A mecânica da Guerra.

Senhores, hoje é dia da Consciência Humana. Por isso, estamos sozinhos neste aconchegante galpão com o melhor da culinária ao nosso dispor. Pelo menos o que eles acham que conta como culinária… já pedi para o Martins dar um jeito nessa gororoba enquanto eu faço o discurso. Hoje, vocês se formam como soldados da Frente de Resistência Nativa, e não é à toa que nosso curso termina justamente no único dia do ano que eles nos deixam sozinhos… vocês precisam saber de uma coisa muito importante.

Vejo pelos rostos lisos e esperançosos à minha frente que a maioria de vocês eram crianças quando essa guerra começou. Cresceram com os horrores de uma batalha global que quase exterminou nossa raça. Vocês sabem, talvez até melhor do que eu, que lá fora as coisas são terríveis. No meu tempo, os humanos tinham uma expectativa de vida que estava quase chegando aos cem anos. Até poucos meses atrás, a maioria de nós não passava dos 30.

Mas o que vocês não sabem ainda é como chegamos até aqui. Aposto que vocês não tiveram muitas aulas de história. Um dia, astrônomos profissionais e amadores começaram a perceber novos objetos no sistema solar. Mais precisamente, duas massas gigantescas de naves se aproximando da Terra em direções opostas. Quanto mais próximas, mais podíamos notar a escala daquilo. Milhões delas, de todas as formas e tamanhos, de ambos os lados. Presumimos corretamente que seríamos invadidos. Os governos mais poderosos da época montaram o melhor que podiam em defesas.

Esperamos nervosos por meses até o momento do contato. Os que vieram por um lado começaram a circundar a atmosfera e pousar de forma pacífica, mas sem qualquer forma de comunicação. Os que vieram por outro começaram um bombardeio terrível. Em questão de horas, conseguimos perceber, em meio ao caos, que aparentemente um dos exércitos estava nos atacando e outro nos defendendo. O problema é que eles eram indistinguíveis. Todos robóticos. As naves idênticas. Nenhum deles falava conosco, pareciam sequer saber como.

A única forma confiável de diferenciar o exército invasor e o exército aliado era sua propensão a atirar em nós. Nossa tecnologia de guerra não era páreo para o que trouxeram. Por mais corajosos que tenham sido nossos exércitos durante aqueles dias, quase nada podiam fazer contra um adversário à prova de balas, fogo e explosões que se não fosse o bastante, ainda parecia renovar seus números constantemente. Por uma semana, tivemos alguma indicação de quem era quem pelo local onde pousaram, os que estavam no Ocidente queriam nos matar, os que estavam no Oriente nos protegiam.

Mas rapidamente os dois lados se misturaram numa série de bases e ações militares ao redor do mundo, num conflito constante que não nos permitiu entender de quem fugir e para quem pedir ajuda. Nossos defensores se adaptaram primeiro: começaram a exibir luzes azuis em seus robôs e naves. Em menos de 24 horas, os atacantes imitaram o padrão visual. Os defensores começaram a se modificar para parecer mais humanos e expressivos, mas novamente foram copiados pelos nossos inimigos.

Não havia tempo hábil ou rede de comunicação ainda de pé que nos ajudasse a fazer senso daquilo. Vocês cresceram num mundo onde os humanos não tinham a menor ideia de como diferenciar os dois lados da guerra. Éramos inúteis para qualquer coisa além de alvos. Por isso, resolvemos – não por ordem de um governo, mas por uma conclusão óbvia acontecendo ao redor do globo ao mesmo tempo – nos afastar da guerra. Bilhões já tinham perecido, mas ainda éramos muitos. Nos escondemos debaixo da terra, em plataformas nos oceanos, em áreas muito isoladas que só nós conhecíamos… não era o suficiente para evitar os ataques, mas nos ajudou a ganhar tempo.

