Ideologia suicida.

O mundo passou muito perto de ter a Alemanha como potência hegemônica no começo do século passado. Poucas vezes na história uma nação se tornou tão poderosa em tão pouco tempo quanto no período das duas grandes guerras, e quanto mais você estuda a história da época, mais começa a entender que passamos a milímetros de distância de ter os germânicos ocupando o lugar que agora é ocupado pelos EUA. Mas infelizmente para todos, no caminho havia o nazismo…

O viés ideológico da história que nos contam sobre as grandes guerras e o papel do partido nazista esconde uma realidade surpreendente: os alemães tornaram-se gigantes apesar do nazismo, não por causa dele. E no final das contas, esse foi o verdadeiro ponto de falha da estratégia de dominação global. Aprendemos que o mundo não tolerou a maldade de Hitler e que todos se juntaram para derrubar o ensandecido povo alemão, mas a situação é bem mais complexa do que isso…

O Estado alemão como conhecemos é muito recente. Até 1814, era uma coleção confusa de dezenas de regiões aliadas, mantida estável pelo inevitável caos gerado por qualquer invasor que tentasse unificar aquilo. A criação da Confederação Germânica ainda não criava uma unidade clara, mas dava linhas gerais ao território que conhecemos hoje em dia. Só em 1871 que a união se consolida no Império Germânico. E rapidamente eles conseguem imitar o expansionismo colonial de seus vizinhos, tomando várias partes da África e da Ásia no processo.

Unido, o povo alemão entra numa fase de aceleração industrial, pegando gosto pela coisa e demonstrando um talento ímpar para o desenvolvimento econômico. Com guerras ainda na memória de alguns de seus cidadãos, os franceses são os maiores rivais na época, especialmente pelo apetite de ambos pelo território africano. Mas os alemães também encontram um aliado poderoso no império austro-húngaro, além de laços de sangue com a monarquia russa. Por um tempo, a economia alemã crescia tão rápido que chamava atenção até mesmo da potência dominante do mundo: o império britânico. Seus vizinhos começam a considerar seriamente os riscos do até então confuso Estado germânico tornar-se o país mais poderoso do mundo.

Mesmo considerando que todos os colonialistas europeus trataram a África muito mal, ao contrário da expectativa de todos nós vivendo no século XXI, as colônias africanas dos alemães eram as mais bem cuidadas. Vejam bem, ninguém foi bem tratado no continente, mas na média, era muito melhor estar sob o domínio alemão do que o francês ou o belga, por exemplo. A Alemanha não é exatamente rica em recursos como ferro e petróleo (já muito importante naquele tempo), então as colônias ajudavam demais no processo de desenvolvimento do país.

Mas nada vai ser fácil para eles. Especialmente no campo dos aliados que fizeram. Em 1914, usando o pretexto do assassinato do arquiduque Franz Ferdinand por um terrorista bósnio, o Império Austro-Húngaro invade a Sérvia (algo que já queria fazer faz tempo) ativando uma cláusula de proteção mútua do país báltico com os ingleses. Os alemães avisaram que daria errado, os alemães pediram sem parar para os austro-húngaros não fazerem isso, mas não adiantou. Quando os sérvios são atacados, todas as cláusulas de proteção mútua da região se ativam e começa a Primeira Guerra Mundial. Claro que os alemães não são santos e aproveitaram a chance para tomar alguns territórios na confusão da guerra, mas o que ninguém esperava em 1914 era o horror que aquele conflito se tornaria.

Especialmente os maiores aliados do império alemão: os austro-húngaros estavam parados no tempo, lutando com cavalos e baionetas contra metralhadoras e tanques de guerra. A maioria de vocês mal deve se lembrar que existia um império austro-húngaro por causa disso. Foram massacrados. A Alemanha enfrentou França, Inglaterra e EUA por vários anos, segurando os russos do outro lado até que a Revolução Comunista fizesse a agora União Soviética desistisse da guerra. Eventualmente, a guerra estava tão horrível que em 1918 ninguém mais queria lutar. Os alemães estavam muito enfraquecidos por perderem seu maior aliado, os austro-húngaros, e pela completa incapacidade do império Otomano (vulgo Turquia) de lutar numa guerra, tirando deles um protetor valioso.

