no 1º tempo do compasso, e em termos de estrutura, se assemelha muito ao pop com aquela progressão clichê V-I-IV-II. Também não há (muito raramente) solos e improvisações complexas.

É algo fácil de ouvir, relaxante, amigável. Sabem essas musiquinhas que tocam em coctail de multinacional (quando não é bossa nova instrumental), ou de boutique de grife? Pois é, é aquilo lá. O nome mais representativo aqui é Kenny G (embora ele esteja mais para a easy listening). Nomes contemporâneos dessa vertente são: Diana Krall, Rachelle Ferrell (embora ela flerte com o bebop dos anos 1940), Michael Franks, Natalie Cole, George Benson e Joe Sample. Essa vertente do jazz vai dar origem, alguns anos depois, à lounge music, mas esse eu falo em outro texto, já que flerta com a eletrônica.

Ainda nos anos 1970, surge o chamado acid jazz, na Inglaterra. Ele tem seu boom na década seguinte, mas é passageiro, logo cai em declínio nos anos 1990. Nada de novidade aqui, em termos de estruturação harmônica, ele incorpora muito do hardbop. A diferença mesmo fica por conta do baixo bem enfatizado, não só pelo uso de quintas, mas pelo uso de distorção e saturação harmônica (pedal fuzzy), dando aquele timbre de baixo fritado, bastante utilizado na música eletrônica. Nomes para citar aqui são poucos: Stereo Mcs, Gilles Peterson, Galliano, Young Disciplies, Urban Species, Brand New Heavies, Liquid Soul e Jamioquari.

Para terminar, até porque esse texto já está bem grande, a última vertente que penso que merece ser comentada é o funky. Não é o “funk” carioca não, é outra coisa! O negócio surge lá no final dos anos 1960 e perdura até nos anos 1980, e é uma mistura do jazz, do blues, do soul e do rythm & blues. Acho que todo mundo aqui se lembra de James Brown quando o assunto é funky. Mas tem também Fatback, the Gap band, Instant Funk, The brothers Johnson, Wild Cherry, Jimmi Bo Horne, Rick James… São tantos! E um revival contemporâneo, há que se dizer, é Bruno Mars com aquele “upfunk town”.

O que acontece aqui é o baixo bem marcado, que se inicia com uma célula rítmica (um riff, podemos dizer), e a partir disso aparecem os vocais e os outros instrumentos improvisando, mas sempre em cima dessa base no baixo. Outra característica é o uso da técnica do slap, que consiste literalmente em “bater” na corda do baixo, dando um teor de som bem percussivo. Quando não é isso, é o uso do baixo grooviado, à la blues: o baixo constrói uma linha melódica independente do resto, como se tivesse tocando outra música, mas que casa com o conjunto todo.

Além disso, o funky é tocado sempre em rodinhas de algumas pessoas, e todo mundo bate palmas (daí o uso de claps em samples pré-gravados) enquanto o baixo faz sua base. É o que acontece lá em “upfunky town”: o tempo inteiro o baixo faz ré/ré-sol-fá/ré-sol-fá dó-ré… Daí os vocais entram, logo após os back vocais, os instrumentos de sopro, os teclados, e por aí vai.

Outra característica muito interessante é que, em algumas músicas, a coisa já começa explosiva, já direto na dominante, ao invés de ir num crescendo apresentando o tema na fundamental e desenvolvendo-o, é como um estouro. Isso acontece com a clássica “I feel good”, que logo de cara o ouvinte se depara com a dominante nos trompetes. Em termos de harmonia, o funky se utiliza de tudo aquilo que o jazz já utilizou: uso de acordes estendidos, acordes com 6ª e 9ª, e acordes suspensos, além dos modos dórico e mixolídio, preferencialmente.

