Terrivelmente inepto.

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou hoje que indicará durante o governo um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF (Supremo Tribunal Federal). Até 2022, quando se completará o mandato de quatro anos, o mandatário poderá sugerir dois nomes para a Corte. As indicações precisam passar por aprovação do Senado. LINK


A vontade de criar divisão é tanta que indicar ministro cristão num país exclusivamente cristão vira motivo de provocação. Desfavor da semana.

SALLY

“Terrivelmente evangélico”. Se eu fosse evangélica, eu ficaria ofendida. O termo “terrivelmente” não costuma anteceder coisas boas, ninguém diz “Fulana é terrivelmente bonita” ou “Fulano é terrivelmente burro”. Terrivelmente denota embate, provocação, dualidade. “Terrivelmente” remete a excessivo, over, em demasia.

Todo mundo sabia que Bolsonaro é isso aí, ele nunca escondeu e está sendo totalmente coerente com tudo que disse na campanha. A picuinha religiosa não é de hoje: sempre que pode ele dá entrevistas exclusivas para canal evangélico e trata a Globo como inimiga. Por mais engraçado que seja ver o pêndulo virando (ou seria capotando?) desta forma, ainda é um desfavor, pois alimenta a rivalidade.

Nós votamos no Bolsonaro para ele fazer exatamente isso que ele está fazendo: ser um brasileiro médio sem noção que, de tanta cagada, acabe implodindo o sistema. Acreditamos que o sistema, de forma genérica, é corrupto e ineficiente e que é preciso destruir tudo para recomeçar do zero com algo que realmente funcione. Bolsonaro, como a merda que é, está criando toneladas de adubo para isso.

O problema é que, além de fazer merdas que podem implodir com tudo, ele ainda está alimentando uma polarização que já estava mais exacerbada do que o ideal. Ele tinha a oportunidade de fechar de vez o caixão dos opositores respondendo com civilidade às provocações de lado, mas, ao invés de fazer isso, caiu no jogo e está brigando de igual para igual.

Isso ficou muito claro para mim quando Lula disse, dentro da prisão, que a facada no Bolsonaro foi uma armação “pois não saiu sangue da barriga”. É insano afirmar uma coisa dessas, dizer que todos os médicos da Santa Casa, os socorristas, os médicos do Albet(o) Einstein e todos os envolvidos estão mentindo. Dezenas de médicos já explicaram o mecanismo que faz com que uma facada na barriga nem sempre jorre sangue. Ao dizer isso, Lula estava se queimando sozinho.

O que Bolsonaro fez? Ficou calado e deixou o outro se queimar sozinho? Não, claro que não. Ele fez o que ele sabe fazer de melhor: foi um brasileiro médio. Falou que se a facada fosse na barriga do Lula jorraria cachaça. Sim, é engraçado pra cacete, eu ri alto quando vi ele dando essa “declaração”, mas não é postura de um Presidente da República e não é postura de quem quer sair por cima nessa dinâmica. Ele foi até o fundo do poço onde está a escória trocar soco com eles, de igual para igual.

Por isso, o Ministro Terrivelmente Evangélico me incomoda. Não por misturar Estado com Religião, algo que sempre aconteceu e nunca foi novidade. Estado Laico não existe no Brasil, nunca existiu. Quem criticar a interferência da religião no Estado será inocente ou cego, esse trem já partiu faz tempo. O grande dano dessa postura do Poket é acirrar ainda mais a separação, a rivalidade, a rixa entre a população. Dividir para conquistar.

Esse esquema de dualidade é tóxico por diversos motivos, para o pior deles é: gera no povo a falsa sensação que votando na oposição se está escolhendo algo totalmente diferente do governo anterior. Eles podem rivalizar, discordar ou se digladiar o quanto quiserem, mas não percam uma coisa de vista: são todos exatamente a mesma merda, só muda a alegoria. Não há ideologia nos políticos brasileiros, há apenas disputa pelo poder.

