Serendipidade.

A definição formal de Serendipidade é um “acontecimento favorável que se produz de maneira fortuita, um acaso feliz; descoberta acidental; dom de fazer boas descobertas por acaso”. É aquele momento em que tudo dá mais certo do que você esperava sem qualquer esforço seu. É aquele evento onde surge um resultado muito melhor do que você jamais poderia esperar ou antever.

O termo foi criado pelo inglês Sir Horace Walpole, em 1754. Ele ficou impressionado com um conto de fadas persa chamado “Os três príncipes de Serendip”, (antigo do país onde hoje fica o Sri Lanka). No conto, príncipes viajantes faziam descobertas constantes e surpreendentes sobre coisas que não planejavam explorar. Ele então criou a palavra, inspirada no título do livro, (em inglês, “serendipity”) para se referir a descobertas acidentais.

Vamos para o concreto, que é sempre mais fácil de entender. Um exemplo clássico de Serendipidade foi a descoberta da Penicilina. Em 1928, o biólogo Alexander Fleming fazia testes com a bactéria Staphylococcus quando percebeu que uma das amostras foi contaminada por mofo.

Um experimento contaminado não tem qualquer validade, logo, Fleming poderia muito bem ter descartado as amostras e recomeçado do zero o quanto antes, para não perder tempo. Mas, em vez de fazer isso, ele acreditou que aquilo aconteceu por algum motivo e decidiu analisar mais de perto o que se passava nos pratos.

Fleming percebeu que a bactéria não crescia onde o mofo (identificado como Penicillium) havia se desenvolvido. Com isso ele percebeu que este mofo era capaz de inibir o crescimento de bactérias no geral. Daí ele se perguntou se seria possível criar uma substância a partir desse mofo, como forma de combate às bactérias (algo que se desviava totalmente da sua intenção original). A substância produzida por ele deu origem a penicilina, até hoje um antibiótico utilizado para tratar diversas doenças infecciosas.

Sim, houve um fator “sorte”, “acaso”, “destino” ou como queiram chamar, mas não se trata de algo totalmente aleatório. Fleming teve seu mérito de não rechaçar de cara algo só por não ser exatamente o que ele tinha planejado. Essa mente aberta é essencial para que a Serendipidade possa acontecer.

Muitas outras descobertas científicas importantes, desde o Raio-x até o Viagra, foram fruto da Serendipidade. E em todas elas, seus agentes estavam abertos. Na parte da sorte fica um pouco mais difícil de interferir, mas na parte da mente aberta você pode colaborar e se tornar mais propenso para este tipo de evento. Você está fazendo a sua parte para perceber quando a Serendipidade bate à sua porta? Faça, vai saber quantas oportunidades maravilhosas passaram por você e você nem percebeu…

Conhecemos o resultado final da Serendipidade, mas a forma como ele acontece ainda está longe de ser um consenso. Há quem atribua a um total acaso, há quem atribua a uma graça concedida por uma divindade e há quem atribua ao nosso próprio inconsciente, que nos guiaria sem que a gente perceba para um desfecho feliz e inesperado.

Porém uma coisa é consenso: é preciso ter um grau mínimo de mente aberta para se perceber a Serendipidade, caso contrário, a pessoa apenas constata que o que ela queria, o que ela planejou, o que ela tinha em mente, não aconteceu, fica chateada e fecha as portas para a percepção de que tem algo ainda melhor ali. Mas… como manter essa mente aberta? Não é uma decisão racional, é um mecanismo de funcionamento. A resposta é: entendendo como ela funciona e treinando. Treinando, treinando e treinando.

Ver pontes onde os outros só conseguem ver abismos não é algo fácil, é preciso muito treino mental para aprender a não descartar o que não se encaixa nas suas crenças e, acima de tudo, uma boa dose de humildade para sempre partir da premissa de que você não tem a visão do todo, apenas uma visão limitada e, por isso, nem sempre vai saber o que é melhor para você.

Quantas vezes todos nós não reclamamos, xingamos e ficamos chateados por algo não sair da forma como foi planejada e, mais para frente, agradecemos muitíssimo por nosso desejo não ter acontecido? Há casos extremos, como o de uma pessoa que se atrasa, perde um voo, fica putíssima e depois descobre que aquele avião no qual ela queria estar caiu. Mas, existem casos menores, menos impactantes, que, talvez por isso, não recebam a merecida atenção. Serendipidade acontece o tempo todo, a questão é: você tem condições de percebê-la e apreciá-la? A maior parte das pessoas não tem. E perdem muitas oportunidades na vida por causa disso.

Então, para permitir que essa “feliz coincidência” entre na sua vida é preciso tentar soltar o controle e entender que nem sempre o que você, com a sua visão limitada, acredita ser o melhor é de fato o melhor. Pode existir um universo de possibilidades melhores que sua mente sequer conseguiu cogitar. Você não é capaz de cogitar as melhores alternativas, pois tem uma visão parcial, apenas um ponto de vista, e não a consciência global de tudo.