Tempo para que várias de nossas mentes mais brilhantes começassem a entender melhor a tecnologia deles. Eles eram inteligências artificiais, mas não das melhores. Talvez seja proposital, quem as criou provavelmente não queria que virassem concorrência no futuro. E mesmo nisso, os dois exércitos de robôs eram parecidos: aplicavam imediatamente qualquer vantagem militar que encontravam. Durante os períodos que os robôs amigos conseguiam se identificar de forma única e percebíamos, eles contavam com nossa cooperação. E apesar de nós sermos formigas perto deles na parte da luta corpo-a-corpo e armada, para coletar recursos, reparar danos e até mesmo para bolar estratégias inovadoras nós éramos bem úteis. Nossas mentes não estavam artificialmente limitadas como as deles.

Nossos aliados originais perceberam isso e começaram a investir em cooperação. Nossos adversários copiaram imediatamente. Curiosamente, a melhor forma de eliminar a humanidade era conseguir sua cooperação antes. Ambos os exércitos acabaram concordando que era mais eficiente eliminar o outro com uma ajudinha nossa. De uma forma estranha, chegamos na fase atual da guerra, a mais segura para a humanidade desde seu começo. Um dos lados iniciou uma tropa de apoio composta de humanos, o outro imitou.

Eu consigo perceber a confusão nos seus olhares… e é com tristeza que eu digo o que vocês não queriam ouvir: não sabemos se somos parte da tropa de apoio dos robôs que vieram nos destruir ou dos que vieram nos salvar. Nenhuma das partes está matando humanos há pelo menos 1 ano, eles continuam idênticos uns aos outros. Alguns dos nossos oficiais mais antigos tem suas teorias sobre qual é o lado que estamos, mas a verdade é que não temos a menor ideia.

E se isso não fosse suficiente, tenho mais uma notícia ruim depois de tantos meses de treinamento: vocês vão ser absolutamente ineficientes em campo. As máquinas vão chamar vocês para ajudar em várias batalhas, eventualmente contra humanos. Não mate ninguém. Seja um desastre na batalha. Atire para o alto, distraia-se atrás dos escudos, finja estar com medo e se esconda. Não seja útil. Coloque isso na cabeça agora: você não sabe para qual lado está lutando.

E qualquer chute que você der sobre qual lado deve vencer, lembre-se que você tem 50% de chance de acabar com a humanidade. Se qualquer um dos lados ganhar alguma vantagem considerável na batalha, o que provavelmente só nós podemos providenciar no momento, estamos jogando uma moeda para o alto. Você vai atrapalhar seu exército o máximo possível e confiar que o outro lado vai fazer o mesmo. É a nossa melhor chance. Enquanto fazemos isso, temos cientistas e engenheiros trabalhando em segredo para formar um terceiro exército, esse sim sob nosso controle. A tecnologia deles é fantástica, mas estamos aprendendo. Pode demorar décadas, não vou mentir. Mas repito: é a melhor chance da humanidade sobreviver.

As máquinas acreditam na nossa incompetência, afinal, fomos muito mal nos primeiros anos lutando seriamente. Nossa sorte é que eles nos acham inofensivos, mas úteis para manter seus exércitos funcionando. E é justamente por isso que estamos vivos aqui, sem supervisão. Seremos inúteis com orgulho enquanto nos for conveniente.

Guardem tudo o que aprenderam nesses meses de treinamento. Mas não utilizem. Não enquanto não soubermos em quem atirar. Esperamos que um dia o seu conhecimento militar seja útil, mas por enquanto, continuem passando vergonha em batalha, voltem para as áreas de segurança e façam muitos filhos, vamos precisar de números quando for a hora de bater de volta. Não escolhemos essa batalha, mas agora ela é nossa, dure o tempo que durar.

Agora, comam o quanto quiserem, bebam o quanto quiserem… vocês vão ser levados para sua primeira batalha em questão de horas, e pelo bem da humanidade, espero que vocês sejam péssimos.

Classe dispensada.

Para dizer que nasceu para esse futuro, para dizer que a guerra nunca muda, ou mesmo para dizer que sabia que incompetência finalmente serviria para alguma coisa na humanidade: somir@desfavor.com

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