Nessa brincadeira de polarizar, o povo vota em um, é uma merda, quatro anos depois vota no outro, que também é uma merda e assim alterna lados sempre na esperança que o “opositor” seja a salvação. Nunca será, pois eles são a mesma merda, apenas antagonizam na arena, debaixo dos holofotes, para inglês ver. O problema não é a pessoa, é o sistema. O sistema não é mais reparável, está além de qualquer remendo. Está falido, e deve ser substituído por um novo o quanto antes.

Porém, enquanto tivermos dois lados em embate, o povo sempre terá a esperança que uma “oposição” venha e faça algo totalmente diferente de quem está no poder. Essa briga, em um mundo polarizado, atrai atenção e convida o espectador a tomar lados. As pessoas gostam de sentir pertinência a um grupo e, rapidamente, tomam lados, vestem a camisa, perdem o discernimento e vão para a arena brigar junto com seus políticos de estimação.

É uma grande cortina de fumaça. É aquela frase que eu cito aqui desde 2009: “Para que as coisas continuem como estão, é preciso que mudemos”. É uma repaginada na dinâmica política para assegurar essa alternância de poder e zero mudanças na forma como o país é conduzido, independente de quem esteja no poder.

Então, quando o Bolso provoca dizendo que vai colocar um Ministro Terrivelmente Evangélico, ele acirra essa crença na diferença, na separação, na desunião. O lado “vencedor” está sambando na cara do lado “vencido”, uma infantilidade sem precedentes que só convida mais e mais o brasileiro a entrar nesse chiqueiro político, cheio de esperanças que nunca se realizarão. É canalizar a energia de um povo idiota para algo totalmente infrutífero, piorando a já moribunda convivência social.

Enquanto o povo estiver se matando para defender um “lado”, para defender “o lado certo”, para defender “quem tem razão”, nada vai mudar. Continuaremos nessa ridícula alternância de poder, com metade da população sempre descontente e a outra metade tripudiante e incapaz de uma autocrítica. Com uma população enfraquecida desta forma, fica difícil que alguém dê aquele chutinho necessário no pau da barraca para que ela acabe de despencar.

Um Ministro Terrivelmente Religioso não é novidade no Brasil, muito pelo contrário, é a regra, é a forma de funcionar: Estado misturado com religião. E se você está puto por não ser da SUA religião, você é parte do problema.

Para dizer que jurava que íamos meter o pau em evangélicos, para dizer que está achando graça do circo pegando fogo ou ainda para dizer que quer mesmo é um Ministro Terrivelmente do Candomblé: sally@desfavor.com

SOMIR

Como a Sally já explicitou a tática de “dividir para conquistar”, vamos nos concentrar aqui no quadro geral e desarmar uma bomba: o Brasil não está caminhando para o fanatismo religioso simplesmente porque já somos, como país, terrivelmente cristãos. Um ministro evangélico seria só mais uma gota nesse oceano para lá de poluído pela mentalidade atrasada da religião.

Por mais que o desfavor atraia um público diferenciado, estatisticamente, você que está lendo ainda deve ser cristão. Pudera, os últimos censos sugerem que 96% da população seja cristã. E pelos números, ainda podemos presumir que num grupo de 100 pessoas, é possível não encontrar um ateu que seja. A coisa está nesse nível. Nos três poderes, eu não consigo lembrar de nenhum ateu assumido, no Brasil, até os comunistas são religiosos! E como não existe nenhuma divisão considerável entre religiões aqui, no máximo uma rixa entre católicos e evangélicos que nunca virou violência física, podemos afirmar com segurança que não falta gente terrivelmente religiosa nesse país, seja lá qual classe social e posição de poder que ocupem.

