Gagueira.

Atendendo a uma sugestão de um leitor anônimo, vamos falar sobre um problema que atinge cerca de dois milhões de brasileiros e que poderia ser praticamente solucionado se tivesse um diagnóstico e tratamento precoce. Desfavor Explica: Gagueira.

Quando uma criança está aprendendo a falar ela tem dificuldades em traduzir seus pensamentos em fala. Ela ainda não possui todos os recursos linguísticos e neurológicos para traduzir com perfeição seus pensamentos em frases, por isso nem sempre consegue falar tão rápido quanto pensa. Assim, é muito comum que crianças pequenas gaguejem ao falar (papo técnico: disfluência normal), é um período de adaptação, geralmente passageiro.

Porém, por uma série de fatores, é possível que essa dificuldade não passe e a criança nunca deixe de tropeçar nas palavras. Normalmente a gagueira some em três meses, mas, em alguns casos ela nunca vai embora. Surge então um problema chamado “disfemia”, conhecido popularmente como gagueira, que nada mais é do um distúrbio no ritmo da linguagem.

Não se sabe ao certo o que desencadeia a gagueira, mas acredita-se que ela surja de uma combinação de fatores. Complicações no parto, acidentes que causem traumatismo no cérebro e outros fatores físicos costumam estar associados a fatores genéticos (sim, é hereditário) e a fatores sociais e emocionais como abusos na infância, problemas no relacionamento familiar, ansiedade, insegurança e outros, que podem agravar o problema.

Estima-se que 1% da população mundial seja acometida por algum tipo de gagueira. Parece pouco, mas não é, são 80 milhões de pessoas. No Brasil, como dissemos, há cerca de dois milhões de gagos. Por motivos desconhecidos, a incidência deste problema em homens é cerca de quatro vezes maior do que em mulheres. A maior parte dos casos se manifesta ainda na infância, entre os 2 e os 5 anos de idade.

A causa normalmente é física, mas o contexto social também pode influenciar ou até potencializar o problema. Quanto mais nervoso o gago fica, quanto mais ele tenta não errar, piores ficam os sintomas. Em uma sociedade que julga o tempo todo, que ridiculariza, que mantém as pessoas em uma eterna pressão por adequação à normalidade e até à perfeição, é muito natural que o problema se acentue.

Durante muito tempo se acreditou que a gagueira acontecia por um problema no trato vocal, mas hoje se sabe que o problema está no cérebro. Após monitorar através de ressonância magnética o cérebro de pessoas com gagueira e compará-lo ao cérebro de pessoas comuns, o problema ficou evidente: a área do cérebro responsável por transformar os pensamentos em sons (papo técnico: Área de Broca) recebe menos sangue do que deveria nos gagos. Também se constatou que o dano é proporcional ao problema, quanto menos sangue recebe, pior é a gagueira.

Então, esse discurso de que “você tem que se esforçar para falar direito” talvez seja um pouco cruel e inútil. Como alguém pode se esforçar para que uma área do cérebro seja mais irrigada? Não é um fato psicológico que deixa alguém gago. O gago não é gago por ser inseguro, ele fica inseguro por ser gago. Fatores psicológicos agravam sim a condição, mas, salvo casos muito extremos e traumáticos, não a causam.

Ainda não se sabe o que causa essa falha na irrigação, mas, ao saber onde está o problema, se caminha a passos largos para melhorar a qualidade de vida de quem sofre com este problema: não importa de onde vem, talvez baste um tratamento que estimule a irrigação nesta região. Ainda não existe nada nesse sentido disponível, porém já há pessoas trabalhando nesse tipo de pesquisa e, como veremos mais à frente, existem outras opções de tratamento bastante eficazes.

Uma prova empírica de que o problema de fato tenha origem no cérebro, e não no trato vocal é que pessoas que gaguejam costumam cantar sem problema algum, sem tropeçar nas palavras. É que a região do cérebro que utilizamos para cantar (papo técnico: hemisfério direito) é diferente da que utilizamos para falar (papo técnico: hemisfério esquerdo).

Além de cantar, ler de forma ritmada, sussurrar, falar em coro, declamar uma poesia ou uma fala de um filme, imitar um sotaque ou até gritar acabam não sendo afetados, por causa da área cerebral demandada. A parte da fala espontânea fica comprometida, mas a da fala não-espontânea fica intacta. Qualquer fala não-espontânea provavelmente sairá sem gagueira (olha a dica!).

Normalmente a gagueira se manifesta em crianças entre 2 a 5 anos de idade. Infelizmente não existe um padrão para diagnóstico. Muitos médicos sequer se dão ao trabalho, orientando os pais a esperar, pois isso “passa”. De fato, na maior parte das vezes passa mesmo, mas não temos como saber. Pode ser que passe, pode ser que não. Na dúvida, melhor ajudar seu filho.

