Moral e bons costumes.

Seguindo uma sugestão da Ingrid, hoje falamos sobre moralismo. É o tipo da palavra que em tese todo mundo sabe o que significa, mas na prática vira uma bagunça de opiniões conflitantes sem nenhum padrão. O que provavelmente explica o momento cultural cada vez mais estranho no qual vivemos…

Então, para começar, vamos encontrar um lugar comum e colocar todas as palavras relacionadas em seus devidos lugares: moralismo significa eleger um conjunto de valores morais como essenciais para a vida em sociedade. Pode ter raiz religiosa ou filosófica, desde que eleja uma moral específica como a linha guia do comportamento humano. Moralista é quem fica julgando os outros baseado no que considera o comportamento ideal.

Mas isso cria um novo problema: o que seria esse comportamento ideal moral? Qual a diferença entre moral e ética, uma palavra que sempre aparece junta nessas conversas? Bom, temos que voltar no tempo: os gregos usavam a palavra êthica com um duplo significado, no campo individual significava o que vinha de dentro de uma pessoa para gerar uma ação no mundo externo, algo como a motivação humana de agir. Já quando se usava a palavra para falar de um grupo de pessoas, era o resultado social desses estados internos de cada um dos indivíduos, o quanto de cada um estava representado ou reprimido no grupo. Ou seja, existia uma êthica da pessoa e uma êthica da sociedade, e as duas estavam intimamente relacionadas.

Os romanos queriam traduzir a palavra, mas perderam a sutileza da ideia, o que na prática nos deu uma nova palavra: moralis. O problema é que essa palavra estava muito mais focada na parte social da coisa, pensando no grupo mais do que no indivíduo. A palavra segue pelas eras correndo em paralelo com o termo original dos gregos, criando “moral” e “ética” como elementos separados… que praticamente ninguém sabe diferenciar. Se separar os conceitos sempre foi difícil pra você, sorria, fizemos uma confusão com eles mesmo.

Por isso, precisamos alinhar as coisas: quando eu me referir à moral neste texto, falo do conjunto de valores de uma sociedade, e quando falar de ética, estou focando nos valores de uma pessoa específica. Sim, eu sei que um semestre de filosofia que seja vai bagunçar sua cabeça de novo sobre esses conceitos, então, só aceite essas definições dentro deste texto para podermos avançar a conversa, e se elas te ajudarem a entender melhor o mundo quando terminar de ler, sinta-se livre para continuar usando. Moral é o que a sociedade espera que você faça, ética é o que você decide fazer de acordo com seus valores.

Então, voltemos ao moralismo: era de se esperar que com o passar do tempo nos tornássemos menos moralistas, certo? O mundo moderno com suas grandes cidades e comunicação instantânea teria tudo para reduzir a força do controle de entidades como religião e Estado sobre a forma como as pessoas vivem suas vidas. Quem mora em cidade pequena pode te dizer que o simples fato de todo mundo viver próximo e se encontrar frequentemente aumenta demais o poder do moralismo sobre indivíduos: a velha carola e fofoqueira sabe o que você está fazendo e com quem está andando. Ela conhece sua família e seus amigos. Não é difícil regular a vida do outro quando se mora numa comunidade pequena. E como o grupo de pessoas com o qual se convive é limitado e também sofre com o mesmo tipo de pressão social, o indivíduo paga um alto preço por não comungar com os costumes das pessoas ao seu redor.

Em contraste com quem vive numa cidade gigante como São Paulo, por exemplo. Um amigo meu de lá já me disse que quando você encontra um conhecido por acaso na rua, tem que parar e tomar um café com a pessoa para comemorar, porque as chances são astronomicamente pequenas. Numa cidade dessas, você passa uma boa parte do seu tempo lidando com pessoas que nunca viu antes e provavelmente nunca vai ver depois. Isso relaxa as regras sobre o que cada um faz com a própria vida, afinal, suas interações com outras pessoas são muito mais planejadas: você se encontra com quem se interessa pelo encontro, e isso normalmente significa visões parecidas sobre moral e ética. Você não precisa se adaptar tanto assim, porque as chances de conseguir socializar com quem já pensa como você aumentam exponencialmente.

Some a tudo isso um mundo conectado pela internet, e mesmo quem não consegue achar pares pelas vias habituais acaba encontrando abrigo em comunidades virtuais. Se a sua visão sobre o mundo só encontra reflexos num país do outro lado do mundo, você ainda consegue encontrar essas pessoas e não sofrer com rejeição completa. E como somos seres sociais, dificilmente somos imunes à ameaça do ostracismo: poucas coisas assustam mais o ser humano médio do que ficar isolado do resto das pessoas. Reflexo de um processo evolutivo que prezou pela criação e manutenção de grupos para garantir nossa sobrevivência. Ninguém é feito para ser uma ilha, precisamos de conexões.

