Seu cérebro te engana.

Você jura que colocou uma coisa em determinado lugar mas, quando você vai procurar, ela não está lá. Você tem certeza absoluta de que pagou uma conta, mas quando vai conferir… não pagou. Você lembra nitidamente de ter combinado tal coisa com uma pessoa, mas não combinou. Pois é, acontece. Seu cérebro é extremamente funcional e competente, mas ele não é perfeito e, várias vezes por dia, ele te engana.

Não são especulações, são afirmativas cientificamente comprovadas: seu cérebro te engana com mais frequência do que você imagina, tomando decisões irracionais que muitas vezes não te favorecem, te fazendo ver as coisas de formas distorcidas e deixando de perceber informações. É o preço que se paga por ter uma estrutura tão complexa e eficiente funcionando no seu corpo.

Quando falamos que o cérebro é algo notável, não é exagero. Segundo a Universidade de Stanford, um cérebro humano comum tem, em média, 86 bilhões de neurônios, que podem formar 100 trilhões de conexões. Se fosse possível criar um computador com o mesmo número de circuitos do cérebro, ele consumiria: 60 milhões de watts por hora, mas o cérebro humano gasta apenas míseros 20 watts para fazer esse trabalho – e mesmo assim consegue fazer coisas que nenhum computador consegue.

Tanta capacidade com tão pouco gasto tem seu preço: para render desta forma o cérebro precisa poupar energia. Ele não conseguiria ter um rendimento tão bom se tivesse que avaliar tudo racionalmente, pensar em todas as possibilidades, estar atento a tudo sempre. Mas, nós, seres humanos, somos control freaks, em parte por causas evolutivas (sobreviveu para passar os genes adiante quem prestava atenção e estava atento a predadores) em parte por causas sociais (bombardeio de uma indústria do medo que deixa as pessoas muito reativas).

Então, como combinar um cérebro que não pode olhar para tudo de forma exclusivamente racional com uma mente que quer controlar tudo? Muito simples: como mecanismo para saciar a ansiedade mental, seu cérebro mente para você. Isso mesmo. Descarta informações sem que você perceba, manipula raciocínio e até inventa coisas que não existem, tudo para que sua mente sossegue, reduza os níveis de estresse e deixe o corpo trabalhar em paz.

É um mecanismo necessário, mas às vezes faz a gente passar umas vergonhas, ter umas certezas que são desmentidas e nos fazem passar de malucos ou mentirosos. Quem nunca passou um pequeno vexame se apegando a uma certeza que não era verdadeira?

A mentira começa pelo que vemos. A realidade nem sempre coincide com o que nós vemos. Na verdade, a coisa é um pouco mais desesperadora… segundo cientistas, o cérebro edita o que a gente vê, de acordo com nossas crenças, com experiências anteriores, com mecanismos de sobrevivência e com o que ele julga ser necessário naquele momento.

E não é uma vez ou outra não! Estudos indicam que uma pessoa passa, em média, 16 horas por dia acordada e, nesse período, ao menos 4 horas são preenchidas por imagens “artificiais” que não foram captadas pelos olhos, e sim criadas pelo cérebro. Preciso relembrar a velha frase? Preciso: sua mente cria realidade.

Isso acontece por um motivo funcional: o olho humano só consegue captar imagens nítidas em uma pequena área de aproximadamente 1 milímetro. Por isso, para “ver” uma imagem nítida, o olho precisa fazer pequenos deslocamentos, como se estivesse escaneando o que vê. Fica poucos segundos em um ponto, e depois pula para outro, de modo a compor uma imagem geral nítida. Observe o olho de alguém que está conversando com você e perceba que ele não fica parado muito tempo.

Essa necessidade de desviar o olhar para ir captando imagens nítidas faz com que o cérebro deixe de receber o estímulo visual, afinal, um olho em movimento não capta nada com nitidez. Durante esse segundo que o olho desvia, deveríamos ver apenas um borrão. Mas o cérebro resolve isso criando de forma automática e imperceptível imagens falsas, com base em tudo que já foi visto antes, dando a impressão de um movimento contínuo. Nossos olhos fazem isso pelo menos 150 mil vezes todos os dias, o que daria em torno de 4 horas diárias de borrões por olhar desviado, ou seja, quatro horas por dia de falsas visões criadas pelo cérebro.

Quer ficar ainda mais perturbado? O que a gente vê não é o que está acontecendo, a gente vê o que está acontecendo mixado com uma previsão do nosso cérebro do que vai acontecer no futuro. Calma, eu não usei drogas, vou explicar melhor.