Hoje isso é particularmente difícil. Estamos diante de uma nova geração bem birrenta que se frustra de forma desproporcional se algo não sai como ela quer. Gente assim vive com a mente em um lugar horrível. Pode ter dinheiro, pode ter beleza, pode ter o que for, mas carrega um inferno dentro de si. Com isso vem depressão, síndrome do pânico, transtorno de ansiedade e a consequente Geração Rivotril.

Hora de deixar de ser uma criancinha mimada em corpo de adultinho e ficar preso ao pensamento “Mas eu quero! Mas eu quero assim! Tem que ser assim!”. Não, não tem. E se veio de outra forma, respire fundo e antes de reclamar, rejeitar e se fechar, olhe mais de perto. Tente olhar por outros pontos de vista, quem sabe você acaba descobrindo algo muito bom e inesperado? Já pensou se Fleming tivesse ficado puto e jogado fora suas amostras antes de olhar mais de perto? Para o que ele queria, elas estavam inservíveis, mas acabaram servindo para algo muito melhor.

Manter a mente aberta ajuda a melhorar a sua vida e também ajuda a humanidade. A genialidade, os grandes saltos evolutivos, as grandes descobertas não são fruto apenas de inteligência, estudo e trabalho. Muitos dos grandes saltos evolutivos foram dados também pela capacidade de sair da caixinha, de entender que é mais produtivo não se fechar na busca por um resultado X e estar aberto a todas as possibilidades que possam surgir. Olhar para o lado em vez de ficar focado apenas no que você esperava pode fazer toda a diferença na hora de realizar uma grande descoberta. Aquele que fica preso apenas ao que sua mente consegue ver se limita absurdamente.

Ideias não caem do céu aleatoriamente em nossas mentes. Pode haver um componente aleatório, um grau de sorte no processo, mas, em última instância, é nosso aproveitamento do que percebemos que determina o que vamos extrair dessa “sorte”. E, quanto menos crenças temos, mais ampla se torna a nossa visão. Quando mais neutra mantemos nossa mente ao olhar para algo, maiores as chances de extrair o que há de melhor.

Se fosse possível, acho que todos deveriam respirar e contar até dez, dizendo a frase “EU NÃO SEI O QUE ISSO SIGNIFICA” antes de fazer um julgamento a respeito de algo. Sim, é hora de descondicionar a mente e aqueles que conseguirem fazê-lo, estarão dez passos à frente do resto. Não é para negar o conhecimento apreendido ao longo de uma vida, é para não permitir que ele te escravize e te cegue.

Aprender com as experiências do passado é vital para o ser humano. Quando uma situação danosa acontece, nosso cérebro registra isso como algo negativo, como mecanismo de sobrevivência: se você comer essa frutinha azul você passa mal, pois ela é venenosa e pode te matar. O problema é que o que deveria ser um mero indicativo, pode acabar tomando proporções muito maiores e, em vez de funcionar como um aviso, acaba nos limitando.

Vivemos em uma sociedade onde impera a cultura do medo. Está na publicidade (compre para não adoecer, para não ficar feio, para não se sentir excluído etc), está nos jornais (o tempo todo o cérebro é bombardeado com ameaças, crimes, violência etc), está até no dia a dia (“emprego está difícil de conseguir, é bom não reclamar muito do quanto você ganha”). Esse constante bombardeio de “ameaças” tem como efeito colateral deixar nosso cérebro muito mais alerta do que deveria e isso vira algo muito pior do que estresse e ansiedade. Estresse e ansiedade são só sintomas desse algo pior.

Um cérebro com constantes estímulos de ameaça acaba sendo muito mais reativo que o normal. É como um Estado de Sítio cerebral. Isso faz com que o cérebro acesse de forma excessiva as informações que coletou para tentar te manter vivo, gerando uma hiperatividade mental, um cansaço, uma sobrecarga que exaure a pessoa sem ela sequer saber de onde vem. É muito comum gente dizendo “Não entendo o motivo de estar estafado, não faço muita coisa”. Faz sim, seu cérebro está em looping processando ameaças e formas de te manter vivo o dia inteiro sem que você se dê conta.

Em um exemplo muito simplório, esse excesso de estímulos faz com que,em vez dele emitir um alerta sobre a frutinha azul, ele passa a emitir alerta sobre qualquer fruta azul, qualquer furta com esse formato, sobre qualquer fruta ou até sobre qualquer comida! Seu cérebro está constantemente cruzando informações, tentando descobrir como te salvar desse mar de medo e ameaças que se tornou a vida moderna. Ele te instiga a uma busca constante por controle, por manter tudo do seu jeito, do jeito “seguro”. Adivinha? Essa histeria cerebral acaba mais te prejudicando do que te ajudando.

O que isso tem a ver com a Serendipidade? Um cérebro reativo, que busca informações no passado para tentar te convencer que o presente é ruim, perigoso e deve ser “corrigido” de acordo com as suas crenças é um cérebro completamente fechado para aproveitar qualquer oportunidade que surja. Pode passar na sua frente uma chance de ficar rico, de casar com o amor da sua vida ou de ganhar um Nobel, que se não estiver dentro da sua cartilha de previsões, você não vai conseguir sequer perceber.

