Radioatividade.

O universo nunca fica parado. Tudo o que já conhecemos sobre ele é baseado no princípio de que dado o devido tempo, toda a matéria “quer” chegar num estado de menor energia possível. Todos os vínculos entre as partículas devem se desfazer para alcançar um estágio ideal de inatividade. E um dos processos mais importantes nessa corrida rumo à paz infinita é também um dos mais poderosos: a radioatividade.

Existem quatro formas de energia conhecidas: a gravidade, o eletromagnetismo, a força nuclear forte e a força nuclear fraca. São essas energias que permitem a existência de tudo o que está ao nosso redor: desde buracos-negros colossais até mesmo o menor dos átomos, tudo exige uma quantidade considerável de energia para ficar junto, dependendo da escala. E isso não é exatamente um cenário sustentável. Usando um exemplo mais fácil de visualizar: é mais ou menos como se tudo o que conhecemos seja uma bola colada no topo de uma rampa. Você sabe que assim que a cola enfraquecer, a bola vai rolar para baixo. O universo não deixa de ser uma infinidade de bolas coladas (com colas de diferente força) no topo de uma grande rampa. Essa tendência de rolar ladeira abaixo é basicamente o que chamamos de entropia.

Existimos porque a matéria é colada, mas nenhuma cola é perfeita. Nem mesmo a mais forte de todas: a energia nuclear forte. Responsável por segurar os quarks juntos (quarks são a menos subdivisão conhecida da matéria), ainda consegue segurar prótons e nêutrons juntos no núcleo dos átomos. E precisa de tanta energia para segurar essas coisas minúsculas que quando elas são separadas à força, soltam uma quantidade de energia gigantesca (em relação ao tamanho, é claro). Faça isso numa escala grande o suficiente e você tem uma bomba atômica! Separar núcleos de átomos para gerar energia é o que chamamos de fissão nuclear.

Porém, como não existe cola perfeita, eventualmente todos os núcleos vão acabar se separando naturalmente. Quanto mais simples o átomo (vulgo quanto menos prótons e nêutrons no seu núcleo), mais difícil é para esse processo acontecer. Pode parecer o contrário do que se espera, afinal, costumamos enxergar força em números, mas quanto maior o átomo, mais perto do limite de quanto energia podem carregar. Uma flutuação no nível de energia de um átomo de hidrogênio dificilmente tira dele a capacidade de segurar só duas partículas juntas, mas quando falamos de elementos como o Urânio, que costuma ter 92 prótons e 146 nêutrons para segurar juntos aqui na Terra, a chance de alguém escapar aumenta consideravelmente. Em outro exemplo simplista: é mais fácil segurar duas laranjas do que 238.

Pois bem, aproveitando o exemplo do urânio: átomos com um maior número de partículas em seus núcleos tendem a ser instáveis. Salvo alguns laboratórios especiais aqui na Terra, os outros únicos lugares onde a criação de um átomo tão grande é possível são gigantescas explosões estelares. Só com o poder de uma supernova para que a natureza consiga chegar nas escalas de energia necessárias para grudar tantas partículas em qualquer núcleo atômico. E como já vimos, quanto mais energia precisa para fazer, mais visado pela entropia o átomo se torna: são muitas laranjas para segurar… então, de tempos em tempos uma delas cai. E chamamos isso de radioatividade!

E esse processo é aleatório no sentido que não dá para prever quando uma dessas partículas vai escapar do átomo. E essa impossibilidade é definida pela física quântica de uma forma que eu vou explicar de forma terrivelmente simplificada: nessas escalas da matéria, o próprio ato de observar já é capaz de gerar interações com o que você está vendo. Observar uma árvore não muda as características da árvore, mas observar uma partícula fundamental presume que alguma coisa “bateu” nela para ser medida por você. Mesmo a luz pode mudar a forma como uma dessas partículas age. Para chegar no seu olho, um fóton precisou bater naquela partícula em algum momento recente. Mais ou menos como se você fosse cego e precisasse analisar um carro e uma bolha de sabão. Se você colocar a mão no carro, ele continua sendo um carro. Se você encostar na bolha de sabão, ela deixa ser bolha. Pronto, está aí a explicação mais básica do princípio da incerteza que você vai ler. Para sabermos quando um átomo vai decair, precisamos observá-lo. E ao observá-lo, encostamos na bolha de sabão.