Se a gagueira for tratada desde os primeiros sintomas, as chances de que a pessoa consiga alcançar uma fala normal são de quase 98%. Quando mais se espera, menores vão ficando. Então, na dúvida, não espere.

Estipule um prazo razoável, algo entre 3 a 6 meses a contar da data em que a criança começou a gaguejar, e se a gagueira não passar, leve a um especialista. Não espere mais do que isso, pois o problema vai ficando cada vez mais difícil de resolver e, independente de diagnóstico, isso atrapalha a vida social e o desenvolvimento intelectual da criança, que não interage como deveria e ainda pode carregar traumas para o resto da vida pela reação das pessoas à sua gagueira.

Também é importante ter em mente que a gagueira não se manifesta apenas naquela forma clássica de repetição de uma sílaba, com dificuldade para completar uma palavra. Existem formas menos conhecidas de gagueira, como por exemplo o prolongamento de sons (esticar a pronúncia de algumas letras), o bloqueio de sons (intervalos grandes entre palavras ou dificuldade em começar uma frase) e outros. Notou dificuldade na fala? Fonoaudiólogo.

Os pais, amigos e familiares podem ajudar criando um ambiente seguro para a fala: sendo bons ouvintes, permitindo que a criança se sinta segura para falar, não apontando seus erros, completando suas frases, apressando-as ou reclamando da sua gagueira.

Acredite, se a criança pudesse, ela não gaguejaria, não adianta pedir para que ela não o faça, isso só a deixa mais nervosa e ansiosa, piorando o problema. Tenha isso sempre em mente: por mais irritados, frustrados ou desesperados que os pais fiquem, qualquer cobrança, mesmo com a melhor das intenções, só vai piorar o problema.

A melhor ajuda que você pode dar é não culpar a criança, não exigir que ela melhore sozinha através de esforço e não sujeita-la a soluções “caseiras” que não funcionam, só geram sensação de fracasso e frustrações. Em vez de fazer ignorâncias como colocar a criança para falar com bolas de gude na boca, leve-a para uma avaliação fonoaudiológica e providencie o tratamento necessário. Sim, ter filhos é arcar com esse risco. Se seu filho precisa de ajuda, não negue ajuda a ele.

Enquanto isso, algumas medidas podem ser tomadas na escola para tentar reduzir os danos emocionais. Coisas simples, como pedir para que o nome da criança seja o primeiro na hora da chamada (dane-se a ordem alfabética) pois a espera por sua vez gera uma ansiedade absurda e aumenta as chances de gaguejar e ser ridicularizado ou pedir para que exercícios de leitura em voz alta sejam feitos pela criança em dupla com um amiguinho assim ela não vai gaguejar. Converse com a criança, descubra quais são os momentos mais sofridos do seu dia na escola e tente atenuar seu sofrimento com sugestões criativas para os responsáveis pela instituição de ensino.

Para quem sofre desta condição, existem pequenas dicas que podem facilitar o dia a dia: substituir palavras que sabe ter dificuldade em pronunciar por outras mais fáceis, não deixar de se expressar por medo de ser julgado ou ridicularizado, procurar um bom psicólogo, pois as consequências sociais da gagueira não são leves e dificilmente a pessoa vai conseguir lidar bem com isso sozinha e procurar tratamentos, que sim, são possíveis, mesmo na vida adulta.

E, tenha em mente que gagueira é hereditária, portanto, pode (eu disse PODE) ser passada para seus filhos. Por isso, acompanhar de perto filhos de pessoas com gagueira, para tratar o problema assim que ele se manifeste, é fundamental. Essas crianças terão uma propensão maior do que o normal a desenvolver o problema.

Não é comum, mas é possível que pessoas desenvolvam gagueira na vida adulta. Apesar de ser muito raro, há registros de traumas na região do cérebro que ocasionaram esse problema. O tratamento é mais difícil, porém é possível. Isso também vale para pessoas que desenvolveram a gagueira na infância e não foram tratadas, chegando à vida adulta com este problema: não desanimem, há uma grande possibilidade de melhoras.

Existe cura para gagueira na vida adulta? Existe tratamento. Muitas vezes com um bom acompanhamento psicológico e fonoaudiológico o problema reduz tanto que fica imperceptível.

Para casos mais severos, que não apresentam a melhora desejada com psicólogo + fonoaudiólogo, existe outra opção: um aparelho que pode reduzir muito a gagueira a ponto de ela ficar imperceptível. O aparelho foi desenvolvido pelo pesquisador Joseph Kalinowski, do Departamento de Ciência da Comunicação e Distúrbios da East Carolina University, que é gago. Ele mesmo o utiliza.

