Ética chifrada.

Que não falta gente disposta a trair por aí, Sally e Somir concordam. Mas quando o assunto é ser cúmplice da infidelidade alheia, a união deixa de ser estável. Os impopulares não fazem segredo.

Tema de hoje: é falta de ética sair com uma pessoa que sabe ser casada?

SOMIR

Não. Embora eu ache uma péssima ideia, não significa uma falha na sua bússola ética. É uma questão de responsabilidade pessoal, quem trai está quebrando uma promessa, mas se você é um terceiro nesse relacionamento, ele não diz respeito a você. A pessoa que não faz parte do casamento não trai, é uma questão de lógica simples.

Muito se engana quem acha que ética é um sentimento, que deriva apenas da empatia com o outro. Na verdade, é algo racional: ética independe da sua opinião sobre o outro, é um conjunto interno de regras e comportamentos cujo objetivo é tornar a vida em sociedade mais eficiente. Ser correto com quem você gosta tem recompensas suficientes, o grande desafio é manter essa coerência mesmo diante das inúmeras dificuldades que a vida te apresenta.

Isso quer dizer que ser ético não é necessariamente ser agradável com o outro. É uma questão de valores internos expressos na vida em sociedade. E eu tenho plena confiança que o valor de responsabilidade pessoal é essencial para um mundo mais ético. O ser humano médio recebe pelo menos uns 18 anos de vida protegido de consequências mais graves pelo seu comportamento, e eu argumento que adultos já deveriam ter internalizadas as ideias de que suas ações têm consequências e são responsáveis pelas escolhas que fazem (com exceção das feitas mediante ameaça grave).

Se você é solteiro e uma pessoa casada quer sair com você, você não está violando acordo nenhum. A responsabilidade da fidelidade é dela, não sua. Sim, eu detestaria ser chifrado, mas não é a empatia que define a questão ética aqui, é a promessa de fidelidade. É impossível ser ético por outra pessoa, porque responsabilidade pessoal é intransferível. Existem argumentos muito melhores para não se envolver com pessoas casadas do que a ética, que sequer faz parte disso. É perigoso para sua integridade física, é começar uma relação numa situação complicada (mesmo que seja só uma relação casual)… você não vai sentir falta de motivos para evitar esse comportamento.

E por que é importante tirar a ética dessa situação? Para não entender errado o que configura ética: muitas vezes você vai precisar fazer gente sofrer para ser ético. Não é sobre deixar uma pessoa feliz, é sobre a qualidade de vida geral. Quando você entende que não precisa assumir a responsabilidade sobre outro adulto para ser ético, tudo fica mais claro. Esse mundo só funciona se as pessoas tiverem esses conceitos internalizados. A pessoa que está traindo usando você não aprende sobre ética se for rejeitada, ela vai procurar outra pessoa que satisfaça sua necessidade. O problema está nela.

Ou o problema está na ideia de casamento que adotamos: fidelidade talvez não seja uma condição válida para muita gente. Assinam um contrato que não tem interesse verdadeiro em cumprir. Se mais gente internalizar de verdade a ideia de responsabilidade pessoal, é possível que mais gente adote casamentos abertos ou mesmo que nem assinem a porcaria do papel. O mundo é grande o suficiente para que pessoas que derivam prazer honesto da fidelidade e aqueles que preferem uma vida mais “solta” consigam formar pares. Infelizmente, como tanta gente acha que ética vem de um ser mágico nos céus e não de dentro, se forçam nesses matrimônios condenados e acham que as coisas vão se resolver sozinhas. Ou pior, sentem-se muito culpadas de não gostarem de verdade de serem fiéis e se violentam ao forçar esse tipo de relação.

Você não vai resolver nenhum desses problemas sozinho. O saldo ético não se torna positivo quando você se recusa a sair com a pessoa. Então, é apenas questão de assumir o risco de um barraco, uma surra ou um tiro… se você acha que vale a pena, divirta-se: não era sua fidelidade para manter. E a pessoa que está fazendo a coisa errada vai ter o que pensar. Traição em tese é bem diferente de traição na prática. A primeira parece apenas mais uma fantasia da mente, a segunda pode ser um divisor de águas na vida de uma pessoa. E seja como for, é a responsabilidade pessoal dela sendo analisada ali. Não a sua.

