Currículo mentiroso.

Vamos imaginar a seguinte situação: você contrata uma pessoa para sua empresa baseado num currículo excelente. O tempo passa e a pessoa demonstra ser excelente no seu trabalho. Mas, eventualmente você descobre que essa pessoa mentiu muito no currículo. Sally e Somir demonstram estilos gerenciais distintos aqui. Os impopulares passam no RH.

Tema de hoje: deve-se demitir um funcionário excelente que mentiu no currículo?

SOMIR

Não. Eu iria até mais longe e diria que não demitiria nem um funcionário razoável por causa disso, quanto mais um excelente. Quem lida com mão-de-obra no Brasil deve saber que competência básica para o trabalho nos seus funcionários é artigo de luxo por estas bandas. E olha, pelo o que eu leio e escuto de pessoas de outros países, inclusive dos mais desenvolvidos, a realidade não é tão diferente assim no resto do mundo.

Claro que não me agrada a ideia da pessoa ter mentido descaradamente no currículo, é um comportamento preocupante que pode voltar para te morder a bunda no futuro, mas entre um incompetente médio e um competente mentiroso, eu honestamente acho que me arrisco menos com o competente. Gente que se dá bem de verdade no seu trabalho é raridade. A maioria das pessoas só está ganhando um salário. Eu vou ser o primeiro a dizer que não julgo quem não quer se esforçar pela empresa do outro, sagrado direito da pessoa de não querer dar o seu máximo, é uma das bases do capitalismo livre. Mas com certeza dá gosto de ver quem realmente se importa com entregar bons resultados onde trabalha. São visões raras do que a humanidade poderia ser se a maioria de nós se sentisse motivada.

Quando dizem que basta dar conta do básico para ser bem visto no seu trabalho, não estão mentindo: a questão é que o básico está um pouco acima da média de entrega do brasileiro. Estamos acostumados com um padrão de serviço tão ruim que criou-se a ilusão que qualquer coisa melhor que xingar o cliente ou roubar a empresa configura trabalho mediano. Não é bem assim: o básico vai além disso, significa agregar valor ao seu trabalho. É o profissionalismo de fazer direito, aceitar críticas e tentar melhorar. O básico fica um pouco mais complexo a cada dia que passa. E não precisa se matar para conseguir isso: com certeza quem vai ao extremo tem mais chances de subir na carreira (tirando o caso de chefes incompetentes), mas não é obrigatório virar workaholic. Quase todo mundo sabe o que precisa fazer para trabalhar bem, mas escolhe não fazer por uma variedade de motivos, que vão desde não se importar com a empresa na qual trabalham até mesmo outras prioridades na vida. Novamente, não vejo nada de absurdo nisso: liberdade de iniciativa é para todos.

É importante estabelecer isso, porque quem nunca teve a experiência de estar do lado que contrata pode não perceber como bons funcionários são tão essenciais quanto raros. A maioria das empresas tem apenas um punhado deles, quando tem. Especialmente se você trabalhar perto do dono da empresa ou superior hierárquico com poderes e fizer o básico direito, logo logo vai gerar uma relação de dependência que te permite uma série de regalias. Infelizmente até a cultura de chefia brasileira é contaminada pelos incompetentes, e em muitos casos o bom funcionário precisa exigir essas vantagens, porque o chefe sequer pensa nelas. Quando você é acostumado com gente incompetente, infelizmente acaba nivelando o tratamento por baixo. Mas a lógica se mantém: funcionário bom ou excelente é tão importante e raro que é bom para a saúde da empresa oferecer vantagens ou mesmo fazer vistas grossas para alguns problemas.

Ter mentido no currículo é feio, mas como a pessoa entregou o resultado esperado após sua leitura, é mais saudável dar um desconto: ou você tem uma conversa com a pessoa e explica por que mentir é um perigo num ambiente empresarial, ou acha uma forma de puni-la que não envolva seu desligamento da empresa. O custo de manda-la embora é maior do que o risco do comportamento ruim se repetir. Essa é a vantagem de ser um bom funcionário. E olha que estamos extrapolando aqui: funcionário excelente é de uma raridade tão incrível que normalmente merece oferta de sociedade. Talvez a melhor punição aqui fosse voltar a tratar esse funcionário excelente como um normal (vulgo desinteressado e pouco eficiente) por um tempo, e deixar claro que ele tem que ganhar sua confiança de volta.

Quem chega ao ponto da excelência normalmente tem a capacidade de provar seu valor quando pressionado. Provavelmente foi por isso que chegou onde chegou. Para a empresa é excelente ter alguém com sangue nos olhos para recuperar seu status, e não deixa de ser uma lição valiosa para a pessoa: a mentira teve seu custo. Você tem uma empresa, não uma escola para ficar dando lição de vida para criança. Resolve o problema que impacta a sua produção e finanças e segue em frente, porque o mercado está complicado para todo mundo e não há espaço para colocar idealismo acima de lucratividade.

E vamos pensar em outras coisas ainda: muita gente mente no currículo. Não que isso torne a prática aceitável, mas quer dizer que é bem provável que até mesmo seus funcionários merda tenham feito. Mas como eles só estão lá cumprindo tabela, você não se importa o suficiente para ir descobrir. O funcionário excelente que teve sua mentira revelada provavelmente só foi exposto porque seu trabalho muito acima da média chamou atenção. E, porra, vamos ser realistas: se você não foi confirmar os dados do currículo assim que a pessoa foi contratada, fica feio se fazer de ofendido(a) depois de tanto tempo. Eu tocaria o terror primeiro no pessoal do RH por ter deixado isso passar. Ali sim tem funcionário merda facilmente substituível. Ou, no caso de ter aprovado a contratação diretamente, aceitaria meu erro.

E para finalizar, o óbvio: sem um currículo excelente, teríamos contratado essa pessoa? Talvez tenha sido a única alternativa possível para ter esse funcionário excelente nos ranques da sua empresa. Ela mentiu e forçou nossa mão, mas a vida é cheia dessas situações “cinzas”. Algumas mentiras são mais toleráveis que outras. Prefiro ser enganado para o meu benefício. Quem mentiu deve ser punido, mas não no mesmo nível de quem fez algo negativo para a empresa.

Para dizer que eu sempre defendo a mentira, para dizer que hoje em dia currículo é perfil de Instagram, ou mesmo para dizer que mente para menos no currículo porque o diploma de sociologia está te atrasando no mundo do telemarketing: somir@desfavor.com

SALLY

Você contratou alguém por causa do currículo excelente. Com o passar do tempo o desempenho da pessoa se mostra excelente, porém você percebe que o currículo era MUITO mentiroso. Você demite a pessoa?

Sim. Por melhor que seja o desempenho, eu não quero uma pessoa mentirosa e malandrinha trabalhando comigo. Caráter e ética contam mais.

Isso já me aconteceu. E sim, eu demiti a pessoa. Se começou com base em uma mentira, eu não tenho qualquer interesse em prosseguir, não gosto de pessoas malandrinhas que conseguem as coisas com esse tipo de “golpe”. Eu posso entender uma exagerada aqui, uma valorizada ali, em coisas subjetivas para as quais a pessoa dá um valor diferente do meu. Mas, um currículo MUITO MENTIROSO (premissa do tema de hoje) não dá para bancar. Eu não passo pano para mentiroso.

O funcionário era bom? Não era apenas bom, era o melhor, e foi demitido mesmo assim. Pela surpresa da pessoa, percebi que isso não era algo esperado ou comum. Pode ser o melhor em desempenho, mas antes do desempenho está a ética, o caráter, a confiança. Não me serve de nada alguém com muita qualidade técnica que mente, engana e não tem os mesmos valores básicos que eu.

Acredito que eu seja voto vencido hoje, afinal, o brasileiro é o rei de justificar falta de caráter com produtividade: “Ah, mas o Neymar faz gol”. FODA-SE, pode ser o melhor jogador do mundo que, com essa postura, eu não quero. Resultado é consequência, não prioridade. E, podem reparar, quem trata resultado como prioridade acaba sempre se ferrando, de uma forma ou de outra. Escolha uma boa equipe, competente, alinhada com seus valores e o resultado vem.

Tem coisas com as quais eu posso transigir, tem outras com as quais não. Caráter e ética são coisas com as quais eu opto por não transigir, pois a vida me ensinou que essa conta é muito cara de pagar. Ver funcionário como uma peça da engrenagem que tem apenas que produzir para fazer a máquina funcionar está longe, muito longe do que eu penso ser o papel de um empregador. Então, não tem dessa de passar pano dizendo que a pessoa está ali só para fazer o trabalho dela. Não, está ali, antes de mais nada convivendo comigo.

Analisando o cenário atual do mercado de trabalho, fica ainda mais gritante a acomodação que é tolerar uma tonelada de mentiras descaradas: tem muita, mas muita gente boa precisando de trabalho. Certamente eu vou encontrar alguém tão bom quanto, só que menos mentirosinho e malandrinho.

Ninguém é insubstituível e não serei eu a ficar com um mentirosinho malandro por perto por preguiça de encontrar ou treinar outra pessoa igualmente competente. Tá sobrando gente no mercado, o papel do empregador é peneirar e capacitar. Não gosta? Não tem paciência? Vai ser funcionário de alguém então, porque para empregador você não serve.

Você ficaria com um namorado(a) que faz sexo muito bem mas mente e te engana em coisas que você considera importantes? Então por que merdas ficaria com um empregado? “Ah, mas eu cago para os meus empregados”. Então, meu anjo, você é tão merda quanto o merda que contratou, fique com ele, vocês se merecem.

Eu não quero perto de mim, seja como amigo, como colega, como namorado, como empregado ou como for uma pessoa com esse mindset de malandragem jeitinho brasileiro. Simplesmente não quero. E minha vida melhorou muito desde que estabeleci uma peneira forte nesse sentido. Não, você não vai ficar sozinho nem sem empregados, tem muita gente correta por aí, a sociedade é que não se dá ao trabalho de procurar por elas.

É muito mais fácil presumir que “empregado é tudo mentiroso”, assim como se presume que “homem é tudo canalha” ou “mulher é tudo maluca”. Ao estabelecer essa presunção, a culpa não é mais sua, de não dispensar o funcionário mentiroso e ter o trabalho de procurar até achar uma pessoa competente e correta. Não é responsabilidade sua, empregador é tudo mentiroso, não adianta procurar. Então tá.

Minimizar a questão passa uma mensagem muito clara: esse tipo de comportamento é tolerado, perdoado. Não interessa o que você diz, por mais que você repita mil vezes que esse tipo de comportamento não será tolerado novamente, se você tolera, seus atos te contradizem. Além disso, uma pessoa correta não faz esse tipo de coisa, independente de tolerarem ou não. Ela não o faz por ela, por não se sentir bem fazendo isso. Ainda com a sensação de que gente assim não existe? Bom, isso pode ser um indicativo de que você é assim e mede o mundo pela sua régua.

Quem dorme com porco come farelo. É muito inocência pensar que você vai conviver todos os dias com uma pessoa assim e não vai te afetar de forma alguma. Você é muito esperto, né? Ninguém vai te sacanear. Pois, adivinha só, sempre tem um esperto mais esperto que o esperto.

O fato de escolher manter uma pessoa assim por perto vai atrair cada vez mais disso para você. Se você pensa que dá para manter gente merda na sua vida sem respingar merda em você, permita-me te poupar tempo: não dá. E não tem dinheiro no mundo que compense.

Agora se você pensa que mentir absurdamente no currículo não é um problema de caráter, uma falha ética grave, bom, não tenho nem o que dialogar com você. Você pertence a outro mundo que não é o meu e provavelmente está fora do alcance da minha mão, achando que meus argumentos são um exagero.

Mas se você ainda tem ética para entender que mentir descaradamente para conseguir o que quer não é ético e depõe contra você, ponha a mão na consciência e pense na sacanagem que é fazer alguém investir tempo e dinheiro em você, te treinar, te qualificar e tirar a vaga de outras pessoas que atendiam melhor ao desejado.

É um ato egoísta de criança mimadinha que quer aquilo de qualquer jeito, mesmo que para isso precise mentir, enganar e sacanear outras pessoas. Se você vê seu ambiente de trabalho ou seu empregador como inimigo, é hora de repensar o que você está fazendo para ganhar a vida. Um inferno conviver oito horas por dia com inimigos, não é mesmo?

A pergunta é: você quer uma pessoa assim por perto? Eu não quero, por mais competente que seja tecnicamente. Esse papo de “funcionário tem que vir, fazer o seu trabalho e ir embora para casa” é uma visão muito limitada e simplória, a gente convive mais com funcionário do que com a própria família, o buraco é bem mais embaixo.

Eu tô fora de gente assim. E você também deveria estar.

Para dizer que no fundo, bem lá no fundo, você sabe que eu estou certa mas na prática faria como o Somir, para dizer que você está na categoria dos que mentem sem remorso no currículo pois “todo mundo faz” ou ainda para dizer que quer trabalhar comigo: sally@desfavor.com

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Comments (6)

  • pensa nesse funcionário na tua concorrência. qual seria o tamanho do impacto na tua operação? também é um ponto a se considerar.

  • thainá da amazônia

    não demitiria, até porque minha empresa sofreria com a saída de um funcionário excelente (que como o somir já disse, são extremamente raros) e o cidadão ainda poderia usar esses anos de trabalho na minha empresa como experiência no cv que já não seria mais mentiroso e arrumaria outro emprego fácil. eu procuraria outra forma de lidar com esse deslize. “resultado é consequência, não prioridade” no mundo que a gente vive não é bem assim que da pra se sustentar

  • Não dá para relevar. Se levarmos em conta que aumentamos cada vez mais o nível de exigência em cima de quem entrega, e se a fraude acabar por ser revelada em uma situação com impactos muito mais relevantes, tanto em termos técnicos quanto morais? Por exemplo, você apontar a mentira só depois de uma eventual promoção do mentiroso para outro local ou mesmo acima de você na hierarquia. A desonestidade do outro seria minimizada ou deixada de lado pela percepção alheia da sua desonestidade em termos de oportunismo, hipocrisia e inveja por um lado e, por outro, se ou quando o sujeito errar feio lá pra frente por uma formação que jamais teve, você ser apontado como o culpado por todo aquele embuste….

  • Só por essa frase” a pessoa demonstra ser excelente no trabalho” É o que interessa! Caráter é pra amigos, namorados, mas de funcionário? O que importa é se tá rendendo e dando lucro!

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