É um aparelhinho chamado “Speech Easy”, com formato similar a aqueles usados por deficientes auditivos, que é colocado dentro da orelha. Funciona da seguinte forma: ele faz com que o gago escute sua própria voz com atraso ou alteração de frequência. Isso induz o cérebro a acreditar que a pessoa está falando em coro com outras pessoas ou cantando, acionando a outra parte do cérebro que não tem problemas de irrigação, o que induziria permitindo uma fala contínua.

Ele fez uma demonstração em um programa de TV que ficou famosa: sem o aparelho ele mal conseguia pronunciar seu nome, mas com o aparelho apresentou uma fala contínua. É uma cura? Não. Mas não é nada diferente de usar um par de óculos, assim como miopia, é uma correção que basta para dar qualidade de vida. Segundo o pesquisador, funciona em 90% dos casos e pode melhorar a gagueira em até 95% da capacidade de fala de uma pessoa. Quer saber mais? kalinowskij@mail.ecu.edu

Minha dica é: pesquise. Não desista. Se você sofre com esse problema, corra atrás de todas as possibilidades. Não existe gagueira intratável, você é que ainda não encontrou a combinação certa de tratamento. É possível melhorar sua fala, não desista de você.

Para insinuar que estamos fazendo anuncio (como se um pesquisador americano fosse se vincular ao Desfavor), para dizer que te obrigaram a falar com bola de gude na boca ou ainda para dizer que curaram sua gagueira na porrada: sally@desfavor.com

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Comments (14)

  • Li há algum tempo em um desses sites de curiosidades que um dos muitos “tratamentos” esdrúxulos para gagueira na Europa dos séculos XVIII e XIX extirpar partes da língua! Sem anestesia! Muitos dos pacientes submetidos a essa barbaridade acabavam, claro, morrendo pela falta de assepsia com que a “cirurgia” era feita. Quem sobrevivia, porém, só não gaguejava mais porque ficava mudo para sempre! Antes ainda, por volta de 1600, acreditava-se que os gagos não conseguiam falar direito porque tinham a língua “endurecida”. O “remédio” para “amolecê-la”? Beber muito vinho quente!

  • Suburbana Barrense - o pior dos dois mundos numa pessoa só

    Meu namorado é levemente gago. No início, eu com a minha sensibilidade de uma pata de elefante, completava todas as frases dele, achando que estava ajudando. A coisa só piorou, ele ficava ansioso e gaguejava mais. Hoje em dia, ele continua gago, só que com uma fala muito mais fluida, com pouquíssimos momentos de gageira e, claramente, a bonita aqui parou de completar as frases dele.
    Ahh… existe um fono no Rio (Copacabana) que diz conseguir melhorar em muito a gagueira (quase uma cura).
    https://youtu.be/rRD69F0et_o

  • Eu nem consigo imaginar o suplício que deve ser para alguém passar a vida inteira gaguejando, lutando em vão para “domar” a própria língua e ainda sendo alvo de deboches e demonstrações de impaciência o tempo todo. Acho que, com tanta informação valiosa – sobretudo sobre tratamentos -, este texto deva ser bastante divulgado para chegar ao máximo possível de pessoas que tenham esse tipo de problema. Saber que “há um jeito” pode, de alguma forma, ser um alento pra quem sofre tanto…

    • Sim. Sempre é possível melhorar a condição, em alguns casos ela fica até imperceptível. Vamos torcer para que este texto chegue em todos os papais e mamães que precisem dele para identificar o problema cedo e tratá-lo.

      • Eu já a fiz minha parte. Acabei de mostrar o link desta postagem pros meus contatos. Se pelo menos mais uma pessoa do meu círculo social que sofra com gagueira – ou que conviva com alguém nessa condição – ler o texto e encontrar algo de útil, já terá valido a pena.

  • Não sabia da existência desse aparelhinho chamado “Speech Easy” e achei genial! Mas será que é acessível por aqui? Ou será que ainda é algo raro e caro para a maioria dos brasileiros?

    • Não tenho a menor ideia, mas hoje em dia não é tão difícil fazer uma compra fora do país e mandar entregar aqui.

    • Isso me fez lembrar daquela cena do filme “Discurso do Rei” em que o Logue coloca o Rei George para ler um discurso e ouvir sua voz com o som de uma sinfonia ao fundo, e grava o exercício em um disco…o Rei fica puto e sai do consultório…

      Dias depois, a Rainha pega o disco e ouve o marido discursando de forma impecável…e manda o sujeito de volta ao tratamento. Na cena final, o Rei discursa com uma sinfonia tocando ao fundo…

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