Mas, mesmo assim, quando pensamos em muitos átomos de uma só vez, o ritmo se torna mais previsível. Não sabemos exatamente quando vai acontecer, mas sabemos que depois de um tempo vai acabar acontecendo. Por isso podemos dizer que átomos radioativos tem uma vida definida. Não sabemos em que ritmo, mas sabemos o quadro geral. Um átomo de urânio 238, por exemplo, tem uma meia-vida de 4.4 bilhões de anos, ou seja, depois dessa quantidade imensa de tempo, existe 50% de chance de ele ainda existir. Ou, em termos mais simples: 1 quilo de urânio 238, se deixado quieto, vai se tornar 500 gramas em 4.4 bilhões de anos.

Alguns elementos são estáveis, a maior parte dos elementos que estão ao nosso redor no dia-a-dia não tem data marcada para se transformar em outra coisa pelo processo de decaimento. Não quer dizer que são eternos, porque tem muitos mais processos que podem desfazê-los, mas até onde sabemos, desse mal não morrem. Exemplos: ferro, oxigênio e carbono (ainda bem, dependemos demais desses elementos para existir). Já outros são tão insanos em sua constituição, tão carregados de partículas em configurações exóticas, que mal conseguem existir. Isso é especialmente válido para os elementos criados por seres humanos: geralmente a parte de baixo da tabela periódica, com nomes que a maioria de nós sequer ouviu: o nobélio, por exemplo. Ele não é estável em nenhuma configuração, então sempre quer desaparecer. A versão mais estável dele dura menos de uma hora antes de virar outra coisa, a menos estável dura meros 3 microssegundos.

Só para relembrar: prótons tem carga positiva, nêutrons são… neutros e os elétrons tem carga negativa.

Pois bem, mas como acontece esse processo? A radioatividade pode ser dividida em 3 tipos de emissão de partículas: alfa, beta e gama. Sim, faltou criatividade. Os átomos mais pesados são os únicos que conseguem emitir partículas alfa, pois elas são formadas por dois prótons e dois nêutrons que escapam do núcleo em alta velocidade. O átomo basicamente perde um núcleo de Hélio no processo. Quando escapa, é chamada de radiação alfa. Na versão beta, quem escapa é um elétron ou pósitron (a versão com carga positiva do elétron), dependendo do que “escapou” do núcleo do átomo. Se o núcleo tinha muitos nêutrons, um deles é expulso e se transforma em três partículas: um próton, um elétron e um antineutrino (fica para outro dia essa explicação). Se tinha muitos prótons, o que escapa vira um trio composto de nêutron, pósitron e neutrino. E por fim, a radiação gama: de forma simplificada, depois que as outras formas de radiação acontecem, sobra uma energia extra no núcleo que precisa ser expulsa dali. Ela sai em forma de uma partícula/onda chamada raio gama. É tecnicamente a forma mais energética que a luz pode assumir, pois é carregada por fótons.

As três formas são muito perigosas para o corpo humano, é mais ou menos como se cada átomo instável (radioativo) fosse uma bomba de pregos. Toda vez que explodem, lançam pedaços minúsculos que atravessam quase qualquer barreira e podem quebrar até mesmo o nosso DNA. E como alguns de vocês já devem ter notado: como câncer é basicamente nossas células se multiplicando de forma errada por erros no DNA, está aí a conexão entre radiação e a doença. No que tange a nossa saúde, cada uma dessas formas de radiação tem um grau de perigo e um grau de proteção inversamente proporcionais.

Explico: radiação alfa solta partículas grandes, que se entrarem no corpo humano causam um verdadeiro caos nas células, mas pelo tamanho podem ser facilmente bloqueadas até por uma folha de papel. Radiação beta está no meio do caminho, é um pouco menos danosa porque é menor e “bate” em menos coisas no nosso corpo, mas precisa de pelo menos uma folha de alumínio para ser bloqueada. Quanto menor, mais fácil atravessar qualquer coisa. E por final, a radiação gama, que não é maior que um fóton, mas tem muito mais energia para atravessar as coisas. Um pouco de radiação gama não é problema, porque tende a passar direto até mesmo pelos nossos corpos (os Raios-X são uma versão menos energética dela), mas se você quiser se proteger dela mesmo, vai precisar de uma parede de chumbo.