Não basta olhar para algo para vê-lo. Tem todo um processo da imagem passar pelo olho, chegar no cérebro, ser interpretada, ser compreendida. O olho só capta as imagens, mas quem as decodifica é o cérebro, e esse processo demora. Não demora muito, estamos falando de frações de segundo, mas gera um delay entre o olhar e o compreender o que está sendo visto.

Um atraso de uma fração de segundos é irrelevante, certo? Errado. Seu cérebro discorda de você. Na sua luta para te manter vivo, o cérebro sabe que em uma fração de segundos algo pode cair na sua cabeça, você pode ser atropelado, você pode tropeçar e cair. E a função dele é impedir que isso aconteça.

Para resolver esse pequeno delay que pode representar uma ameaça, seu cérebro… mente. Ele analisa os movimentos de todas as coisas e fabrica uma imagem que não é real, projetando a posição em que cada coisa deverá estar 0,2 segundo no futuro. Você não vê o que está acontecendo agora, e sim uma estimativa do que irá acontecer daqui a 0,2 segundo. Na maior parte das vezes ele acerta, ele é bom no que faz, mas… às vezes o cérebro erra essa projeção, te fazendo ver o que não está lá, te fazendo acreditar em algo que não aconteceu e te fazendo tomar uma decisão que parece maluca.

Está afrontado? Está indignado? Acha que tem que ter recall de ser humano? Bem, talvez seja hora de olhar o cérebro por outro ângulo.

Simplificando de forma bem grosseira, nosso cérebro é capaz de produzir dois tipos de pensamento: o rápido-intuitivo e o lento-analítico. A sociedade prestigia muito o lento-analítico, a capacidade de focar em um cálculo matemático e resolvê-lo, por exemplo. É a chamada “inteligência”, quando se foca o cérebro voluntariamente para solucionar uma questão ou aprender algo. É basicamente isso que se desenvolve em anos de estudo entre escola e faculdade: apenas o pensamento lento-analítico. Perdão pela arrogância, mas é uma tremenda burrice fazer isso.

A maior parte da atuação do nosso cérebro não é lento-analítico, pois, como explicamos, tornaria nossa existência inviável. Durante a maior parte do tempo, gostando você ou não, o cérebro funciona no modo rápido-intuitivo, discriminado pela sociedade. Poucas pessoas sabem que ele existe e quando se fala em qualquer coisa relacionada a intuição, a maioria torce o nariz e a minoria que sobra tem a esperança de ver duendes e unicórnios.

Apesar de funcionar majoritariamente no pensamento rápido-intuitivo, ninguém te ensina como desenvolver esse lado. Te fazem sentar a bunda na cadeira e aprender a tabuada, quem descobriu o Brasil e toneladas de informações lentas-analíticas. Provavelmente nem sabem que o pensamento rápido-intuitivo pode ser desenvolvido – e pode. Cada vez mais a neurociência comprova que é possível e que é o lado que gera mais ganhos quando trabalhado, pois é o que está no comando na maior parte das nossas ações.

“Mas Sally, não somos animais racionais?”. Raramente. Quando se chama o ser humano de “animal racional”, na verdade, o que se está dizendo é que ele tem essa capacidade de acionar o racional quando necessário. Porém, com recursos limitados (ninguém consegue estudar 24h por dia, por exemplo). Os outros animais, em sua maioria, não têm sequer essa possibilidade, eles contam apenas com o rápido-intuitivo. Talvez por isso, por um elitismo bobo, se prestigie tanto o lento-analítico, que é o que basicamente nos difere de uma anta.

Aí eu te pergunto: adianta passar 15, 20 anos estudando para desenvolver seu lento-analítico se, 20 horas por dia você usa o rápido-intuitivo? Bem, taí essa sociedade maravilhosa e saudável para te responder. Longe de mim querer que as pessoas abandonem o outro lado, vivendo apenas do intuitivo, mas um equilíbrio seria bem melhor do que o modelo atual.

Mais um detalhe para te fazer refletir: mesmo em momentos de extrema racionalidade, a intuição também está presente – e o inverso não é verdadeiro. Logo, fica bem claro quem é que realmente manda. Há muitos estudos que mostram que, por mais racional que a pessoa acredite estar sendo, algo de intuitivo interfere, sem que ela perceba ou controle.

Um exemplo engraçado foi a avaliação feita em juízes que deveriam decidir dar ou não liberdade condicional a presos. Uma mente racional avalia o risco que aquela pessoa representa para a sociedade, seu comportamento na cadeia, sua personalidade etc.