A Primeira Grande Guerra termina com a Alemanha cambaleante, mas ainda muito difícil de ser batida. Como era apenas questão de quantos anos de mortes e desespero do seu povo a guerra continuaria antes deles perderem, aceitaram se render. O que não se diz muito hoje em dia é que no final da guerra o país mais inteiro de todos ainda era a Alemanha. Ela conseguiu empurrar quase todas as batalhas para fora de suas fronteiras, e só não conseguia manter a guerra porque perdeu seus aliados e não tinha mais como trazer os recursos necessários para produzir armas, combustível e alimentos em geral. Mas a estrutura estava lá. De uma certa forma, a Alemanha perdeu essa guerra por causa de seus aliados inexperientes em guerras e a bagunça sem fim na Rússia, que eventualmente poderia mudar de lado dada a relação de parentesco entre seus imperadores.

Mas de qualquer forma, França, Inglaterra e EUA vencem. E vão cobrar a conta dos alemães, que segundo eles são os culpados pela guerra. A Alemanha devolve quase todos os territórios que ocupou e fica com uma conta imensa para pagar. Na época, muita gente achou o Tratado de Versailles – o que define o que a Alemanha tem que pagar em reparações pela guerra – exagerado. Mas especialmente os franceses não querem saber de aliviar em nada para os alemães, pois perderam muito de seu complexo industrial durante os últimos 4 anos. Apesar de muitos protestos, o tratado é assinado e a Alemanha passa as próximas duas décadas pagando essa conta.

E que conta… o país quase quebra tendo que entregar tanto dinheiro para os países vencedores da guerra, mas contra todas as probabilidades, os alemães começam a sair do buraco. É importante lembrar como muita da estrutura que permitiu o imenso crescimento do país antes da guerra ainda estava lá, e o país não perdeu tanta gente assim: para quem perdeu a guerra ter um número de mortos equivalente aos países que ganharam é um sinal de sucesso, até. Vou repetir isso pela importância no resto do argumento: não fosse o fracasso catastrófico de seus aliados, a Alemanha teria de onde tirar recursos para vencer a Primeira Guerra Mundial. No final das contas, a guerra foi vencida mais pelo bloqueio naval realizado pelos ingleses do que exatamente por feitos no campo de batalha.

Mesmo assim, as reparações custaram muito caro. O que você pode considerar uma bênção disfarçada, se pensar bem: os alemães não tinham recursos naturais abundantes para pagar a conta, então, precisavam da sua indústria para conseguir entregar o valor esperado deles. E é aqui que começa o primeiro mito em relação à ascensão do nazismo alemão: Hitler não salvou a economia alemã. Na verdade, se você considerar os dados econômicos pré Segunda Guerra, a Alemanha não estava crescendo muito desde que o partido nazista chegou ao poder.

Na verdade, a doutrina nazista estava dando sinais de fraqueza, e a invasão da Polônia, ponto inicial da Segunda Guerra Mundial, parecia mais uma questão de expansionismo para estimular uma economia enfraquecida por decisões ruins de Hitler que propriamente um ato de agressão contra o resto do mundo. Eu ainda vou escrever um texto sobre o que acontecia na Alemanha logo antes dos nazistas chegarem ao poder, mas hoje o foco é outro: Hitler fez com que a máquina produtiva alemã se voltasse quase que exclusivamente para a militarização, desafiando o Tratado de Versailles. Como muita gente – inclusive nos países vencedores – achava o tratado muito severo com os alemães, o mundo fez vistas grossas para o desenvolvimento militar alemão.

Até a invasão polonesa, o regime nazista havia cometido barbaridades sim, mas o que não se costuma explicar é que é só depois do começo da guerra, em 1939, que Hitler realmente coloca em ação a grande maioria de suas ideias horrendas. Nem o mundo ao redor nem o “alemão médio” tinha noção ainda de a que ponto seu líder chegaria dada a oportunidade. Tanto que até Hitler realmente invadir a França em maio de 1940, o mundo todo estava esperando para ver no que aquele surto expansionista alemão ia dar. Foram 8 meses de guerra declarada entre Inglaterra e França contra a Alemanha até as batalhas de verdade começarem. Naquele tempo, notícias corriam de forma muito mais lenta e dava para esconder boa parte do que realmente acontecia.

