Justiça psicopata.

Imaginemos a seguinte situação: no seu bairro ou cidade existe um psicopata que só mata criminosos que escaparam da Justiça. Você sabe quem essa pessoa é. Sally e Somir concordam que fazer justiça com as próprias mãos é reprovável, mas não sobre o melhor curso de ação de posse dessa informação. Os impopulares matam a discussão.

Tema de hoje: você denunciaria um psicopata que só mata bandidos?

SOMIR

Não. Eu tenho plena noção dos inúmeros problemas com o conceito de uma pessoa decidir fazer esse tipo de justiça por conta própria, mas não vivo em uma sociedade que me permite fazer a coisa certa. Jamais colocaria pessoas queridas em risco por causa de idealismo, e com certeza não aceitaria uma espécie de “morte social” por me posicionar contra um justiceiro no Brasil.

Pode parecer muito simples escolher entre ser favorável ou contrário ao conceito de uma pessoa qualquer decidir quem pode viver ou morrer, mas não tomamos decisões no vácuo. Existe um contexto na sua vida, cada uma das suas atitudes gera repercussões para as pessoas que vivem ao seu redor, modifica a forma como outras pessoas vão te ver no futuro, e principalmente, é muito complicado confiar no correto funcionamento das instituições num país caótico como o Brasil.

Se eu morasse na Suíça, talvez eu pensasse diferente. Mas esse não é o caso. Vamos analisar tudo o que está em jogo aqui? Em primeiro lugar, numa sociedade brutalizada como a brasileira, onde o povo tende a não pensar duas vezes antes de fazer um linchamento ou torturar publicamente um ladrão de carteiras, todo o conceito de justiça está muito mais conectado com a ideia de vingança do que com a de ressocialização. Para o brasileiro médio, o correto é causar sofrimento para quem lhe causa sofrimento. Não é nem um pouco difícil imaginar como esse povo reagiria à ideia de um assassino de bandidos: tratando como um herói.

Talvez para o leitor médio do desfavor isso seja um fascinante exercício de ética social, mas somos um subgrupo pra lá de limitado da população. Não existem zonas cinzas para a maioria da população: ideias arcaicas como “olho por olho” são as mais aceitas. Não há refinamento. Gostaria que fosse diferente, mas na prática, ao denunciar esse psicopata você estaria nadando contra a maré da sociedade na qual está incluído. Se quer ser corajoso assim, tenho orgulho de você, mas eu escolho não comprar uma briga que não posso vencer. Quem fizesse o “herói” do povo ser preso se tornaria um vilão aos olhos da maior parte da população.

E talvez alguns de vocês estejam pensando que basta fazer uma denúncia anônima. E aqui eu trago dois problemas: o primeiro é que a polícia brasileira é reflexo cristalino dessa mentalidade de vingança. É até compreensível que o policial acabe radicalizado nesse sentido depois de passar muito tempo na rua, mas mesmo assim, você vai encontrar poucos grupos mais convencidos que o caminho é matar antes de ser morto que o dos profissionais da área. O risco de você ser exposto pelos policiais ou mesmo ver eles protegendo o psicopata é muito maior do que zero. Para muitos policiais, você estaria se revelando um inimigo da justiça ao tentar tirar de circulação um assassino de bandidos.

Digo mais: a chance de o psicopata já ter suporte da polícia também é bem maior que zero. E aí, você seria identificado imediatamente. Uma das poucas alternativas seria fazer essa denúncia na internet tomando todas as precauções de segurança possíveis (spoiler: você provavelmente não sabe fazer isso e não conhece ninguém que sabe), mas novamente, é muito mais provável que você transforme a pessoa em heroína do povo e não possa ajudar nas investigações depois pela repressão social que receberia. Se não prenderem o psicopata, ele vai ficar melhor ainda no que faz e ter muita gente disposta a ajudá-lo pela fama que vai conseguir.

E outra: não é um traficante genérico que anda de carrão num bairro pobre e guarda quilos de provas contra si no quarto de casa, estamos falando de um psicopata. Dificilmente ele vai ser pego sem um testemunho ou uma colaboração direta sua para as investigações. Uma simples denúncia dificilmente resultaria em prisão se você a fizesse de forma anônima. E agora o psicopata saberia que está sendo vigiado. Boa sorte vivendo com essa ideia. Embora não seja obrigatório que um psicopata seja extremamente inteligente ao ponto de te encontrar, a chance com um deles é definitivamente maior que a média.