E era isso que os juízes acreditavam fazer: essa avaliação racional. Só que os estudos comprovaram que quando os pedidos eram analisados antes de uma refeição (entenda-se, com os juízes famintos) apenas 35% das pessoas conseguiam o benefício. Porém, se os casos fossem avaliados após uma boa refeição, 65% dos presos eram soltos.

Pior: quanto mais perto da hora da refeição (ou seja, quanto mais famintos os juízes estavam), menores eram as chances de outorgarem este benefício, a ponto de que, na meia hora que antecedia à refeição o índice foi de zero concessões. Decisão racional? Será mesmo?

A tomada de decisões pelo cérebro é tão alheia à sua vontade racional que ela pode acontecer antes mesmo de que você a perceba. Quando você acha que decidiu alguma coisa, saiba que é possível que essa coisa já estivesse decidida pelo seu cérebro, cerca de dez segundos antes. Nesse caso, você não decidiu nada racionalmente, você apenas percebeu o que foi decidido. Já falamos sobre isso um pouco neste texto onde experimentos indicam que o batimento cardíaco se altera com tomada de decisões antes mesmo que a pessoa perceba que as está tomando.

Experimentos similares foram realizados, só que em vez de monitorar o coração, monitorando o cérebro. Voluntários eram colocados diante de uma tela e lhes era pedido que escolham uma letra e que apertem um botão cada vez que a letra escolhida aparecesse na tela.

Dez segundos antes dos voluntários escolherem a letra sinais elétricos correspondentes a essa decisão já apareciam na região do cérebro ligada à tomada de decisões (papo técnico: córtices frontopolar e medial). Da mesma forma, quando a letra escolhida aparecia na tela, a decisão de apertar o botão era tomada muito antes do fato ser externado e percebido conscientemente.

Aquilo que você pensa ser uma decisão sua, racional, é, na verdade, o cérebro cruzando dados e fazendo o que quer, com base predominante de um pensamento intuitivo-rápido. Ele avalia as possíveis opções e escolhe uma delas antes mesmo que você se dê conta.

Esse mecanismo não é negociável. Para ter um cérebro com essa capacidade funcionando, tem que ser assim. Porém, você tem algumas opções para não se deixar enganar tanto: desenvolver e aprimorar a parte intuitiva-rápida, de modo a municiar essa parte inconsciente com melhores ferramentas para tomada de decisão (como fazer isso será tema de outro texto, mas o primeiro passo você já deu, que é entender isso aqui) e, em paralelo, ter a ciência de que seu cérebro te engana e, com isso, duvidar das escolhas e opiniões que parecem racionais, em vez de ter certeza delas. Isso ativará o pensamento lento-analítico, que pode te ajudar a avaliar a questão por outro ângulo.

Como é impossível racionalizar tudo (tomamos milhões de decisões por dia, simplesmente não daria tempo), minha sugestão é que se deixe o preconceito com a intuição de lado e que se passe a encará-la como algo científico e não como algo mágico, místico ou outorgado por seres ilusórios.

Não é paranormalidade, está escrito no nosso código genético, está armazenado no nosso cérebro, só não está ao alcance da nossa percepção. Isso não quer dizer que não exista ou que seja mágico, pois, como bem vimos, nossa percepção pode ser limitada e errada. Não existe apenas o que você percebe ou vê. Na verdade, você percebe ou vê apenas uma pequena parcela do que existe. Você tem ciência de apenas uma pequena parcela das informações e conhecimentos que estão armazenados na sua cabeça.

Então, é possível analisar a situação por dois pontos de vista: 1) que merda, meu cérebro me engana ou 2) que bom, tenho um enorme potencial não trabalhado no meu cérebro a desenvolver. Nosso cérebro tem muito mais coisa armazenada do que conseguimos perceber, em vez de deixar isso jogado em um canto e insistir apenas naquilo que vemos, que tal trabalhar esse enorme potencial?

Na real, as decisões são tomadas levando em conta muita coisa que você sequer percebe e não tem como controlar. Toneladas de informações que estão guardadas no seu inconsciente. Pode parecer exagero, mas talvez nenhuma decisão sua seja 100% racional.

Então, continuar treinando só o racional e achar que isso vai melhorar sua vida, te tornar mais inteligente e te levar por caminhos melhores pode ser ou perda de tempo ou tiro no pé. Focar no manejo do inconsciente (ainda que mínimo) pela intuição sim é algo que pode te trazer benefícios. O bônus é: quase ninguém faz, então, isso te coloca na frente de muita gente.

Para terminar, uma última pedrada: uma pesquisa realizada por psicólogos constatou que, quanto menor a autoestima de uma pessoa, mais ela reluta em acreditar nos próprios instintos, provavelmente por tender a desvalorizar tudo que vem de dentro dela. Se você tem resistência a escutar sua intuição, pergunte-se por qual motivo tanto medo de olhar para dentro.