Era de se esperar então que o moralismo estivesse com seus dias contados: com tanta gente se mudando para grandes cidades e comunicação instantânea com o resto do mundo, ninguém mais precisa seguir as regras sociais das pessoas que calham de estar mais próximas, certo? Vivemos num mundo onde a ética (pessoal) está substituindo a moral (social)? Bom, não é tão simples assim. Por mais que esse mundo de grandes metrópoles e smartphones seja boa parte da vida da maioria de nós, nas escalas que se analisa a presença humana nesse planeta, é apenas um piscar de olhos. Somos, de um ponto de vista biológico, muito mais velhos do que acreditamos ser com nossas ruas congestionadas e aparelhos portáteis. A moral ainda faz parte do nosso DNA.

Talvez pelo processo recente da guerra cultural entre direita e esquerda, o desfavor começou a atrair um grupo cada vez maior de pessoas que olham para a sociedade atual e se preocupam com uma espécie de degeneração moral da humanidade. Para essas pessoas, o parágrafo anterior pode parecer uma explicação para comportamentos bizarros que analisamos, como se a mentalidade moderna estivesse liberando a parte ruim das pessoas e não houvesse mais formas eficientes de controlar isso. Acreditam que sem moral, a ética podre de muita gente começa a moldar a sociedade.

Eu consigo entender de onde vem essa ideia, mas vou oferecer um novo ponto de vista, baseado nas definições que estamos usando neste texto: de evangélicos tentando banir livros a ativistas tentando dar hormônios para crianças, estamos todos vendo o moralismo voltar com força na nossa sociedade. Se ser moralista é julgar os outros a partir de um conjunto de valores que se acredita ideal, não existe obrigação nenhuma desse conjunto de valores ser conservador. Moralista não é só quem defende casar virgem, é quem olha para o outro e quer definir quais regras de comportamento esse cidadão tem que seguir. Pensando assim, podemos olhar para a guerra cultural atual e perceber esse ponto em comum nos dois lados: a necessidade de impor valores de fora para dentro do cidadão. Pode chamar de moralismo ou autoritarismo neste contexto.

Então, é importante entender que a disputa não é entre quem quer defender a moral e quem quer destrui-la, é uma guerra para saber quem vai impor o seu moralismo na sociedade. A ética do indivíduo foi jogada para segundo plano, provavelmente porque ainda não sabemos viver num mundo tão “livre” como tivemos a oportunidade de experimentar nas últimas décadas. Ter a liberdade de tomar as próprias decisões sobre o que se deve fazer além das limitações da lei é assustador para quem não tem o pensamento crítico desenvolvido. O moralismo de outrora, de raiz religiosa e conservadora, baseia-se muito mais na forma como o mundo estava disposto, em comunidades menores e mais separadas, do que propriamente numa necessidade natural do ser humano de ter esses valores.

A moral é uma construção de cada período histórico com suas possibilidades e limitações. Ela se desenvolve naturalmente a partir das escolhas e influências de cada cidadão, com sua ética pessoal. Os gregos acertaram a palavra, os romanos só criaram confusão com a tradução. Moral não é o que você acha certo, moral é o que acaba acontecendo na convivência entre as pessoas. São costumes e hábitos que nem sempre tem uma fundação racional, afinal, surge de seres que vivem agindo de forma irracional. De uma certa forma, são as leis não oficiais de um povo. Até pouco tempo atrás, uma mulher divorciada era tratada quase como uma prostituta pela sua comunidade, homossexuais não podiam se revelar sob a pena certa de perderem sua família, emprego e amigos. Esse é o moralismo que agora é fácil de compreender, mas não é sua única forma de existir.

Hoje em dia, na “sociedade paralela” da internet, se você fizer um comentário negativo sobre transexuais, corre o risco de sofrer a mesma punição de ostracismo social que transexuais recebiam no passado. É moralismo de novo: são pessoas que tem certeza que sabem melhor do que qualquer um a forma certa de viver em sociedade e vão fazer o que puderem para gerar conformidade, primeiro em seus grupos (as mesmas opiniões que tinha em 2010 passaram de esquerda para direita nessa última década sem eu fazer nada) e depois onde quer que conseguirem colocar suas garras. Atualmente a coisa está mais restrita na internet e alguns grupos mais elitizados, mas a marcha do moralismo “de esquerda” continua ganhando território.