O que um ministro do STF terrivelmente evangélico faria? Seria contra o aborto? A eutanásia? Impediria que igrejas pagassem impostos apesar de serem abertamente empresas focadas em geração de lucro? Bom, acho que esse juiz não teria muito o que fazer, porque quem já está lá faz exatamente isso, há décadas. O Brasil está parado no tempo em basicamente tudo o que tange os interesses dos cristãos. Seus direitos humanos acabam onde começam as palavras de um amigo imaginário. Vai dizer que isso não é terrível?

Como eu enxergo tudo isso do ponto de vista de um ateu, Bolsonaro não me impressiona. É a burrice e o atraso que eu já me acostumei a ver, ele só está falando de forma mais provocativa. Para quem já se acostumou com a ideia de que gente com um problema mental sério de acreditar em cobra falante pode ter poder sobre você, não é um juiz conservador a mais ou a menos que vai gerar algum incômodo. Discussões importantes sobre a vida humana já estão contaminadas por um grupo muito barulhento de fanáticos e uma grande massa com medo de ir para o inferno desde que o mundo é mundo. E a resistência em países como o Brasil é pífia.

Aqui, como eu já disse, o comunista é cristão, e o mais engraçado, o lacrador também é cristão. O brasileiro é tão homogêneo que virtualmente toda a violência aqui é baseada na pobreza e seus efeitos colaterais como o crime organizado e a brutalidade do povo. O mais longe que chegamos no campo ideológico é briga de torcida organizada (seja para time de futebol ou candidato à presidência). Um país dominado por gente terrivelmente religiosa é um país com a profundidade intelectual de um pires.

Sim, pobreza, exploração e vários outros elementos explicam os podres desta nação, mas não podemos nos esquecer desses 96%. Um país que só ensina evolução na escola porque os religiosos tinham preguiça de disputar isso até pouco tempo atrás (e só estão imitando os fanáticos americanos, como bons macaquitos) não é um país realmente talhado para ganhar prêmios Nobel, não? Pensar não é muito estimulado por aqui porque pensar demais tende a te levar para um caminho onde religião perde o valor. Se alguém quer ver como termina um país terrivelmente cristão, no Brasil basta sair na rua. É isso. Já vivemos nessa realidade.

Porque o cristianismo moderno é suficientemente permissivo para termos alguns elementos de estado laico, o momento histórico de cruzadas e inquisições já passou, estamos vivenciando os primeiros momentos de maturidade dessa religião. Tanto que ao redor do mundo está perdendo fiéis para o islamismo a olhos vistos: o ser humano ainda tem uma atração assustadora por fanatismo violento ultraconservador, e essa é a religião que está providenciando isso atualmente. De uma certa forma, o único alento que temos no Brasil é que estamos com uma infecção mais branda que impede a outra, mais mortal, de se instalar. O brasileiro médio não tem anticorpos contra misticismo e superstição, então é só isso mesmo protegendo.

O sistema de um país é reflexo de suas pessoas, e as pessoas não são a meia dúzia de histéricos no Twitter, as pessoas aqui são basicamente uma mistura de Lula e Bolsonaro. Conservadores com tudo o que influencia a vida do outro, liberais com seus gostos pessoais. E isso é reflexo direto da cultura formada pela religião dominante no país: um misto de castigo e perdão aperfeiçoado por milênios de experiência. O ópio do povo brasileiro é a ideia de fazer a merda que quiser e apontar o dedo para o outro que faz a mesma coisa, desde que no final possa pedir perdão e recomeçar o ciclo. Nem era o ponto do texto, mas taí uma definição que explica por que o brasileiro é tão cristão: é a religião que mais te permite levar vantagem em cima da divindade. O deus dos brasileiros é superpoderoso, mas é otário o suficiente para não ver como eles estão falando uma coisa e fazendo outra.