Somos expostos à radiação o tempo todo, mesmo aqui na segurança da Terra e longe de concentrações de elementos radioativos. O Sol é uma usina de radiação atirando na gente o tempo todo. Um pouco não é tão danoso assim, até porque nosso organismo já tem alguns sistemas de proteção para DNA danificado através de redundância (tem muita coisa duplicada e coisas muito quebradas podem não ser copiadas), dá para ter algumas partes quebradas sem perder a informação total. E o que costuma chegar aqui do espaço não são as mais perigosas (alfa e beta) porque são mais pesadas e não viajam tão longe assim, especialmente considerando as barreiras que temos na atmosfera e no campo magnético. No espaço, contanto, as coisas são mais complicadas: naves e trajes espaciais precisam de muita proteção nem tanto pelo frio ou detritos, mas pela radiação correndo solta no vácuo.

Não é que você precisa ter medo de radiação, você precisa ter respeito. Alguns de nossos melhores cientistas pereceram aprendendo essa lição, incluindo a famosa Marie Curie. Não vamos fazer esse sacrifício ser à toa, não? E no final das contas, até vale a pena pela lição sobre a natureza do universo: tudo o que fica parado decai. Sem colocar mais energia em qualquer processo, é seu caminho inevitável ir perdendo, pouco a pouco. O universo é caótico, e é isso que nos permite existir.

Para dizer que a informação já está decaindo no seu cérebro, para dizer que minhas analogias são terríveis (se você é físico) ou mesmo para dizer que minhas analogias são excelentes (se você não é): somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Só o Somir mesmo pra falar sobre um assunto complicado como radioatividade de uma forma que qualquer um entenda e ainda por cima tornar essa explicação interessante! Já pensou em escrever livros didáticos ou em criar um canal de ciência no YouTube?

    “Existimos porque a matéria é colada, mas nenhuma cola é perfeita. Nem mesmo a mais forte de todas: a energia nuclear forte. Responsável por segurar os quarks juntos (quarks são a menos subdivisão conhecida da matéria), ainda consegue segurar prótons e nêutrons juntos no núcleo dos átomos. E precisa de tanta energia para segurar essas coisas minúsculas que quando elas são separadas à força, soltam uma quantidade de energia gigantesca (em relação ao tamanho, é claro). Faça isso numa escala grande o suficiente e você tem uma bomba atômica! Separar núcleos de átomos para gerar energia é o que chamamos de fissão nuclear”.

    Basicamente, todo esse parágrafo pode ser resumido no famoso E = mc² da Teoria da Relatividade do Einstein, não? Com Massa e Energia sendo essencialmente duas faces de uma mesma moeda. Nessa equação, E representa Energia, m representa massa e c representa a constante da velocidade da luz. Considerando essa constante da velocidade da luz como sendo 300.000 km/s e multiplicando-a pela pequeníssima massa de um átomo, obtém-se uma quantidade imensa de energia. Acertei?

    • Eu só não tenho um canal assim no YouTube porque não tenho tempo hábil. Um dia o desfavor chega lá.

      E sobre à equação, exatamente: ela demonstra o potencial energético “escondido” na matéria. Esse universo material no qual vivemos custa MUITO caro para ser mantido assim, em termos de energia. E lembrando que é a velocidade da luz AO QUADRADO. Então, pode multiplicar por 90.000.000.000, e não 300.000. Bota energia nisso…

      • Um canal de ASMR seu seria muito rentável, fui assistir um vídeo antigo do Desfavor e putaquepariu que voz DELICIOSA

      • Verdade. Tinha esquecido desse detalhe importante de a velocidade da luz ser AO QUADRADO na equação. E a fissão nuclear também gera uma reação em cadeia, certo? As partículas que se soltam do núcleo do primeiro átomo se chocam com os núcleos de outros átomos próximos; que por sua vez também liberam partículas que causam a fissão dos núcleos de mais outros átomos nas proximidades e assim por diante. Correto?

        • Gera reação em cadeia em condições ideais, e mesmo assim, não é tão simples assim, tanto que é muito difícil fazer uma bomba atômica que funcione de verdade. As bombas de Hiroshima e Nagasaki gastaram só uma parte do combustível, e mal transformaram duas gramas do plutônio em energia, somadas.

          • “(…) e mal transformaram duas gramas do plutônio em energia, somadas.” Desculpa, mas o certo é “dois gramas”, Somir. Grama como unidade de peso é no masculino.

  • Amo esse assunto. O observador é capaz de impedir/atrasar o decaimento do átomo só por ficar olhando para ele (papo técnico: Efeito Zenão).

    Nossa mente interfere diretamente na realidade que percebemos.

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