E ao mesmo tempo, o moralismo conservador (que agora virou extrema-direita) aumenta seu tom dia após dia. De uma certa forma, oficializou-se uma disputa ideológica com o mesmo objetivo final: definir qual moralismo vai se instalar. O novo moralismo progressista vem para retirar o conservador do seu lugar, que luta com força elegendo qualquer babuíno para cargos de poder desde que defenda seu conjunto de valores. Não importa quem ganhe, o objetivo é o mesmo: cagar regras para cima de todo mundo, para manter algum senso de estabilidade na sociedade, seja lá qual for essa estabilidade.

No meio dessa pancadaria, a ética fica em segundo plano. O indivíduo recebe menos estímulo para fazer senso do mundo ao seu redor através do próprio pensamento, e é incentivado a comprar um conjunto fechado de valores de um bando de moralistas que tem certeza que resolveram todos os problemas da humanidade e seu caminho é o único. Se você tem um pensamento progressista entre os conservadores, é comunista degenerado. Se você tem um pensamento conservador entre os progressistas, é um fascista retrógrado. São as velhas carolas fofocando nas janelas da cidade pequena de novo! Elas nos perseguiram até as grandes cidades e a internet. E pior, agora tem duas facções delas criticando tudo o que consideram subversivo!

Minha teoria é que esse movimento recente rumo a um mundo tão globalizado e populoso foi rápido demais para a mente do ser humano médio. Entramos em pânico com tanta liberdade possível. Se somos instintivamente incentivados a derivar valor pessoal da aceitação alheia, essa coisa de “cada um faz o que quiser” é desesperadora! E o medo de ser abandonado pela tribo, onde fica? Não existe incentivo suficiente para o autoconhecimento e para a habilidade de trocar ideias uns com os outros. Não nos conhecemos o suficiente, por isso ficamos com muitas lacunas que a “moral da sociedade” acaba preenchendo, e não aprendemos a nos comunicar de forma a entender o outro, o que deixa quase todo mundo morrendo de medo de ser deixado para trás. Se você não consegue se comunicar direito e construir relações, não encontra conexão nem mesmo num namoro! Essas falhas fundamentais na hora de viver num mundo com menos moralismo geraram um movimento contrário: a busca por uma verdade universal de comportamento que obviamente resultaria em muitas discussões entre grupos de bases distintas.

O moralismo é uma espécie de doença que se instala em sociedades com baixa imunidade individual. Cidadão que consegue fazer senso da sua ética e aplica-la no mundo real, entendendo suas motivações e comparando-as com a de outras pessoas sem medo de estar errado é cidadão que consegue se proteger dessa pancadaria ideológica de gente que morre de medo de ficar sozinha com os próprios pensamentos. Não é sobre ter valores conservadores ou progressistas, é sobre entender como nosso estado interno impacta o ambiente, e como o ambiente responde a isso, modificando de volta nosso estado interno.

Era só ter traduzido a palavra direito que não precisaríamos dessa volta toda para explicar as coisas, romanos! Vocês só tinham um trabalho…

Para dizer que é assustador precisar entender porque faz as coisas que faz, para dizer que o outro está sempre errado, ou mesmo para dizer que nunca mais vai conseguir usar a palavra moralismo do mesmo jeito: somir@desfavor.com

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Comments (15)

  • Depende inclusive de quanto poder você dá às pessoas e aos eventos que te cercam. Claro, muitas vezes estamos sujeitos a outrem ou a alguma situação específica; ou desafiamos essa circunstância e pagamos o preço por fazê-lo, ou aceitamos que vai ser mais ou menos como ela conduz.

    Por isso, desapego é bom. Não é falta de amor, consideração, compreensão, senso. É saber que tudo é mutável, e que pode ser traiçoeiro. As coisas mudam, você muda, a necessidade de sobrevivência, conforto ou de “estar certo” demandam mudanças…

    Somos adaptativos. Isso garantiu nossa sobrevivência por milênios.

  • Somir, gostei muito de como você abordou o tema. Aderir à dinâmica de submissão-dominação é muito tentador quando nos vemos supostamente livres – e talvez essa insegurança seja uma das poucas coisas realmente “universais” na espécie humana.
    Você acha que tem como conciliar moral e liberdade (na educação de uma criança ou na construção de uma nova sociedade, por exemplo)?