Se eu tivesse muita confiança na polícia e na capacidade dela de pegar o psicopata, talvez pensasse diferente. Mas eu sei onde vivo. E mesmo considerando que a coisa funcione e a polícia prenda o cidadão, você acabou de assinar uma sentença de morte para daqui a 30 anos. Ninguém fica preso mais do que isso no Brasil. Espero que nem você nem ele pretendam ficar vivos por mais tempo do que isso. E com certeza, é bom não ter filhos. Percebem como a chance de isso dar errado para você e para as pessoas ao seu redor são grandes demais?

O conceito de justiceiro está incutido na mente das pessoas, os heróis dos filmes e séries são pessoas que tomam a lei nas próprias mãos, a ideia de vingança é algo incrivelmente primal no ser humano. Se eu acho que é uma boa ideia ter um psicopata matando pessoas que ele julga merecedoras da morte é irrelevante dentro do contexto maior da sociedade na qual estamos inseridos. Quando você tem pessoas queridas ao seu redor para proteger e quando você precisa da sociedade para continuar vivendo, custa muito caro fazer esse tipo de movimento contra o fluxo natural da maioria das pessoas.

É uma questão de escolher suas batalhas. O mundo nunca vai ser da forma que queremos que ele seja. Acho louvável que até uma certa idade pensemos dessa forma combativa e revolucionária, mas depois de um tempo você tem que começar a enxergar o quadro maior: que existem engrenagens pesadas em funcionamento e se jogar sozinho entre elas só vai te esmagar sem mudar o movimento de nada. No Brasil é danoso para você e suas pessoas queridas peitar a ideia de justiça com as próprias mãos. Mudar essa mentalidade é um processo lento e sem atalhos.

Não se mate à toa.

Para me chamar de covarde, para dizer que se parecer com o Dexter você não denuncia, ou mesmo para dizer que você nunca mais conseguiria um emprego depois de denunciar: somir@desfavor.com

SALLY

Supondo que exista um psicopata no seu bairro ou cidade, que só mata criminosos que conseguiram escapar da justiça e ficaram impunes. Suponha que você descobre quem é e tem provas suficientes para que ele passe o resto da vida preso: você o denuncia?

Sim. É crime. Pessoas devem responder por seus crimes. Por mais que se pense que essa pessoa não deva ser condenada, você não é Deus, você não é um Tribunal do Júri, não cabe a você fazer justiça. Os jurados que absolvam o psicopata se entenderem que os crimes que ele cometeu não merecem uma pena.

Quando você vive em sociedade, estabelece um pacto onde abre mão de algumas prerrogativas em nome da paz social. Uma delas é fazer justiça com as próprias mãos. Para evitar que matemos uns aos outros, se convencionou que abrimos mão do nosso direito de julgar e punir, delegando isso para o Estado, respaldado por uma série de regras que tentam assegurar um mínimo de justiça.

Nada disso funciona no Brasil, sabemos bem. Porém, se este povo animalesco consegue cagar um sistema pensado para trazer justiça, imagina o tamanho da bosta que aconteceria se a gente delegasse a cada brasileiro o poder de matar quem ele acha que não é bom para a sociedade e eximir de homicídio quem ele acha que matou bem matado…

Nesse mundo polarizado e bélico, matariam uns aos outros. E cada lado acharia que o homicídio de alguém do outro lado foi justificado. Seria um caos, uma barbárie, uma total desordem. Então, acho que todos concordamos que não dá para abrir essa porta e permitir que a população decida quem merece viver e quem merece morrer.

Mas aí entra um grande problema do brasileiro: ele acha que o povão não tem capacidade, mas ELE tem. Ninguém pode, mas ELE pode. É tolerável essa exceção: ninguém pode fazer tal coisa, mas EU, rei supremo do discernimento e bom-senso, senhor de toda a razão, posso transigir com essa regra e ser a exceção. Não dá, né meus queridos?

É uma premissa básica de quem tem um pingo de noção e boa educação: a regra tem que valer para todos, você não é tão importante, tão inteligente e tão fodão para merecer ser uma exceção. É assim de que se descaralha uma regra: abrindo exceções. Menos, bem menos. Baixa a bolinha que você é um membro da sociedade como outro qualquer, cumpra as regras, que esse é o caminho para uma sociedade decente.

“Ah, mas eu acho que…”. Vou repetir: você não é tão importante. Seu achismo não é a realidade, não é a verdade, não é a solução. Seu achismo é apenas UM ponto de vista, turvado pelas suas crenças, suas experiências e pela pequena bolha na qual você vive. Por mais que você acredite que seu achismo é a melhor das opções, ele leva em conta apenas uma parte da Big Picture e, qualquer pessoa que vê apenas uma parte do quadro todo tem grandes probabilidades de tomar uma péssima decisão.