Hoje sabemos que o exército alemão na Polônia estava horrorizado com as barbaridades cometidas pela SS, a divisão mais “ideológica” do plano de Hitler. Não faltaram cartas e mensagens por rádio de soldados alemães dizendo que tinham vergonha do que a SS estava fazendo, que ela estava manchando a imagem dos alemães no mundo. Mas naquele tempo, a informação não chegava facilmente, nem mesmo para o resto dos soldados alemães. Os que lutavam do outro lado do fronte achavam que essa era uma guerra de vingança contra o Tratado de Versailles. Queriam sim acabar com franceses e ingleses, mas não tinham noção verdadeira da guerra contra a humanidade que a SS lutava na Polônia.

Não estou dizendo aqui que os nazistas não eram tão ruins, eles eram até piores do que se imagina por essa visão das coisas, mas sim que o grosso do exército alemão sequer entendia até onde Hitler realmente queria chegar. Estavam lutando uma guerra expansionista como todos os outros povos lutaram até então. Mentalidade colonialista de superioridade racial e direito divino aos recursos do mundo como todos os outros países faziam naquele tempo. Estou dizendo também que a medida que o soldado alemão médio percebia quem era o seu líder, o poderio nazista diminuía. O exército alemão tomou boa parte da Europa com uma facilidade aterrorizante. Não fosse o horror causado pela SS pelas costas do exército, o resto do mundo teria muito mais disposição a aceitar algumas das tomadas de território e se reorganizar devolvendo um pouco mais de poder para os germânicos.

E claro, enquanto Hitler ia perdendo a capacidade cerebral a olhos vistos e concentrando mais e mais poder, os generais alemães – que deram um baile nos ingleses e franceses até ali – perderam sua voz e foram obrigados a fazer missões cada vez mais suicidas com o passar dos anos. Eu nem estou falando sobre como o mundo seria diferente se a Alemanha ganhasse a guerra, porque talvez não fosse possível com os EUA prontos para entrar a qualquer momento, mas sobre como foi justamente a ideologia nazista que forçou o resto do mundo a esmagar os Alemães e a tirar tudo deles. O país teria condições de lançar uma guerra para reverter o Tratado de Versailles sem Hitler, e se o fizesse nessas condições, teria conseguido crescer demais no cenário europeu e evitar o crescimento exponencial do poderio norte-americano nas décadas seguintes. Porque não se enganem: o mundo não estava lutando pelos direitos de pessoas de “raças inferiores”, em nenhum momento.

Estavam todos topando um antissemitismo aqui e um racismo acolá caso as coisas não avançassem para campos de concentração e genocídio descarado. E existia sim uma certa simpatia ao direito alemão de se reconstruir depois da pancada que levou no final da Primeira Guerra Mundial. Mas no caminho tinha um maluco suicida e sua ideologia igualmente suicida. Não foi o nazismo que tornou a Alemanha uma máquina de guerra quase que invencível, foi o povo alemão. O nazismo se aproveitou dessa capacidade para empurrar sua ideologia goela abaixo do resto do mundo, mas no final das contas, traçava um rumo inescapável para o fracasso. Se as suas visões de superioridade racial e colonialismo são severas demais até a Europa do começo do século XX, você claramente perdeu completamente a noção da realidade.

A guerra viria de qualquer jeito, o estado dos alemães em 1919 e o tratado de Versailles garantiam isso. Muitos dizem que não houve duas grandes guerras, mas só uma com um armistício de 20 anos. E eu cada vez mais concordo com isso. Por incrível que pareça, a “sorte” dos outros países é que nesse meio tempo os alemães elegeram Hitler. Se não fosse ele, dificilmente algo teria ficado no caminho da dominação alemã. E se você quer ficar meio conspiratório depois de pensar nisso, bem-vindo ao time… das duas uma: ou a Alemanha seguiria capitalista e se tornaria a grande líder do mundo moderno, ou o comunismo conseguiria se instalar por lá e a União Soviética seria imparável.

Azar da humanidade que o nazismo existiu, mas ao mesmo tempo, sorte para os EUA, França e Inglaterra, não?

Para dizer que esse texto é nazista (vulgo “nemli”), para dizer que sempre é mais complexo do que aprendemos, ou mesmo para dizer que sentiu falta do nome de um certo povo: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • “O mundo passou muito perto de ter a Alemanha como potência hegemônica no começo do século passado”

    Em 28 de outubro de 1717: o rei da Prússia (o Estado mais poderoso da Confederação Germânica) instituiu a obrigatoriedade do ensino primário em seu país, obrigando que as crianças ficassem um mínimo de 5 de 12 anos de currículo obrigatório. Detalhe: pela mesma lei, ninguém poderia contratar crianças que não tivessem passado pelo ensino obrigatório. A título de comparação, em 1872, um ano após o surgimento do Império Germânico, havia apenas 15% de analfabetos dentre aqueles acima de 10 anos na Prússia, ao passo que essa taxa chegava perto do triplo no Japão, França e Inglaterra e, no Brasil, segundo o 1o censo naquele ano, mais de 80%.