Então, para manter a mente mais aberta é importante não cair no medo. Obviamente ninguém aqui vai a presídio abraçar estuprador, afinal, nenhum dos extremos é bom: zero medo ou muito medo. Não é preciso sair correndo riscos para “se libertar disso”, aliás, desaconselho fortemente. Basta que você entenda que, no contexto social atual vivemos, com um cérebro super-hiper-estimulado para o medo, ele tenderá a recusar imediatamente qualquer possibilidade que não seja a que ele planejou e isso não é uma proteção, é uma pane no funcionamento por excesso de estímulo.

Felizmente, isso pode ser trabalhado e modificado.

Uma mente sem treino é como um filhote de cachorro: não sabe o que faz e geralmente acaba fazendo merda. Uma mente sem treino é como um filhote de cachorro: precisa de muitas repetições para aprender, precisa ser retirada do lugar errado e colocada no lugar certo dezenas ou até centenas de vezes, até incorporar isso como um modo de funcionamento.

Se você não quer que um filhote de cachorro suba no sofá, você terá que dizer muitos “nãos” e retirá-lo de cima do sofá incontáveis vezes, até que ele perceba que não adianta subir ali, pois sempre que subir será removido. Dali pra frente, o cachorro não subirá mais e essa será sua forma de funcionar dentro da normalidade. Eventualmente, ele pode te testar, recair, e voltará a subir, porém, uma vez que o aprendizado se consolidou, será muito mais fácil relembrar que ele não deve subir no sofá.

O mesmo acontece com a mente. Em um primeiro momento, você não terá qualquer controle sobre ela. Vai tirá-la do medo, da limitação, da ansiedade e ela vai voltar. E é nesse ponto que a maior parte das pessoas pecam. Ao tentar algumas vezes e não conseguir, decretam a derrota como uma condição permanente e imutável: “Não dá, eu não consigo”.

Consegue sim. É um absurdo desistir de educar um cão depois de uma semana tentando alegando que ele não é “educável” assim como é um absurdo desistir de colocar a sua mente em um bom lugar alegando que isso não é possível. Então, fique de olho na sua mente, quando ela se fechar para algo que não era o planejado, quando ela julgar algo diferente do planejado como ruim, quando ela criar qualquer limitação, pare, respire fundo e desarme esse mecanismo, dizendo a você mesmo que isso não necessariamente é verdade, que é fruto de um cérebro em curto-circuito e que antes de descartar, recusar, se fechar, vai avaliar de forma neutra o cenário.

Abrir a mente não é apenas uma questão de discurso para elevação espiritual bla bla bla. Tem um efeito prático muito vantajoso: vive-se melhor e aproveitam-se melhor as oportunidades que a vida disponibiliza. Vai por mim: uma mente sem treino definitivamente não sabe o que é melhor para você. O grau de auto sabotagem, histeria cerebral e pensamentos equivocados que permeiam seus desejos podem acabar te levando para um caminho de sofrimento. Conseguir o que você deseja pode acabar sendo a maior das furadas.

Treine esse novo olhar, um olhar não condicionado ao seu querer, ao seu planejamento, ao que você acha que seria melhor. A vida te trouxe algo que não era o que você tinha em mente? Não rechace de cara. Não ficar preso a condicionamentos e analisar o que quer que apareça com a mente aberta pode fazer toda a diferença na sua vida. Como disse Louis Pasteur, considerado o fundador da Medicina: “O acaso favorece apenas as mentes preparadas”.

Para dizer que não entendeu muito mas sentiu algo estranhamente verdadeiro ao ler o texto, para dizer que se um dia a Serendipidade aconteceu você não viu ou ainda para dizer que sua mente é um filhote de diabo da Tasmânia: sally@desfavor.com

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Comments (7)

  • Serendipidade = deixa fluir.

    O mais difícil é treinar a cabecinha para poder aceitar com leveza as coisas fora do plano que acontecem.

  • Geraldo Renato da Silva

    Muito bom o texto.
    De fato, quando pensamos só dentro da “caixinha” nossas oportunidades diminuem demais.
    E olhando para a história, percebemos que as grandes descobertas, as grandes invenções foram feitas por pessoas consideradas loucas.
    E hoje em dia, diante de nossa sociedade cheia de frescuras, a serendipidade pode ser um diferencial para quem quiser realmente se destacar.

  • Plot twist: ficar ansioso por pensar nas serendipidades que você perdeu e consequentemente perder novas serendipidades

  • Isso me faz lembrar vários jogos de videogame que já venci sem saber como… Isso mesmo. O desejo de ganhar parece nos fazer descobrir a resposta “por acaso” rs
    Não acredito que seja totalmente acaso.

    • Também não acredito que seja totalmente acaso. Mesmo quando acasos acontecem (se é que acontecem), percebê-los é um mérito.

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