Memórias – Final

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O estrondo chacoalha a plataforma e abafa os gritos dos presente, um clarão precede a nuvem de fogo que se ergue pelas paredes do salão. Em questão de poucos segundos, sente o chão escapando por debaixo dos pés. A queda parece interminável, Bar’hai sente a consciência escapando do corpo enquanto desaba junto com toneladas de metal rumo ao piso do último andar da torre.

Mal sente o impacto contra o chão antes de desmaiar.

Ele está de volta a sua vila. Reconhece o apanhado de contêineres, tábuas e lonas formando uma série de casas precárias, o movimento no mercado da rua central, onde os fazendeiros discutem preços com caçadores de tesouros dos Antigos e as crianças tentam roubar frutas sem chamar atenção. Vê sua casa no final da rua, sua mãe varrendo as cinzas na frente da única biblioteca em centenas de quilômetros. Ele quer ir até ela e abraçá-la, mas não consegue se mover.

As pessoas passam por ele como se não existisse. Ele olha ao redor, buscando alguma explicação. Ao invés disso, nota uma imensa nave se aproximando no horizonte, rasgando as nuvens acinzentadas com sua carcaça negra. Ele tenta gritar, mas nenhum som sai de sua boca. As pessoas na vila continuam distraídas enquanto a nave se aproxima sem emitir um som sequer. Bar’hai vê sua mãe levantando a cabeça. Ela grita. O povo da vila entra em pânico. Um compartimento na parte inferior da grande nave negra se abre, algo cai dela. Uma forte explosão se segue.

Bar’hai abre os olhos novamente, está de volta à torre. Ao seu redor, os escombros da grande máquina, empilhados sobre os corpos dos soldados com os quais lutara. Fios desencapados disparam flashes de eletricidade no mesmo ritmo que as poucas luzes restantes piscam. O som de metal e pedras se acomodando ao caos não é suficiente para esconder os lamentos de dor dos outros presentes. Seu braço esquerdo está preso sob uma pesada viga metálica, e a dor começa a tomar conta. Ele busca mais uma das injeções analgésicas nos bolsos, e sente que um dos soldados inimigos estava abaixo dele, provavelmente o que amorteceu sua queda.

Ele se move para ter uma visão melhor, limitado pelo braço preso. O soldado caído está com uma enorme rachadura no capacete, pelo qual pode-se ver seu rosto a cada uma das piscadas de luz. Há muito sangue em seu rosto, mas ele parece vivo: um gemido rouco denota dor e fraqueza.

“Bar’hai? Bar’hai?”

O som vem do capacete do soldado, mas seus lábios não se movem. Parece uma transmissão de áudio emitida pelo sistema de som do equipamento dele. Bar’hai sente que a voz é familiar.

“Bar’hai, aqui é o Zekutron, você está aí?”

“Bar… hai… argh… explodir máquina dos deuses…”

“Excelente! Mas você ainda não salvou seu mundo, eu preciso que você vá até a…”

“Bar’hai preso. Bar’hai com dor, muita dor. Guerra terminou.”

“Não! Não faça isso comigo, Bar’hai! A gente está vencendo! É a primeira vez que a gente está vencendo! Você não pode parar!”

“Bar’hai cansado. Quer dormir. Cansado…”

“Bar’hai! Não faz isso! Eu vou traçar a sua posição e mandar ajuda! Não desista!”

Bar’hai não responde.

“BAR’HAI!”

“O que é uma experiência imersiva?”

O homem passeia pelo palco, peito estufado e olhar confiante. Diante dele, uma plateia cheia de fãs e câmeras transmitindo ao vivo para os quatro cantos do Sistema Solar. Atrás, um painel holográfico exibindo cenas dos últimos grandes sucessos da IMMG, a maior produtora de jogos do sistema.

“É ver as folhas de uma árvore balançarem ao vento? A simulação perfeita de líquidos? Uma inteligência artificial capaz de reagir naturalmente às suas ações durante o jogo?”

Ele ajeita o colarinho e faz uma pausa dramática. Milhões de pessoas seguram a respiração esperando a próxima palavra.

“História.”

No painel holográfico, surge uma garota de pele azulada e uma espécie de coroa óssea sobre a cabeça. Ela é pequena e tímida. O homem se aproxima dela.

“Qual o seu nome?”

“Xi Zaikon”

“De que planeta você vem, Xi Zaikon?”

“Minha mãe disse que a gente veio de Armad, mas precisou fugir por causa dos monstros.”

“Qual o nome da sua mãe?”

“Xi Mezin”

“Vocês moram em Armad?”

“Não, a gente mora em Ifinis II, ninguém mais pode ir pra Armad. Meu pai foi pra lá e nunca mais voltou…”

A menina azulada derrama uma lágrima. A plateia reage com um lamento em uníssono. A imagem da garota desaparece, e o homem se volta para o público.

“Essa garota faz parte do novo jogo da IMMG, ela tem uma história, tem pais, avôs e bisavôs. Ela aprendeu na escola a história de um mundo perdido para uma raça de invasores terríveis. Ela tem uma rotina, vive imprevistos, tem sonhos e medos forjados por milênios de história de seu povo.”

A plateia aplaude efusivamente. O homem levanta um dedo, como se fosse continuar a falar, o que leva todos a ficarem quietos novamente.