    • Eu honestamente acredito que uma moral internalizada permite muita liberdade. Quando a pessoa é estimulada a aprender o motivo e as implicações da moralidade de uma sociedade, ela não precisa de tanta supervisão, pois consegue entender a relação entre as coisas e aplicar essa moral em situações que não foram previstas na sua criação. Moral é algo ensinado, mas esse ensinamento pode ser superficial (mandamento religioso) ou profundo (internalização do conceito). Os países com os melhores IDHs do mundo que não me deixam mentir…

  • Alguns trechos me chamaram atenção:
    “…porque ainda não sabemos viver num mundo tão “livre” como tivemos a oportunidade de experimentar nas últimas décadas. Ter a liberdade de tomar as próprias decisões sobre o que se deve fazer além das limitações da lei é assustador para quem não tem o pensamento crítico desenvolvido”

    Isso é tão Dostoiévski e Nietzsche! De fato, liberdade demais assusta, e a gente não sabe bem o que fazer com ela. Daí que a humanidade prefere criar regras pra se auto condenar prisioneiro e abrir mão de certa liberdade total do que aproveitá-la em sua plenitude.

    “…é incentivado a comprar um conjunto fechado de valores de um bando de moralistas que tem certeza que resolveram todos os problemas da humanidade e seu caminho é o único.” Resumiu bem o problema de hoje. Malditos cagadores de regras e que acham que são o centro do mundo.

  • como lidar com o fato de que o mundo é dominado por satanistas pedófilos que querem que a gente coma carne de inseto?

  • Eu não me preocuparia com essas pragas moralistas se não tivessem tanto poder, ao menos na minha bolha social. Já vi e ouvi tanta merda que dá vontade de gritar e mandar todo mundo pra puta que pariu, mas eu pagaria um preço muito caro por isso, provavelmente de forma literal. E pior é a sensação de que não há escapatória.

  • Realmente, o mundo está mudando mais rápido do que as pessoas conseguem acompanhar, Somir. Tem hora em que eu mesmo fico perdido! Acho que isso acontece com você também. E eu não sei dizer nem se essa mudança toda significa que estamos evoluindo mesmo. O fato é que todos nós precisamos de algo que eu gosto de chamar de “bússola moral; ou seja, alguma coisa bem forte lá em nosso íntimo que sirva para guiar o nosso comportamento e as nossas interações com o mundo. Alguns têm essa tal “bússola” internalizada, surgida, creio, da educação que recebeu desde cedo – inculcação de valores considerados positivos e de noção de certo e errado – e outros buscam essa mesma “bússola” num pacote fechado de nomas já prontas ditado por meios externos e/ou outras pessoas.

    Por outro lado, eu posso dizer que não sou desses que “morre de medo de ficar sozinho com os próprios pensamentos”. Na verdade, para mim, esse tipo de solidão às vezes acaba virando até uma necessidade! Há momentos em que eu me afasto voluntariamente do mundo justamente para colocar as idéias em ordem na minha cabeça quando a bagunça fica grande demais. E, além dessa “faxina interna”, ao agir assim eu também tento, ainda que brevemente, escapar da cagação de regra tanto dos progressistas quanto dos conservadores. Já senti na pele muitas vezes o que você sintetizou: “Se você tem um pensamento progressista entre os conservadores, é comunista degenerado. Se você tem um pensamento conservador entre os progressistas, é um fascista retrógrado.” Parece que ponderação e busca de equilíbrio não são muito apreciados por algumas pessoas…

    • Quem tem sua bússola moral internalizada pode mudar a direção do Norte. Isso assusta quem não confia no senso de direção dos outros (o que muitas vezes é justificável), mas também demonstra que a própria pessoa não sabe muito bem porque faz as coisas que faz. Quem critica o outro normalmente se entrega sobre os próprios problemas… “se eu não sei achar meu Norte, ninguém sabe”.

    • Eu também tendo a pensar que o ser humano precisa de uma “bússola moral” ou coisa parecida. É inerente à natureza humana precisar desse tipo de coisa.

  • Moralismo = ser caga-regras (as do seu grupo são as únicas aceitáveis, os que discordam são a personificação do Mal).
    Hoje em dia, quem não for caga-regras será rotulado de “isentão” pelos dois grupos de extremistas.

    Eu gosto mais de uma definição filosófica, acho que é do Vasquez: Moral são os comportamentos tidos como aceitáveis por um grupo e Ética seria a reflexão sobre as várias possibilidades de Moral em busca de alguma universalidade. Ou seja, você age conforme uma moral, buscando que ela reflita valores éticos (supostamente universais). Porém, os moralistas (caga-regras) não refletem, apenas repetem dogmas da sua ideologia.

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