E vamos ser honestos? Chifre pode até doer, mas é uma bobagem na escala real da vida. Tanto que ninguém mais vai para a cadeia por adultério. A sociedade já aceitou que não adianta brigar com isso, o pior que acontece é um juiz ou juíza de má vontade com você na hora do divórcio. Não estamos falando sobre denunciar corrupção ou ajudar uma pessoa sofrendo violência doméstica. É um acordo de exclusividade sexual que soa muito confuso para boa parte da humanidade, e que salvo casos onde os envolvidos são muito brutalizados ou emocionalmente instáveis, gera um chororô e vida que segue.

É o tipo de situação que deixar as coisas seguirem seu rumo gera a melhor possibilidade de reconhecimento de responsabilidade. Não vai ser sua recusa que vai ensinar a pessoa sobre fidelidade, vai ser ela vendo as consequências daquilo. Se ela quiser continuar sendo antiética com seu parceiro, azar dos dois. Você não é parte dessa relação. Quem é ético sabe muito bem que quase sempre significa ser ético sozinho, porque o conceito é extremamente maleável para a maioria das pessoas.

Bom, pra mim não é. Ética é algo só seu, baseada em responsabilidade pessoal e compreensão das suas limitações. Eu já falhei na minha ética pessoal algumas vezes, mas aprendi com cada uma delas. É aquela história de no mínimo não cometer o mesmo erro duas vezes. Já dá um trabalho enorme, não preciso inventar de ser ético pelos outros… pelo bem do mundo, cada um com seus problemas. Porque se as pessoas ao seu redor não aprenderem por conta própria, ninguém vai pra frente.

Cumpra suas promessas e você será ético o suficiente para fazer o mundo ser um lugar melhor. Só isso.

Para dizer que depende se ela é muito gostosa, para dizer que depende se ela está muito fácil, ou mesmo para dizer que depende se você bebeu o suficiente: somir@desfavor.com

SALLY

Se uma pessoa aceita sair com outra pessoa casada(o), ciente de que ela é casada(o), está cometendo uma falta ética?

Já pensei diferente, já achei que quem deve alguma coisa a alguém é a pessoa casada, mas mudei de ideia. Hoje acredito que é sim falta de ética se uma pessoa (homem, mulher ou derivados) se envolver com outra pessoa que sabe ser comprometida, independente de papel assinado ou não.

Não é sobre dever algo especificamente a uma pessoa, é sobre um comportamento ética amplo, genérico, de não fazer aos outros aquilo que critico (seria hipocrisia) e que não gostaria que façam comigo. É desta forma que eu acredito que se pode construir uma sociedade melhor.

“Mas Sally, ninguém é correto, todo mundo é escroto, se você ficar agindo de forma correta vai ser otária”. Não, otário é quem se comporta de forma escrota, pois perde do seu convívio pessoas legais que não aceitam ficar perto de gente sem ética. Em qualquer situação onde você ache que alguém te sacaneou, respire funde e pense “Quem perde?”. Quem perde com o desfecho dessa história? Provavelmente a pessoa que te sacaneou, que vai ficar sem você.

Ser correto, agir com ética, fazer aquilo que prega é um ótimo filtro para as relações humanas. Pela sua postura, você vai acabar filtrando e mantendo ao seu lado pessoas que se comportam como você. Seja íntegro. Integridade significa alinhar aquilo que você sente, com aquilo que você pensa, com aquilo que você fala, com aquilo que você faz. Não existe paz de espírito, não existe felicidade, não existe tranquilidade sem que tudo isso esteja alinhado. Não ser íntegro dói, faz mal, gera um vazio interior horrível.

Acredito que existem valores éticos gerais que devemos seguir se queremos ter um convívio social minimamente civilizado e se queremos cultivar pessoas boas por perto. Essa história de “não é problema meu” ficou no meu passado. É problema meu sim, tentar fazer a minha parte por uma vida decente e agir de forma a atrair pessoas alinhadas com meu pensamento. Se eu não quero que ninguém se envolva com o meu marido, por óbvio seria muito hipócrita que eu me envolva com o marido de alguém. Não é crime, mas é uma falha ética sim.

É nocivo para todos, inclusive para mim mesma, fazer uma coisa dessas. Acreditem, não sai nada de bom de algo que começa tão cagado, que fere pessoas inocentes, que vai de encontro com a forma com a qual eu gostaria de ser tratada. Você recebe de volta o que dá, não por misticismo ou algum fenômeno transcendental, mas por só suportar ficar ao seu lado quem é muito semelhante a você. Uma pessoa correta não se sente bem ao lado de uma pessoa incorreta. Se quer pessoas legais por perto, seja legal.