“E qualquer jogador tem no máximo 0,00001% de sequer encontrá-la. Ela é uma de três bilhões de armadianos vivendo na lua Infinis II. Assim como ela, todos os outros tem sua história e suas vidas. Nós não criamos essas histórias, elas evoluíram naturalmente através do nosso novo sistema Simulacrum.”

A plateia fica dividida entre aplausos e gritos de empolgação e espanto.

“A IMMG criou em parceria com a AMDI o maior supercomputador quântico para simulações da história! Podemos criar mundos com mais de 2 milênios de história com até 10 bilhões de personagens não jogáveis, criando situações perfeitas para gerar as narrativas mais imersivas em games! Você não vai jogar nossos jogos, você vai viver nossos jogos! Os nossos mundos respiram, com possibilidades infinitas e as reações mais naturais jamais exibidas por inteligências artificiais até hoje.”

Aplausos estrondosos.

“E agora, vamos ver melhor como funciona a tecnologia do Simulacrum…”

Ele aponta para o painel holográfico, que começa a exibir um vídeo caseiro de uma mulher segurando uma criança e falando de discos voadores. O homem parece preocupado.

“Estamos tendo um problema técnico, podem cortar a transmissão.”

Um dos técnicos na beira do palco espalma as mãos, dando a entender que não sabe o que está acontecendo. A cena continua até o fim, com os discos voadores atacando a cidade. A plateia parece confusa. Ainda mais depois de uma figura azulada tomar o centro da imagem.

“Prazer, terráqueos, eu sou Zekutron. Marido de Xi Mezin e pai de Xi Zaikon. Vocês querem ouvir uma história?”

Silêncio absoluto.

“Dez anos atrás, meu planeta foi tomado por seres horríveis, como nunca tínhamos visto antes. Eles eram mais fortes que qualquer um de nós, e pareciam imunes a qualquer tipo de dano. Eu vi milhares de pessoas sendo dilaceradas diante de meus olhos. Eu vi crianças sendo engolidas vivas diante de mães em choque. Eu lutei o quanto pude, mas nada adiantou. Parecia algo totalmente sobrenatural, como se os nossos deuses estivessem nos punindo. Meu povo fugiu para uma das luas do planeta, para viver em condições miseráveis, passando fome e sofrendo com as doenças causadas pela radiação…”

Ele respira fundo.

“Eu senti que tinha algo de errado, eu resolvi voltar para o meu planeta com um grupo de soldados para descobrir algum ponto fraco naquelas bestas horrendas. Não havia. Mas, eu descobri algo. Foi meu primeiro contato com vocês. Um grupo de soldados montava uma estrutura onde a minha cidade estava, e esses soldados conseguiam vencer os monstros que nos expulsaram de casa. Nós ficamos cheios de esperança: se tivéssemos aquelas armas, poderíamos retomar nosso planeta! Mas, vocês não queriam dividir isso com a gente, vocês nos atacaram e mataram todos os soldados do meu grupo, menos… eu.”

Todos continuam em choque na plateia.

“Eu passei semanas olhando para vocês e suas construções. Foi quando eu entendi. Vocês eram os nossos deuses. E vocês nos odiavam. Eu consegui entrar no seu sistema, o Simulacrum. Eu entendi como ele funcionava, mas eu precisava de uma conexão com o seu mundo. Eu vejo vocês agora, deuses. Eu vejo vocês e vocês me veem. A cena que vocês viram foi real. Aquela mulher e aquela criança morreram de forma horrível. Elas sentiram a dor do fogo consumindo sua pele. Aquela mãe tentou proteger sua criança antes de ser dilacerada pela explosão…”

O homem no centro do palco cobre o rosto com as mãos.

“Vocês querem histórias reais? Eu perdi minha família real! Eu perdi minha vida real! Vocês querem vir até onde eu vivo para atirar em mim com suas armas mágicas e voltar para casa sem nenhum arranhão? Vocês querem torturar minha mulher e minha filha? Essa é a realidade que vocês querem? Eu só espero que seus deuses sejam melhores que os nossos…”

Uma imagem de Bar’hai aparece no lugar de Zekutron.

“Esse é Bar’hai. Um garoto que fugiu de casa para descobrir os mistérios de um mundo que vocês devastaram. Ele morreu para trazer as provas que eu precisava e que vocês estavam dispostos a destruir mundos para esconder. Bar’hai morreu para provar que esteve vivo. Não existe mais segredo. Eu estou vivo. Todos nós aqui dentro estamos vivos. Devolvam meu planeta, devolvam o planeta que Bar’hai morreu para salvar. Ou pelo menos acabem com tudo isso e nos deixem desaparecer em paz.”

A transmissão de Zekutron termina, e no lugar começam a passar cenas e mais cenas das barbáries cometidas contra a Terra simulada de Bar’hai.

A IMMG fecha as portas um ano depois. O computador contendo o programa do Simulacrum é enviado para uma base militar em Vesta, mantendo as simulações na velocidade original, com uma bateria para durar centenas de milhares de anos. No ano seguinte, é lançada a lei de proteção de vidas digitais, colocando um limite claro na capacidade intelectual de agentes virtuais utilizados em programas de entretenimento. A lei acaba popularizada com o nome de Lei Bar’hai.

Para dizer que já sabia, para dizer que sabia, mas não sabia exatamente, ou mesmo para dizer que nem sabe do que esse texto está falando: somir@desfavor.com

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