Caminho tortuoso.

Amizades são excelentes… até seus amigos resolverem fazer alguma besteira. Especialmente quando essa besteira usa álcool como combustível. Sally e Somir discutem os limites da responsabilidade nessas relações, e os impopulares decidem até onde vão.

Tema de hoje: se um amigo seu bebeu demais e se recusa a entregar a chave do carro, vale a pena brigar com ele para tomar a chave de suas mãos e evitar que ele dirija?

SOMIR

Sim. Álcool é uma das drogas mais perigosas desse mundo justamente porque as pessoas fazem muito pouco dos seus efeitos. Pouca gente entende a gravidade do impacto da substância no seu bom senso ou finge que não entende para se permitir encher a cara no futuro sem culpa. Mas a verdade é que seu cérebro vai ficando progressivamente incapacitado de tomar decisões adultas na medida que você consome a bebida. Bêbados são crianças em corpos de adultos, retendo pouca capacidade de compreensão das consequências de seus atos.

Por isso que, desde que não seja uma constante na vida da pessoa, eu acho tolerável assumir uma briga com um amigo ou amiga que está obviamente se colocando numa situação de imenso risco quando bebe demais. Na minha opinião, todo amigo merece pelo menos uma grande briga pelo seu próprio bem na constância de uma relação de amizade. Ninguém quer ser babá de bêbado sempre, mas numa situação extrema, vejo como uma necessidade da relação.

Já faz algum tempo que eu aprendi meus limites com o álcool, e quase sempre sou a pessoa mais sóbria em qualquer situação social com amigos. Eu não gosto de perder o controle sobre minha mente, mas sei que sou minoria. Na média, as pessoas bebem além da conta quando tem a oportunidade. Num ambiente controlado, não é para dar nenhum problema maior, mas de tempos em tempos algo dá errado e você se vê numa situação como a da pergunta de hoje.

E aí é importante se lembrar que todos somos falhos. Não erramos todos nas mesmas coisas, mas que todos erramos, erramos. Uma das principais vantagens de formar boas relações durante a vida é ter um equilíbrio entre defeitos num grupo de amigos para que um possa ajudar o outro nos momentos mais difíceis. Eu posso não ser um bom amigo para quem precisa de muita sensibilidade, mas sou excelente para quem precisa de bom senso e racionalidade. Entrego isso para o grupo e recebo dele o que me falta. É a base da cooperação humana.

Não acho que seja saudável manter uma amizade com alguém que se recusa a melhorar nos defeitos que tem, mas não é nada demais lidar com situações pontuais de falhas dos seus amigos. É importante fazer essa separação aqui: não estou dizendo que toparia uma amizade com um alcoólatra que precisa ser restringido fisicamente de dirigir a cada vez que sai para beber, mas se um amigo passa do ponto e não está em condições mentais de perceber a merda que está prestes a fazer, vale um esforço extra. É o que eu quero dizer quando digo que amigos merecem pelo menos uma briga.

Sim, são adultos, mas assim como não espero que de mim um comportamento ideal o tempo todo, não posso esperar o mesmo dos outros. Posso até entender quem lava as mãos para uma pessoa com mais de 30 anos querendo fazer uma besteira enorme, mas eu não conseguiria dormir direito depois se não tivesse tentado alguma coisa. Até porque não precisa mandar a pessoa para o hospital de tanto enfiar a porrada, basta ir até o limite do razoável para a situação. Se mesmo depois de você fazer um grande esforço, a pessoa ainda sim insistir em dirigir muito bêbada, você cumpriu o seu papel.

Não importa o que aconteça depois dessa briga, você está na vantagem: se você conseguiu impedir e a pessoa te agradece depois, pode ser que ela aprenda e não te dê mais trabalho. Se você impediu e ela ficar brava com você, é uma amizade merda a menos na vida. E mesmo que você seja derrotado, tem liberdade para excluir essa amizade da vida e não passar mais por esses perrengues, ou a pessoa pode lembrar do seu ato como uma prova de carinho e preocupação e melhorar por causa disso.

Não é proteger uma amizade a qualquer custo por carência, não é síndrome de super herói, é analisar uma situação e escolher fazer um esforço extra. Pode ser que o resultado seja positivo, pode ser que seja negativo, mas seja lá o que acontecer, você lidou com aquilo na melhor das suas capacidades. Claro que eu estou pensando pelo ângulo de um homem, que tem mais chances de não pagar caro por uma briga, talvez se eu fosse mulher eu tivesse mais medo de confrontar agressivamente alguém. Sem contar que força física faz muita diferença para o sucesso da operação.

Mas é novamente aquela questão do que você tem para oferecer. Homens tem uma chance maior de resolver as coisas na força bruta, por isso faz parte do arsenal na hora. Mas uma mulher pode fazer isso com palavras e talvez uma manipulação emocional e se considerar tão investida na atividade quanto alguém que foi lá arrancar a chave da mão do amigo na ignorância. Se você foi até o limite do que é razoável para você, você brigou para ajudar a pessoa. Se eu fosse amigo de um lutador de UFC, talvez não considerasse razoável a via da força física para resolver essa situação, e não me sentiria nem um pouco culpado por não escolher essa forma de resolução. Brigar é mais do que perguntar “tem certeza?”, mas pode ser menos do que rolar no chão para arrancar a chave do carro da mão da pessoa.