Um sistema baseado nesse tipo de mentalidade não vai pra frente. Não tem espaço para estado laico, afinal, essa ideia nos tira da segurança presumida de poder “enganar” o seu deus e recoloca a responsabilidade dos atos de volta na mãos das pessoas. Não é questão de um ministro ou outro falando baboseiras evangélicas ou católicas, é questão do que é o brasileiro mesmo. E isso não muda a não ser que todo mundo seja obrigado a mudar de mentalidade. Já estou acostumado a ter direitos básicos limitados por superstição alheia, me acorde quando algo realmente acontecer…

Para dizer que eu ofendi até que pouco os religiosos (eles não entendem mesmo), para dizer que estamos sendo o sapo na panela, ou mesmo para dizer que já está cozido faz tempo: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Sally acredita em ontocracia evolutiva… Isso? No Brasil? Mais fácil chover cadáver que isso.

    Bolsonaro é quase que um Hugo Chávez, só que do outro lado do espectro político e pelas perspectivas pra 2022, teremos uma provável eleição dele disputando contra o Playboy da Terceira Idade e os vira-latas do presidiário.
    Os vira-latas do presidiário vão fazer de tudo pra tentar fazer com que o Playboy da Terceira Idade não vá pro segundo turno, mas provavelmente não terão sucesso porque vão colocar o Palerma de novo de candidato.
    Com o segundo turno entre o Playboy da Terceira Idade e o Hugo Chávez de Direita, os vira-latas vão ficar reclamando de fraude e vociferando que foi armação de gente do partido do Playboy. Nisso o Hugo Chávez de direita é reeleito e vocês que se preparem que isso aqui arrisca de virar uma grande Venezuela, só que sem a farsinha de defender um suposto socialismo do século XXI.

      • Também não acredito em nada – ou melhor, espero por qualquer coisa, mesmo a mais improvável ou estapafúrdia – , mas não acho que o Bolsonaro chegue a ser um “Hugo Chávez, só que do outro lado do espectro político”. Por pura falta de capacidade para tanto.

  • Embora algumas coisas não sejam tão estranhas, ou até previsíveis, por outro lado diria que é surreal tudo isso que anda acontecendo, nossa! Parece que a involução humana está é andando a passos acelerados e, neste caso, eu prefiro acreditar mesmo que estamos caminhando para a ruína total pra daí construir algo novo.

  • Isso é simplesmente o choque entre a figura idealizada do povo brasileiro e o que ele realmente é.
    Achou que o povo brasileiro era uma massa bem politizada que lê Marx, se importa com a solidão da negra transexual e passa o tempo livre planejando a revolução? Achou errado, milennial.

    • O mundo não é a bolha na qual a pessoa vive. Tadinhos, quando descobrem não aguentam o rojão e precisam tomar remedinho tarja preta.

  • Quem faz escândalo com uma decisão dessas:
    1- não deve saber quem é o Bolsonaro
    2- não deve conhecer o comportamento médio do povo brasileiro
    3- deve achar que o pensamento do brasileiro é o mesmo pregado por esses “influencers” progressistas de rede social.

    • Pois é, não tem nada de novo acontecendo, no mérito da questão, além da afronta. Sempre se fez isso discretamente. Bolsonaro está batendo no peito e berrando, apenas isso

  • Estamos amaldiçoados pelos espíritos dos indígenas exterminados na colonização, só isso explica.
    “O sistema de um país é reflexo de suas pessoas” Sim, a culpa é do Zé das Couves nascido onde Judas perdeu as botas, trabalha desde que aprendeu a andar e mal frequentava a escola pública, a 10 km de sua casa, e só tem tempo pra pensar em como não morrer de fome. Ele é culpado por uma República fundada há mais de 100 anos por interesses longe de serem os do povo e que, desde então, foi só um teatrinho de coronéis disfarçado de democracia. Desde quando existe escolha no Brasil?

  • Eu acho que eu oficialmente virei aceleracionista
    Tudo que eu quero é que aconteça algum desastre o mais rápido possível em escala mundial pra ver se o mundo melhora ou vai tudo pro inferno de vez

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