Para terminar pra valer esse texto, breve comentário sobre as tendências contemporâneas, sob pena de parecer que passei um facão na coisa e parei nos anos 1980. Nos anos 1990, Rachelle Ferrell trás um revival do bebop, com baixo marcado e vocais potentes, uso de guitarras flertando com o smooth jazz e ao mesmo tempo com o soul, enfim, muito bom. Ela usa agudíssimos que ultrapassam Mariah Carey, pasmem!

Ainda em termos de revival, tem Michael Bublé que começa trazendo o melhor da época das big bands, mas daí lá pelos anos 2mil passa ao pop romântico com aquelas canções “home” e “everything”, que foram tema de alguma novela por aí. Paralelo a ele também tem Michael Bolton, que começa como roqueiro, pasmem, e passa ao jazz nostálgico (menção honrosa para o álbum “Bolton swing Sinatra”), e daí passa ao pop romântico nos anos seguintes.

De outro lado, tem Diana Krall com uma pegada meio romântica, mas a menção honrosa mesmo vai para o álbum “all for you”, em que ela reinterpreta os trabalhos de Nat King Cole. Ao lado dela estão Katie Melua (que flerta bastante com o blues tradicional em uma roupagem bem suave – menção honrosa para os álbuns “Pictures” e “piece by piece”), e Norah Jones que passeia entre o smooth jazz, jazz vocal e um pouco do soul.

Na outra ponta está Joss Stone, que literalmente “dá tiro pra todo lado”, indo desde o jazz até o soul passeando pelo r&b. Menção honrosa para o cd “mind, body & soul”, meu preferido. Enquanto isso, do outro lado do oceano, tem Jamie Cullum, eu simplesmente adoro esse cara! Ele mistura jazz, pop, fusion, faz toda uma mistureba alternativa, mas sem soar exagerado. Ele sabe o que está fazendo, e o faz com maestria. Menção honrosa para o álbum “the poursuit”, lá dá pra ilustrar bem o que digo.

Dentro dos grandes artistas da mídia, cito também Madeleine Peyroux, Ute Lemper, Basia, Randy Crawford que trazem novas roupagens do blues e jazz contemporâneo, e que bebem no fusion jazz lá dos anos 1970 com algo meio pop. Para além destes, há também pequenos grupos de jazz e blues espalhados por aí (em SP e Curitiba, por exemplo)e por vezes desconhecidos. Mas diria que, talvez num tom nostálgico, a grande era do jazz e blues já se foi. Hoje ele apenas existe de maneira dispersa (se pensarmos no grande mercado fonográfico), como um gênero elitista, feito para elites, e, portanto pouco apreciado. Bem, é isso. Espero ter conseguido elucidar bem as diferenças sutis de cada vertente do gênero.

Por: Ge

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Comments (9)

  • Esqueci de acrescentar uma referência que acho essencial, embora haja tantas outras:
    História social do jazz, de Eric Hobsbawn. Ele é um marxista meio torto, isto é, não ortodoxo, mas a análise documental que ele faz, bem como o procedimento que ele adota para sua análise, é genial. Ele faz colocações bem interessantes nesse livro.

  • Realmente, jazz exige ouvidos devidamente educados para ser apreciado! Há muitas variantes, cada uma com inúmeros aspectos técnicos difíceis de perceber e entender. E mais uma coisa: Artie Shaw e Wynton Marsalis entrariam onde nesse texto?

    • Artie Shaw entra na categoria das big bands, em partes, e na outra parte no cool jazz, já que ele opta as vezes por algo mais lento e relaxante. Já o Wynton, ele nasce nos anos 60 e recebe “toda influência” dos anos 40, 50 e 60 então… Não é surpresa ele optar pelo bebop e hardbop, enfatizando o trompete.

  • Um grande fã famoso de jazz em geral e de bebop em particular, que eu me lembre, era o finado Paulo Francis. Lembro que ele citou ter esse gosto num artigo que escreveu para a Folha de S. Paulo na época em que John Lennon foi assassinado. No mesmo artigo, ele também dizia coisas não muito elogiosas sobre os Beatles.

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