O importante é deixar muito claro que você se opõe à situação, até porque bêbado tem uma percepção muito limitada do que está ao seu redor. É meio como gritar com uma pessoa meio surda: você não está gritando para agredi-la, mas sim porque é o que funciona na situação. O bêbado não entende direito uma conversa tranquila, faltam neurônios de plantão para lidar com aquilo. Você tem que fazer mais barulho do que o normal. E não precisa colocar nas suas costas a responsabilidade pelo resultado final: pode ser que você perca a briga e a pessoa se mate dirigindo depois. Não foi culpa sua. Você não é responsável pelas consequências só porque se importou. Mas você se importou. E para a maioria das pessoas, é isso que interessa. Melhor falhar brigando do que se arrepender calado. A pessoa merece pelo menos isso. Tem gente que enche a cara por motivos compreensíveis, e o faz com tanta raridade que vale o esforço.

E se acontecer igual na próxima vez que vocês saírem… troque de amigo ou não faça planos de longo prazo com a pessoa.

Para dizer que eu só quero desculpa para encher a cara (não leu o texto, né?), para dizer que é por isso que o Alicate continua vivo, ou mesmo para dizer que não se intromete nos trabalhos de Darwin: somir@desfavor.com

SALLY

Você sai com um amigo seu. Ele vai de carro e, mesmo assim bebe demais. Na volta, você pede que ele lhe entregue as chaves e não volte dirigindo. Ele se recusa. Você insiste, conversa, argumenta… mas ele continua se recusando. A única forma de tomar as chaves do carro da mão dele é através de uma briga. Você compra essa briga?

Não. Estamos falando de uma decisão consciente: a pessoa sabia que ia dirigir e, ainda assim, escolheu beber. Pela lei, não pode beber nem mesmo um mísero gole de álcool quando se estiver dirigindo, portanto, ainda sóbria, a pessoa decidiu que ela é boa demais para respeitar a lei que obriga o resto dos mortais. Tudo que posso fazer é argumentar. Só. Brigar, correr o risco de levar um soco, de me machucar, por uma pessoa que fez uma escolha consciente de correr esse risco? Não, obrigada. Sou amiga, não Limpadora de Bunda.

O ponto central aqui não é “meus amigos devem respeitar a lei”. Eu ajudaria um amigo meu que eventualmente, para se defender ou movido por uma forte emoção (ex: pegar o estuprador da sua filha) acaba matando alguém. O ponto central é o que está em jogo é a motivação: nesse caso, há zero necessidade de beber e dirigir, quem o faz, o faz por arrogância, prepotência, imbecilidade pura. E coloca em risco não apenas a si mesmo, como a todos os inocentes que estão dirigindo naquela noite.

Se um amigo meu decide colocar em risco a vida de outras pessoas por um motivo que eu entenda justificável (ex: dirigir depois de beber para socorrer a esposa que foi atropelada e está gravemente ferida) eu posso compreender e, quem sabe, até apoiar. Mas se decide colocar em risco a vida de outras pessoas por puro capricho, por uma infantilidade, por uma simples recusa em cumprir uma lei, eu não vou muito longe por causa dessa pessoa não. Aliás, é altamente improvável que eu sequer seja amiga de uma pessoa assim.

Posso pedir, posso argumentar, posso até implorar, mas não vou me meter em uma briga por alguém que está apenas se comportando de uma forma mimada e sem noção. Uma pessoa que se comporta assim está claramente em uma espiral autodestrutiva e não serei eu a impedir, ao menos não brigando para tomar a chave à força de sua mão. Esse tipo de conduta vai permear a vida da pessoa o tempo todo e eu não poderei estar por perto para “salvá-la” cada vez que ela se sabotar. Nem quero, meu tempo e minha energia são para coisas produtivas, não para ser babá de alguém.

Simplesmente não vale o risco de me machucar, de me meter em um embate físico, de me prejudicar de alguma forma. Até o diálogo eu vou, mais do que isso é colocar o meu bem-estar na frente do bem-estar de quem não se cuida e não quer ser cuidado. Não, obrigada. Já fui muito salvadora do mundo, agora cansei. Estou aposentada. Em meu lugar assumiu “A vida ensina”.

Cruel? Não. Gostar de si mesmo e se poupar de certas batalhas é maturidade, principalmente quando as batalhas forem sem sentido. Por mais que eu goste muito de um amigo meu, quem coloca uma roleta-russa na cabeça e dispara não está tomando o cuidado que deveria com a própria vida e talvez precise de um aprendizado (e não de um limpador de bunda que sempre impede que o tiro saia) para se portar de forma mais condizente com o que se espera de um adultinho. Não estamos falando de adolescentes, estamos falando de pessoas que já passou dos 30 anos de idade, que já deveriam levar a vida com um pouco mais de seriedade.