Eu não sou responsável pelo casamento alheio, não cabe a mim salvar nenhuma relação, mas isso não me dá aval para contribuir para sua destruição ou para mentiras e sofrimento. Provavelmente a pessoa que deseja trair vai trair, seja comigo, seja com qualquer outra pessoa. Não é minha intenção impedir que alguém traia alguém. Faço isso por mim.

Quer trair? Beleza, faça o que quiser, mas eu não serei parte integrante disso, de algo que eu reprovo. A partir do momento em que eu participo de algo que eu reprovo, provavelmente minha autoestima vai para a vala, eu vou me sentir mal e vou acabar me punindo, mesmo que seja inconscientemente.

É um ato de amor para com você mesmo se respeitar e não fazer aquilo que você condena nos outros. Respeite esse limite para não se odiar, para não atrair conflitos para sua vida e para se cercar de pessoas corretas, que são muito mais agradáveis de conviver. Caso contrário, não se surpreenda quando atrair gente lixo, não culpe o azar ou generalize dizendo que ninguém presta. Você está recebendo de volta o que jogou no mundo.

Quando falamos de uma traição responsabilidade não é apenas da pessoa casada, é dos dois, se o outro souber no que está se metendo. Vamos pensar em um exemplo semelhante: você faria negócios uma pessoa notoriamente desonesta que sabe que conseguiu o dinheiro roubando seu sócio? Eu não faria. Zero confiança e vontade de ter qualquer conexão com uma pessoa que foi filha da puta a ponto de roubar dinheiro do próprio sócio. De gente assim eu quero distância, por mais que não conheça o sócio e não deva nada a ele.

É sobre repelir pessoas cujas atitudes você considera antiéticas. Por qual motivo você vai se expor a pessoas que são antiéticas? A partir do momento em que você é conivente com uma atitude antiética, você passa a ser uma pessoa antiética também. Ao tolerar isso, você abre uma porta para que mais e mais pessoas antiéticas entrem na sua vida. Não, obrigada.

Se você estiver no meio da rua e presenciar um grupo espancando um idoso, é ok virar as costas e não fazer nada, sob o argumento de que você não conhece o idoso e não deve nada a ele? É ok ter qualquer vínculo com essas pessoas pelo fato de não conhecer o idoso? Não dá, depois que você adquire um certo grau de consciência, não consegue mais passar pano para pessoas sem ética. Dói, incomoda, faz mal.

Ninguém te deve nada. Você não deve nada a ninguém. Mas ser ético não é uma questão de débito, não se faz por dever algo a alguém, se faz para estar em paz com você mesmo e como filtro, para determinar o tipo de pessoas que você quer por perto. Se faz para não se sentir mal com seus atos, para não ter nenhuma parcela de contribuição para causar dano, conflito e sofrimento. Se faz para que pessoas escrotas simplesmente não tenham afinidade e interesse em chegar perto. É uma escolha pessoal, não uma dívida.

E essa noção de que não existe falta ética se não existir uma dívida que a justifique é furada. Existe sim uma ética geral, que não se deve, mas que se segue se você quer ser uma pessoa melhor e viver em um mundo melhor. Se você quer ser íntegro e alinhar o que você pensa, com o que você sente, com o que você diz, com o que você faz.

Compactuar com um ato que falta com a ética é uma forma muito da covarde de faltar com a ética também, sinto muito.

Para dizer que eu sou um dinossauro, para dizer que não existe mais ética faz tempo ou ainda para dizer que só pensa em si e foda-se o resto do mundo: sally@desfavor.com

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Comments (4)

  • Deveria estar dormindo, mas estou lendo desfavor e comentando, é claro!

    Ética é aquilo que você faz quando todo mundo está olhando. O que você faz quando ninguém está vendo, chama-se caráter. Oscar Wilde.

    Quando se perde algumas barreiras morais internas, acabamos por nos tornar mais tolerantes com a falta de compromisso alheio. Assim, atraímos pessoas sem caráter, visto que a nossa própria falta de caráter deixa de ser uma questão para nós. O contrário também é verdadeiro, quando somos mais “certinhos” e “rígidos” com nós mesmos, passamos a ser mais intolerante com a falta de respeito alheio. Dessa forma, vamos selecionando, mesmo que inconscientemente quem serve para estar por perto.

  • Claro que é falta de ética! Se eu não quero que saiam com meu macho, então não vou sair com o dos outros. Pra exigir tem que dar exemplo.

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