Para dizer que queria um texto mais leve, para dizer que queria outro cérebro ou ainda para dizer que sim, é preciso um recall de ser humano, mas por outros motivos: sally@desfavor.com

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Comments (15)

  • Interessante….aguardando o próximo texto sobre o assunto.
    Mas antes Sally, por favor, como identificar o que é intuição?? (não faço a menor ideia ou distinção entre um pensamento, uma sensação, um lapso de memória, um dèjavu….).
    Aguardo seu comentário, por favor…
    Abs

  • Tema bem bacana mesmo. Eu tenho acompanhado as pesquisas na área de literatura lá fora, e a última moda agora é o “cognitivismo” aplicado à literatura, isto é: pensar como que a leitura de uma obra literária põe o teu cérebro pra funcionar de uma maneira “especial”, ou no mínimo diferente do normal, e como isso ajuda ou não e no quê. Nesse sentido, várias áreas flertam umas com as outras: a epistemologia, a metafísica, o cognitivismo, a neurociência…

    Mas o que queria comentar mesmo era: no meio disso tudo há quem diga (pesquisas em Massachusetts, Harvard, Yale…) que até mesmo no momento de leitura não tem como estar sempre e 100% em alerta e atenção total, consciente de si, e muita coisa passa despercebido no processo e te engana. Aliás, o modo com que nosso olho escaneia as palavras também tem certo “delay” de previsão em milissegundos entre um espaço e outro da grafia, e isso permite que façamos algumas previsões no texto calcado somente na materialidade textual ela mesma.

    • Sim. O cérebro lê, interpreta e armazena o que sua porção inconsciente acha necessário, a menos que a gente saia do modo de leitura automática e leia tudo com total presença e atenção.

      Aí entram mindfullness e várias outras técnicas para tirar esse modo automático…

  • Ultimamente eu tenho me esforçado para viver cada coisa de uma vez, nada de querer pagar de fodona multitarefa, e meus problemas com esquecimento reduziram bastante, recomendo pra quem puder.

  • Instinto e racionalidade não são opostos nem tampouco mutuamente excludentes. Devem estar equilibrados e “trabalhar” juntos em nossas cabeças. Esse é o segredo para uma vida mais produtiva e menos estressante.

  • Véspera de feriado, Somir! #dáumdesconto #euacredito :P
    Sally, parabéns, que texto amplo e sintético ao mesmo tempo… A gente não faz a menor ideia da mega ferramenta que temos para trabalhar a nosso favor que é o cérebro. Me desanima ter conteúdos tão bons quanto esse, seja em texto como em vídeo, e as pessoas “nem aí”. Não dá mais pra reclamar de acesso, todo mundo tem um celular conectado hoje em dia. Eu realmente não me conformo! Aprendo e melhoro tanto a minha vida com ajuda da internet.
    Tem uns anos que acompanho o Dan Ariely, psicólogo em economia comportamental (!! sim, isso existe, rs), não sei se conhece o trabalho dele. Ele tem alguns TEDtalks maravilhosos, fora os livros (Positivamente irracional, Previsivelmente irracional e A mais pura verdade sobre a desonestidade) e explora bastante essa questão do quanto nossas decisões não são nem remotamente racionais na maioria das vezes que decidimos por algo. Fica aqui a indicação pra vcs e para seus leitores :)
    Hoje acho que a galera do neo-coach tem atrapalhado bastante o contexto na expansão desse tipo de ideia: pinçam conceitos científicos, mesclam com autoajuda, vendem isso caro para caralho, as pessoas compram e não veem resultado prático na vida e acabam se fechando para os conceitos que realmente importam e poderiam ajudá-las. Daí, ao invés de ouvirem ciência vão para o esoterismo. O desespero e o messianismo do brasileiro (sempre quer um salvador, sempre acredita no milagre ou fator externo que resolverá a vida dele pra ele) atrapalham de enxergar o quanto seria possível mudar olhando pra si mesmo e pegando as rédeas da situação. O avanço é lento, gradual, mas acontece. O milagre é imediato (???risos), mas como milagres não existem fica-se só na esperança vã mesmo…

  • Adoreii!!!
    Ontem eu vi e ouvi meu prato arrastando na mesa sozinho, achei que era um gasparzinho, mas devia ser só meu cérebro mesmo

  • Tenho percebido a influência de muitas coisas “irrelevantes” nos meus pensamentos.
    Quando durmo bem fico mais agradável e “pego mais leve” com os outros, por exemplo.
    Parece que o mundo fica colorido

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