    Podemos dizer que, a partir de medidas como essa , a Alemanha conseguiu, entre o fim do século XIX e XX, centros de pesquisa acadêmico científico considerados os melhores do mundo, e as pesquisas científicas e a indústria caminhando juntas em um crescimento industrial e acadêmico, que resultou em muitos dos avanços de que desfrutamos hoje em dia, desde a aspirina até a teoria quântica (em que se baseia o celular, o bilhete único, a leitura de códigos de barra, etc.). Sem falar do que foi desenvolvido durante a segunda guerra, como os precursores dos foguetes espaciais, do avião Stealth, e o enriquecimento do urânio (a partir da descoberta ainda nos anos 30).

    Nem vou falar do ensino técnico, que é outra puta covardia.

    • Excelente adição! Educação faz diferença, mas demora.

      Tanto que no final das contas, são os alemães que fazem a bomba atômica e levam o homem para o espaço, repatriados (voluntariamente ou não) por americanos e russos. Isso foi plantado pelos alemães muito tempo antes do nazismo, e foi Hitler que tirou isso deles.

  • Muito bom texto, realmente é de se pensar como o mundo estaria hoje se a Alemanha fosse a maior potencia mundial como os EUA, porém seria diferente pra cada caso, se ela se tornasse comunista, ou se adotasse o capitalismo.

    • Ainda pretendo lançar uma série de textos com “história alternativa”. A Alemanha caindo para o comunismo provavelmente causaria um mundo incrivelmente diferente do atual…

  • (colocando chapéu de alumínio)
    Somir é um agente da ABIN jogando baits pra ver como as pessoas reagem sobre esse assunto nos comentários.
    E se eu falar que a conveniência das consequências das cagadas de Hitler para os EUA, França e Inglaterra foram convenientes demais pra ascensão dele poder ser considerada “orgânica”?
    Não só pra esses países, mas também pra um certo grupo que sempre foi expulso de todo lugar que passou, pois conseguiu uma narrativa que o torna acima de críticas e questionamentos, e de quebra ganhou um puxadinho pra chamar de país e uma grande fatia da mídia.

    • Olha, a gente já até fez uma semana temática inteira tirando sarro com essa conspiração. Era um plano para criar o estado judeu no Suriname, mas o pessoal da Palestina cobrou mais barato… eu sou do time que desconfia de conspirações por não achar que exista coordenação suficiente entre seres humanos nesses níveis. Mas, que muita gente fez vistas pra lá de grossas para o nazismo até ser tarde demais, isso fez.

  • O viés ideológico da história que nos contam sobre as grandes guerras e o papel do partido nazista esconde uma realidade surpreendente: os alemães tornaram-se gigantes apesar do nazismo, não por causa dele. Aprendemos que o mundo não tolerou a maldade de Hitler e que todos se juntaram para derrubar o ensandecido povo alemão, mas a situação é bem mais complexa do que isso…”

    Taí algo que não se lê em qualquer lugar, Somir. Imagino que seja porque, recorrendo a outro chavão, “a história é escrita pelos vencedores”. E esses vencedores, claro, vão sempre puxar ao máximo a brasa para sua própria sardinha, impregnar seus relatos sobre o que aconteceu com a sua ideologia – como se na vida real houvesse um lado “100% certo” e outro “100% errado” – e formatar seus testemunhos para as gerações seguintes da maneira que melhor convier a seus interesses.

    • Devem achar que se sobrar qualquer porcentagem de relativização na história contada, o povo não vai entender. A narrativa de mocinho e bandido funciona e não queriam mexer nisso. Como se fosse minimamente complicado entender por que o nazismo foi um desastre…

  • “Porque não se enganem: o mundo não estava lutando pelos direitos de pessoas de “raças inferiores”, em nenhum momento.” Por mais desagradável que seja admitir, isso, infelizmente, é verdade. O que leva a concluir então que, no fim, a razão para tudo o que aconteceu pode ser resumida naquele velho e surrado chavão: “É a economia, estúpido!”.

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