Guerras do passado.

Um dos argumentos mais comuns de quem repete o mantra de que “no passado as coisas eram melhores” é que éramos mais honrados antigamente. Que as coisas eram mais simples… e até mesmo que o ser humano médio de eras passadas era mais inocente que o moderno. Uma das formas de empurrar essa narrativa costuma vir das nossas visões sobre batalhas antigas e o comportamento de seus soldados. Heróis e feitos de coragem em tempos onde as coisas se resolviam às claras, no fio da espada. Muito melhor que as bombas e drones covardes dos dias atuais, não? Bom… não.

Infelizmente boa parte do conhecimento do ser humano moderno sobre a história de guerras e atribulações políticas do passado vem da ficção. Seja em forma de livros, seja em forma de filmes nas últimas décadas. E várias das escolhas narrativas e estéticas desses meios para tornar o material mais agradável para os consumidores parecem moldar essa ilusão de clareza e honestidade do passado. De uma certa forma, fazemos nossos antepassados de bobos para mantê-los mais agradáveis: em qualquer meio ficcional, personagens que agem e pensam de forma mais inocente costumam ser mais carismáticas.

Mas não se enganem, não nascem rosas de um pimenteiro. Somos descendentes dos que melhor se adaptaram à vida em grandes sociedades. E isso significa que você pode acusar seus antepassados de muitas coisas, mas nunca de serem tolos que colocaram em risco sua sobrevivência. Se fosse possível voltar ao passado, eu tenho certeza que a maioria de nós ficaria chocada com a falta de inocência daqueles que nos precederam. Para não escrever um texto sem fim, resolvi me concentrar no aspecto militar, para explicar como as coisas não eram como você viu na ficção e como isso impacta essa ilusão de honra e honestidade do passado humano.

Para começo de conversa, essas batalhas de pessoas correndo com espadas umas contra as outras passam longe da realidade. O registro arqueológico e os materiais sobreviventes de relatos e estratégias de batalha sugerem que o ser humano antigo tinha o mesmo desgosto por ser espetado e cortado por metal afiado que temos hoje em dia. Quem diria? Durante a maior parte da história humana, o equipamento de batalha mais comum de um soldado qualquer era uma lança e um escudo.

E por um excelente motivo: a prática ensinou que outras combinações normalmente te faziam morrer em questão de segundos numa batalha de grande escala. Na ficção todo mundo usa uma espada enorme e corre em direção ao inimigo, na realidade, os guerreiros só usavam uma quando não tinham outra alternativa. Lutar com uma lança permite atacar o inimigo sem se expor e continuar se protegendo com seu escudo. E a lança ainda tem a vantagem de poder ser atirada para matar o adversário bem longe de onde você está. As pessoas não eram malucas, elas queriam continuar vivendo, e usavam os melhores equipamentos para não ter que chegar perto do inimigo. Flechas e lanças ganham guerras, heróis com machados gigantes correndo em direção ao exército inimigo ganham dezenas de perfurações no corpo.

Numa batalha da vida real, você provavelmente está muito no lucro para o seu exército se conseguir matar um inimigo sem morrer. É outra pessoa do outro lado, e mesmo uma mal equipada e sem treinamento vai dar muito trabalho se estiver numa situação de matar ou morrer. Eu sei que é meio óbvio, mas não custa esclarecer: numa guerra antiga real, ninguém saia matando dezenas de inimigos com golpes de espada. Até porque obviamente alguém ia te enfiar uma lança nas costas ou flechada na cabeça assim que você desse um passo para dentro das linhas inimigas.