Quem você pensa que é para se apoderar do julgamento de alguém? Por mais que o Judiciário seja uma merda sem fim, que não exista justiça no Brasil, por mais que esteja tudo errado, se você viola a lei, você é parte do problema, não a solução. É muita arrogância acreditar que você pode apresentar uma solução melhor e tem o direito de tratar de forma privada um caso que deve ser público, pois afeta a toda a sociedade.

Eu entendo quem faz isso em um ato de desespero, como por exemplo para salvar uma pessoa amada. Provavelmente eu faria também, mas, como disse, por desespero. Interferir pela arrogância de acreditar que você tem o poder de abrir uma exceção e deixar assassinatos saírem impunes é de uma megalomania típica de vira-lata.

Usurpar esse poder para você é infringir a lei, tanto quanto aquelas pessoas para as quais se pede punição por infringirem a lei. Você vira exatamente aquilo que critica. Se não gosta de viver em um país onde a lei não funciona, faça as malas e se mude. Contribuir para cobrir ainda mais de merda uma lei que já não funciona não é solução, é aumentar o problema.

Você acha que essas pessoas mereciam morrer? Provavelmente eu até concorde com você, mas se sentir no direito de decidir quem vive e quem morre e se sentir no direito de decidir quem pode matar sem ser punido é aberrante. Você está fora da realidade. Você não tem o senso de coletividade que se precisa para construir um país civilizado.

“Mas Sally, eu não vou fazer nada, só não vou denunciar”. Esse é o problema. Achar que omissão é menos grave do que ação. A consequência dessa omissão é permitir que uma pessoa que vai voltar a matar volte a matar. Se omitir pode ser até mais grave do que agir em alguns casos. No Brasil há essa falsa sensação de que se você simplesmente não faz nada, não pode ser considerado tão culpado. Deixar um assassino solto por omissão é grave, muito grave, você toma uma decisão que afeta a sociedade toda com base no seu achismo pessoal.

Não foi esse o pacto social combinado. Se o pacto combinado não está dando certo isso não te dá ao direito de pisoteá-lo e colocar no lugar sua vontade individual. Por favor, tenhamos um pouco se civilidade e respeito. Você não sabe o que é melhor para o todo por um motivo muito simples: você não tem a visão do todo.

Pode ser que amanhã ou depois esse mesmo psicopata erre nas suas “investigações” e um inocente morra. Pode ser que amanhã ou depois esse psicopata mude seus critérios e alguém que te é importante morra. Mas, mesmo que nada disso aconteça, mesmo que ele continue matando criminosos, ainda assim saiba que é imoral permitir que uma pena de morte seja aplicada em um Estado Democrático de Direito onde não há previsão de pena de morte. Se você limpa a bunda com as leis, não reclame quando você for privado delas.

Para dizer que você coloca os seus interesses e achismos em primeiro lugar, para dizer que critica Bolsonaro mas acha que bandido bom é bandido morto ou ainda para dizer que não denunciaria para evitar a fadiga: sally@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: , ,

Comments (8)

  • 1 – coloco meus interesses e achismos em primeiro lugar
    2- bandido bom é bandido morto ainda mais sem gastar o dinheiro de impostos

    3- não denunciaria para evitar a fadiga e talvez um esquartejamento .

    4- sou muito fã de Dexter e ficaria excitada com um paicopata desses por perto.
    5- Tem traficante e Pm aqui q mata, eu sei e não denuncio. Eu só com uma vidinha não posso arriscar perdê-la antes da hora.

  • O ponto de vista da Sally é correto, faz sentido, é assim que as coisas deveriam ser, mas o do Somir é o mais realista pra mim, infelizmente. Nesse caso aí, é melhor um covarde vivo do que um herói morto. Vai que o psicopata resolve vir atrás de mim ou da minha família por causa de uma denuncia que eu fiz, né (E eu admito que se o psicopata matasse estupradores e pedófilos eu não acharia ruim)…

    “Não é nem um pouco difícil imaginar como esse povo reagiria à ideia de um assassino de bandidos: tratando como um herói.”

    Com o Pedrinho Matador é assim. Até canal no Youtube tem.

  • No meu bairro não teria serventia Seria mais jogo fazer uma vaquinha e propor ao justiceiro ir pra Brasília dar um jeito no STF.

Deixe um comentário para Anônimo Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: