Pedras e paus.

Dave Chapelle é um comediante americano com uma história de vida fascinante: no auge da carreira no começo dos anos 2000, abandonou a vida pública e foi se esconder na África. Uma década depois, voltou e em pouco tempo já estava ainda mais famoso. Mas Dave Chapelle não contava que nos dias atuais, fazer piadas com transexuais geraria uma tentativa de destruição de sua carreira por parte dos lacradores… ou… contava?

Já começo dizendo que acho Chapelle um dos melhores, senão o melhor comediante de stand-up que já vi. Embora seu material muitas vezes exija um conhecimento mais aprofundado da cultura americana, que me faz perder algumas das piadas, ele mais do que compensa isso com uma habilidade ímpar de controlar o palco. É uma daquelas pessoas que tem tamanha habilidade na sua profissão que faz parecer que é tudo extremamente fácil.

E entre os que conhecem seu trabalho, essa opinião não é incomum. Está frequentemente na lista dos melhores da atualidade e com certeza vai ser lembrado com um dos maiores de todos os tempos. Como eu raramente vejo alguém falando dele no Brasil, acho importante estabelecer um pouco de quem é essa pessoa: o canal Comedy Central dos EUA estava quase falindo quando deu um horário para Chapelle no começo dos anos 2000. Ele criou um show de esquetes que rapidamente se tornou um dos maiores sucessos de público e crítica no país. O canal ganhou tanto dinheiro com ele que ofereceu um contrato de renovação de mais de 50 milhões de dólares.

Dave Chapelle, que já tinha uma grande fama nacional, estudou a proposta… e decidiu largar tudo para ir morar com a família na África do Sul, onde ninguém o conhecia. Parou de fazer shows, não deu entrevistas, não respondeu nenhuma pergunta. Só largou o showbiz como uma fralda usada. O país inteiro ficou confuso na época. E continuou confuso por muitos anos. Mas isso não impediu que a qualidade de seu material fosse criando um status cult. Seus especiais de stand-up e quadros do programa de TV continuavam pipocando no YouTube e angariando novos fãs, dia após dia.

E novamente, sem aviso, Chapelle voltou. Uma década depois. Voltou fazendo show de stand-up e dando algumas entrevistas selecionadas a dedo: nada de ir em programas famosos, só falava com quem desse tempo e não editasse demais suas falas. Explicou que percebeu algo de muito podre no mundo da mídia americana, que se sentia explorado e limitado, e que assinar aquele contrato parecia algo muito errado para sua carreira. Ele também dá alguns sinais que percebeu algo além disso nesse mundo dos grandes executivos de TV e Hollywood, mas nunca avançou muito no tema.

De qualquer forma, estava de volta. Seus shows lotaram instantaneamente, as pessoas estavam realmente esperando por sua volta. Grandes emissoras como a HBO contrataram especiais dele, e num piscar de olhos, Chapelle estava de volta como um dos maiores nomes da comédia americana. Provavelmente pelos mesmos motivos de mais de uma década atrás, para não ficar na mão da mídia tradicional do país, ele acabou fechando um contrato com a Netflix de mais de 60 milhões de dólares. E isso nos leva para o especial de comédia mais recente dele: Sticks and Stones, que já está disponível inclusive aqui no Brasil.

Comecemos pelo nome: ele deriva de uma expressão da língua inglesa que diz que paus e pedras podem machucar uma pessoa, mas palavras nunca. Já é uma provocação pela “polêmica de Twitter” causada por algumas piadas feitas por ele em shows anteriores. O alvo: transexuais. Chapelle basicamente diz que é muito difícil não rir de um homem vestido de mulher. Não é um tom raivoso, muito menos cruel, é ele quase pedindo desculpas por ser tão infantil. Mas isso foi no show anterior. Nesse especial, Chapelle está irritado com a patrulha do humor e cutuca com muito mais força. Você sabe que encontrou um bom comediante quando ele simplesmente não consegue largar o osso de uma boa piada, mesmo correndo risco de irritar muita gente.

Então Dave Chapelle faz humor sacaneando transexuais? Não. Assim como no show anterior que criou a polêmica, nesse recente ele passa uns 5 minutos falando disso e segue para outros assuntos. O grosso do conteúdo dele está relacionado com as tensões raciais nos EUA. Chapelle é negro e nunca se absteve de falar sobre preconceito e racismo em suas mais diversas facetas. Mas ele não é político ou filósofo, é um comediante. Óbvio que o faz através de piadas, e não tenta tornar nada mais complexo do que deveria. Obviamente muito mais inteligente do que transparece em várias das piadas, o foco dele não é te deixar pensando dias sobre um tema, mas eliminar tensões colocando um holofote em cima delas e fazendo o melhor que um comediante pode fazer: fazer a plateia rir do que normalmente não tem coragem nem de pensar.

Até pensei em transcrever algumas partes do show, mas perde completamente a graça e o contexto. Melhor então explicar o provável estado mental dele ao escrever essas piadas: Chapelle aparenta estar muito de saco cheio dessa cultura de “cancelar” as pessoas por causa de piadas e comentários impróprios, e resolveu provocar a turba enfurecida dos lacradores. O simples fato de continuar fazendo piadas com transexuais (novamente, são inocentes, até) seria o suficiente para a maioria dos comediantes atuais perderem a carreira, mas mesmo assim, ele foi nessa direção. E os primeiros reviews desse especial não desapontaram: os lacradores habituais correram para dizer que não era para ninguém ver por que ele tinha se tornado um conservador preconceituoso.

Um dos sites mais famosos dos EUA de análises de filmes e séries, o Rotten Tomatoes, começou a liberar as primeiras opiniões de críticos profissionais, e o especial “Sticks and Stones” estava com nota ZERO. Dave Chapelle estava sendo atacado com força. Parecia que ele seria o próximo na lista dos “cancelados” na cultura de massa americana. Mas… ele era Dave Fuckin’ Chapelle. O papo dos lacradores não ia colar nele, e assim que os reviews de usuários do site foram liberados para exibição, ele foi imediatamente para a nota 99 de 100 no site. Um movimento enorme de defesa se construiu ao seu redor, e sua fama ficou imensamente maior nos últimos dias. Todo mundo que foi impactado por aquelas matérias lacradoras foi ver o especial, e a maioria gostou muito.

Gente muito famosa não aguentou o tranco de ter a máquina de lacradores exigindo sua cabeça, mas até mesmo nos dias atuais, existe um limite. Dave sabia exatamente o que estava fazendo, ele sabia que tinha tamanho e conteúdo para peitar essa histeria punitiva. Chapelle continua fazendo o melhor que um humorista pode fazer: colocar um holofote em cima de problemas muito reais e nos lembrar que no final das contas, é tudo muito ridículo. Que tudo isso é passageiro e que não podemos ficar nos levando tão a sério. Por mais que os guerreiros de Twitter e sites lacradores tentem problematizar tudo o que entram em contato, essa cabeça não vai rolar.

De uma certa forma, Chapelle acaba de demonstrar que tem um limite sim de quanto o povo aguenta essa patrulha de comportamento. Que tem coisas que não vai abrir mão, que a vida real não é a internet, e principalmente, que você pode sobreviver a esse tipo de ataque. Não sei quando virá o próximo especial dele, mas eu tenho certeza que vai vir ainda maior do que esse. Se você se interessou, tem na Netflix ou em qualquer outro site de coisas piratas que você usa. Não é para qualquer um, não por ser muito profundo, mas como eu disse, exige um conhecimento um pouco maior sobre a sociedade americana para não boiar demais. Seja como for, tem muita coisa universal ali.

E não custa nada mandar um foda-se para gente chata que quer decidir qual piada podemos ou não fazer.

Para dizer que criticar um negro por transfobia deve ter dado nó na cabeça dos lacradores, para dizer que ele é o sucessor do George Carlin (não, esse é o Doug Stanhope), ou mesmo para dizer que finalmente uma notícia boa: somir@desfavor.com

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Comments (13)

  • Geraldo Renato da Silva

    Não conhecia o trabalho dele, mas vou procurar conhecer. Só de pensar diferente do “politicamente incorreto”, nadar contra a corrente e mandar o showbiz comer capim, merece todo o meu respeito. Torço para que tenhamos isso no Brasil, pois os nossos “humoristas” fazem de tudo para agradar a plateia dos bundões.

  • — não precisa aprovar —

    Ô, tem trapaça aí na contagem dos votos do C.U.!
    Só tem link pra família Pôncio no post fixado! Cadê o dos quadrinhos eróticos?
    Somir, acorda aí!

  • Pela minha compreensão, a hierarquia do lacre se dá mais ou menos assim:
    homem branco > mulher branca > homem não branco > mulher não branca > trans branco > trans não branco etc. E isso que nem adicionei variações como obesidade, nacionalidade ou religião, pra não me estender muito. Mas seria um exercício interessante just for the lulz.
    Então, de acordo com a hierarquia, Dave ainda tem uma certa liberdade. Mas considerando que mulheres brancas já são tratadas como homens brancos (opressoras colonizadoras mimimi) e homens não brancos são os próximos da fila, isso pode estar com os dias contados…

    • Não deixa de ser progressivo: homens negros finalmente alcançando o status de opressores. Já que ninguém quer melhorar de verdade, que todo mundo seja igualado nesse contexto.

  • Também gosto muito do Dave Chapelle. Hoje em dia, só o Bill Burr tem coragem de cutucar as feministas. Isso é parte do fenômeno que elegeu Trump e Bolsonaro. Saco cheio de caga-regras de esquerda. O problema é que isso passa primeiro pelos caga-regras de direita. Mitar é o novo Lacrar.

  • Isso é privilégio de rico que não tem medo de ser demitido e passar fome porque uma adolescente do Twitter não gostou do que ele disse.
    E creio que o fato de ele ser negro foi um amenizador pra situação, se fosse um comediante branco nunca mais conseguiria sair de casa.

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