E, ainda que a gente olhe do ponto de vista da amizade, sinceramente, ser amigo não é estar sempre limpando a bunda dos outros. Ser amigo, ou qualquer outra modalidade de amor, implica, muitas vezes, em deixar a pessoa cair, se ferrar, passar pelo aprendizado. Se você estiver sempre limpando a bunda do outro, cria uma falsa sensação de que o outro sempre será salvo, de que é intocável, pode fazer tudo que quiser. Isso não ajuda a pessoa a amadurecer, muito pelo contrário, é ser um facilitador dessa atitude infeliz e infantil.

“Mas Sally, vai deixar a pessoa morrer para ela aprender?”. Não necessariamente. Vou deixar ela escolher o risco que quer correr. Há um universo de possibilidades. Pode não acontecer nada, pode acontecer um acidente leve, pode acontecer um acidente grave, pode acontecer um acidente catastrófico. Não estou mandando a pessoa para uma cadeira elétrica, estou apenas aceitando que ela assuma o risco que escolheu assumir, apesar de todo meu aconselhamento.

Sair na porrada não é uma opção, as pessoas são adultas e tem todas as informações para fazer essa escolha. Se uma noitada bebendo vale o risco de vida para a pessoa, eu francamente nem acho que essa vida mereça alguma proteção. Se o dono não cuida, não serei eu que vou me meter em briga para cuidar, por mais que goste da pessoa, ela tem o sagrado direito de cagar para sua vida e bem-estar.

É duro de escutar, mas se o próprio dono da vida não liga a mínima, por qual motivo eu, do alto do meu um metro e meio, vou arriscar a minha integridade física por quem não se dá valor? É muito triste, mas essa equação Pessoa Que Não Se Dá O Valor + Pessoa Que Valoriza Quem Não Se Dá O Valor tem um resultado muito ruim.

Sou amiga, não limpadora de bunda. Até o argumento eu vou, disso eu não passo com uma pessoa que não se ama, não se cuida e se coloca voluntariamente em risco. Se tem uma coisa que eu aprendi é que nem todo o amor do mundo pode ajudar quem não quer ser ajudado. Muito pelo contrário, se a pessoa tem sempre alguém ali tomando a chave da mão à força, ela tende a repetir cada vez mais esse tipo de babaquice. Na real, quem toma a chave da mão acha que está ajudando, mas não está, pois estimula esse tipo de postura e nem sempre vai estar por perto para salvar o dia.

Por mais que você ame seu amigo, é um sintoma não amar a você ainda mais. Se colocar em risco para que seu amigo não se coloque em risco não é saudável, vai ser bom samaritano assim na casa do caralho, isso tem outro nome. Joga fora tua capa de herói, pois ela não é sinal de nobreza e sim um sintoma de algo errado. Não seja cúmplice da coisa errada, não seja enabler de comportamento nocivo, não seja limpador de bunda dos outros, caso contrário, não vai te sobrar energia suficiente para cuidar de você mesmo como você merece.

Para dizer que eu sou uma péssima amiga, para dizer que você precisa dessa sensação de herói e bom samaritano para se sentir bem com você mesmo ou ainda para dizer que nem sequer se dá ao trabalho de sair com quem bebe e dirige: sally@desfavor.com

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Comments (11)

  • Sou abstêmio e tenho me mantido o mais afastado possível de gente que bebe, mas acho que fico com o Somir nessa. Em uma situação hipotética, caso não haja mesmo outra maneira, teria que tomar a chave à força. Se o cara for mesmo meu amigo, talvez me agradeça por tê-lo impedido de fazer merda e, se não for, vai ser um a menos para me encher o saco. O que eu não quero é ficar depois me sentindo mal – e levando a culpa comigo pelo resto da vida – por ter deixado acontecer uma desgraça quando podia ter feito algo para evitar; sem falar que um acidente causado por um bêbado ao volante pode arruinar a vida até de terceiros que nada tinham a ver com a história.

  • Eu podia jurar que a Sally ia argumentar que sim e o Somir que não. O mundo dá voltas mesmo…

    Mas acho que tendo a ficar com a Sally nessa mesmo. Tem coisas que não vale a pena gastar energias para, tem mais é que deixar a pessoa se fuder mesmo pra aprender sozinha, com a dor.

  • Geraldo Renato da Silva

    Minha opinião é sim.
    Bem sei que cada um tem o direito de fazer o que quiser, se estrepar ao seu bel prazer, mas bebida e direção envolvem muito mais do que uma pessoa: pode matar um inocente. E deixando um bêbado dirigir (que você conhece) se acaba sendo cúmplice de uma tragédia.
    Falo isso por experiência própria: cansei de ser o “motorista da rodada” e já dei algumas porradas em bêbados valentes. Ainda bem que eles têm memória curta e a amizade continua (pelo menos, eu acho).

  • Não tenho muita paciência pra argumentar, vou na força bruta mesmo. Já tomei a chave da mão de um amigo bebum na marra.

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