O herói do filme entra no meio de cinco soldados inimigos para criar uma situação de emoção e risco. Na vida real, essa pessoa estava 100% morta ou incapacitada em questão de segundos. Evidente que nossos antepassados não praticavam esse tipo de estratégia militar. As coisas eram muito mais bem pensadas, e quanto mais você conseguisse fazer mal à tropa inimiga sem se expor, melhor. Os melhores generais do passado não usavam drones porque não tinham drones. Qualquer vantagem “covarde” dessas era utilizada na hora. Não mudamos de lá pra cá. A maioria das armas do passado que conhecemos são coisas de jogo de RPG baseadas em designs de malucos antigos que nunca foram usadas de verdade em batalhas. Pudera: se não ajuda a matar o inimigo reduzindo ao máximo o risco para quem usa, não vai ser escolhida.

Ah, e foco no escudo: todo mundo que conseguia pregar uma tira de couro ou corda numa tábua usava um escudo. O escudo era a diferença entre a vida e a morte. Portanto, não critique o soldado que luta dentro de um tanque hoje em dia, porque os soldados do passado correriam para dentro de um em um milésimo de segundo dada a oportunidade. Quase ninguém nesse mundo quer se arriscar à toa. Guerreiro que não usava escudo era o rico que podia colocar uma armadura (sempre muito raras nas batalhas pelo trabalho que dava construir uma e o preço exorbitante resultante disso). Ninguém lutava de peito aberto, nem viking. O ser humano nunca foi inocente, e quem foi não passou seus genes para frente. Somos descendentes de pessoas que se esconderam atrás de escudos e aproveitaram brechas para matar inimigos. Os “guerreiros corajosos” morriam no primeiro combate.

E outra coisa que o aprendizado sobre batalhas do passado na ficção nos ensina errado é a taxa de fuga da batalha. Virtualmente todas as batalhas eram decididas por quem fugisse primeiro. A linha de frente tentava matar o máximo de inimigos possível sem se arriscar, e assim que a coisa ficasse visivelmente desequilibrada, o exército em desvantagem saia correndo. E quase nunca os vencedores perseguiam, afinal, para que arriscar sua vida se você já conseguiu o que queria? Você não arriscaria sua vida por um presidente, por que acha que um pobre genérico do passado arriscaria a sua por um rei? Honra? Isso é coisa de livro.

Quer dizer que não existiram pessoas que morreram por seus ideais no passado? Claro que existiram, mas nada sugere que a proporção seja maior que nos dias atuais. É óbvio que entre contar a história de camponês que deu no pé durante a guerra e do comandante que escolheu lutar até o fim, o ser humano prefere a segunda. Eu argumento inclusive que se as pessoas do passado tinham algo de diferente das modernas, era menos idealismo, não mais. Qualquer corte poderia ser fatal, não tinha dessa de arriscar uma estadia no hospital por uma ideia. Não entrar numa batalha era essencial para a sobrevivência.

E vamos falar de algo bem tenebroso aqui: num mundo de recursos limitados e pouca chance de locomoção para longe de onde se nasceu, o prêmio para a maioria dos soldados era o direito de roubar os pertences dos adversário e estuprar toda mulher que encontrasse no caminho. Assim como o soldado moderno dificilmente entende a questão geopolítica da guerra que participa, o antigo também só sabia que para que lado apontar a lança. A maioria dos camponeses nos campos de batalha tinha que escolher entre lutar longe de casa ou ser morto na frente da família. Mas, tinha os espólios de guerra, e para ser honesto, salvo no caso de exércitos com estruturas de poder menos centralizadas como os vikings, os espólios eram basicamente estuprar mulheres. Reis e generais queriam o dinheiro do inimigo e no máximo faziam vistas grossas para roubos pequenos dos seus soldados, mas na questão das mulheres… o rei não pode ficar com todas.

Acho importante dizer para quem acha que o passado era melhor que sua árvore genealógica contém no mínimo uma dezena de estupros, com uma queda acentuada nas últimas décadas (e olhe lá, porque na Segunda Guerra Mundial isso ainda acontecia e muito). Então, para recapitular: as guerras do passado eram travadas basicamente por soldados que faziam tudo o que podiam para não entrar em batalha aberta, fugiam no primeiro sinal de problemas, e torciam para ganhar basicamente para poder estuprar sem consequências. As guerras de hoje não são bonitas, com certeza, mas avançamos demais em questões éticas.

Eu sei que parece óbvio dizer que as batalhas da ficção são fantasiosas, mas pouca gente sabe onde as coisas estão erradas. Estão erradas justamente na presunção de que no passado éramos mais corajosos e honrados. O que só alimenta essa ideia absurda que temos algo a ganhar voltando a agir como nossos antepassados. Eles sofreram horrores para que nossas vidas pudessem ser assim. Só parece que eram pessoas muito diferentes porque 99% da vida deles era perrengue comparado com o que encaramos hoje. Somos como eles, mas com uma tonelada de vantagens conquistadas com o aprendizado deles e as tecnologias que permitem a vida moderna. Parem de achar que nossos antepassados tinham a inocência de uma criança, porque isso não passa nem perto de ser verdade.

As pessoas não eram burras, elas defendiam sua vida com unhas e dentes e faziam exatamente a quantidade de coisas horríveis que tinham liberdade de fazer. Exatamente como fazemos hoje em dia.

Para dizer que achar o passado melhor é sua irracionalidade de estimação, para dizer que drones são mais divertidos que lanças, ou mesmo para dizer que não é descendente de estupradores: somir@desfavor.com

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Comments (9)

  • Adoro ler sobre guerras do passado. Parece mais poético. E menos trágico. Guerras do tempo da fotografia não me empolgam tanto. Uma foto e um filme de 8mm matam um pouco da “magia. Hoje em dia, com celulares, piorou. É pornografia de violência.

    Pra não fugir tanto do texto, se Sun Tzu tem alguma credibilidade, uma lida de cinco minutos em “A Arte da Guerra” já destrói a imagem do machão peitando todo mundo. Ganhar sem matar ninguém, só fazendo especulações, é muito político para o imaginário popular sobre guerras antigas.

  • Não era só guerra, não. Absolutamente tudo era pior no passado. Por mais ranço que eu tenha do ser humano, essa raça até consegue evoluir em camera lenta.

  • Seu texto de hoje é para fazer refletir, Somir, ainda que tal reflexão nos leve a algumas constatações que são bastante desagradáveis, pra dizer o mínimo. Covarde, mesquinho e aproveitador o ser humano sempre foi e, infelizmente, sempre será. E é só colocar esse ser humano em alguma situação desesperadora de “vida ou morte” para se comprovar isso, em qualquer época. Gostemos ou não dessa “verdade inconveniente”, essas características deploráveis estão em nosso DNA e, no fundo, não mudamos com o passar dos séculos tanto quanto gostamos de acreditar. A diferença é que hoje as pessoas – pelo menos a maioria – têm, por diversos motivos, mais pudores em ser dessa maneira e, como você mesmo disse, também “avançamos em questões éticas”. Guerreiros valorosos que enfrentam tudo e todos em nome de uma causa sem medo e com honra só existem na ficção.

    • É sempre mais fácil ser ético de barriga cheia e sem uma infecção generalizada… o texto nem é uma censura ao comportamento dos antigos, é uma constatação que assim como nós, eles faziam o mais prático, o mais fácil e o menos “contestado”.

  • Dizem que o modus operandi dos vikings era sequestrar as donzelas mais bonitas e levar pro norte da Europa… e hoje em dia a região é um paraíso pra refugiados fazerem a festa, rs.

    Dava pra fazer dois novos textos desmascarando a suposta castidade dos nossos ancestrais e a suposta passividade das mulheres de antigamente, somos todos descendentes de estupros e puladas de cerca. Me pergunto qual foi o estopim pra essa nostalgia de tradicionalismo nos zoomers da internet.

    • Não se parte de uns 10.000 humanos para 7 bilhões sem muita putaria e sem MUITA colaboração feminina. Bem interessante sua sugestão.

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