Rota de fuga.

Para aqueles que não sabem, consegui sair do Brasil, aos 48 do segundo tempo, no último voo disponível para meu país de destino. Não foi fácil, não foi tranquilo, mas, como dizem, tudo que é ruim de passar, é bom de contar. Segue um resumo do que é viajar no Brasil em tempos de pandemia e como o país parece estar lidando com a situação.

EMBARQUE

O dia em que eu viajei foi especialmente movimentado, era o último dia antes do fechamento de fronteiras aéreas com diversos países. Esperando encontrar um aeroporto vazio, (afinal, quem é o lunático que vai viajar a lazer em meio a uma crise como essa), para minha surpresa, me deparei com o aeroporto mais lotado que já vi na vida.

E não era apenas um aeroporto lotado. Era lotado de pessoas enfurecidas. Logo que pisei no saguão de embarque, um funcionário de uma cia aérea estava anunciando o cancelamento de um voo para meu país de destino. Pessoas que estavam há dias (sim, dias) morando no aeroporto esperando por esse voo ficaram muito revoltadas.

Quando falo em revolta não me refiro a xingar ou ameaçar. Algumas das reações que vi foram dignas de filmes de catástrofes. Um homem depredando o balcão da cia aérea na porrada (quebrando o telefone, chutando as placas de avisos, etc). Outro, pegou uma lixeira móvel, tirou um isqueiro do bolso, colocou fogo nos papéis que havia do lado de dentro e arremessou contra o local de check in. Uma multidão enfurecida precisou ser contida pelos seguranças do aeroporto. Esses foram meus primeiros dez minutos da jornada.

Fui fazer o check in de um voo agendado para as 17h e me avisaram que o voo estava atrasado. Quanto? Ninguém sabia dizer. Questionei que, no painel do saguão, o voo estava previsto para as quatro da manhã (quase 12h de atraso), mas a funcionária da cia aérea, com seu uniforme laranja, me disse que “o painel não é confiável”. Para que merdas tem um painel se o painel não é confiável? Nunca saberemos, pois não tive coragem de perguntar.

Assim como os demais passageiros, fiz o check in e despachei as minhas malas, portanto, se eu não embarcasse nesse voo, minha situação seria bastante ruim. Esse atraso “não sabemos quanto” obrigou a maior parte das pessoas a ficar nesse aeroporto lotado e caótico esperando, pois, apesar do painel indicar que o voo sairia às 4 da manhã, poderia sair em duas horas também, ninguém podia assegurar nada. Uma aglomeração digna de baile funk, com os nervos à flor da pele se amontoava, destoando de todas as orientações sanitárias em tempos de pandemia.

Por todos os lados se viam pessoas que estavam, literalmente, morando no aeroporto. Não com a graça e dignidade de Tom Hanks no filme “O Terminal”, mas sim com tendas de lençóis montadas, barracas de camping abertas, camas improvisadas. Pessoas visivelmente sem banho há dias, que se apoderavam de um canto onde construíam precárias moradias. Os seguranças do aeroporto pareciam não se incomodar com isso.

Pessoas com bebê de colo, com crianças pequenas, idosos, deficientes físicos, tinha de tudo na fantástica fauna do aeroporto. Pelo que pude entender, a maior parte das pessoas que estavam ali, não estavam esperando seu voo, estavam esperando um voo qualquer onde elas pudessem ser encaixadas. Quase ninguém usando máscaras ou qualquer outro tipo de proteção. Pelas estatísticas, considerando a quantidade de pessoas que estavam lá, certamente havia infectados pelo Coronavírus.

As filas nos guichês das cias aéreas brasileiras era gigantesca. Pessoas estressadas gritavam pedindo reembolso pelas passagens compradas de voos cancelados e, diante da negativa dos atendentes, deixavam aflorar o que havia de pior em cada uma delas. Natural essa putez, as cias aéreas tiraram todos os telefones do gancho, não estavam atendendo ninguém, obrigando as pessoas a se aglomerarem no aeroporto para conseguir qualquer informação.

Os guichês das cias aéreas internacionais estavam relativamente vazios, ao que tudo indica, eles tratam o consumidor com mais respeito. Ainda assim, de tempos em tempos, os passageiros-moradores faziam rondas por lá, mendigando lugar em algum voo.

Esse é o problema de um aeroporto lotado de não-passageiros, ele nunca fica vazio. Os banheiros estavam em condições deprimentes. Lugar para sentar? Nem pensar. Era um grande alojamento, um albergue cosmopolita gigante, sem a menor regra de higiene, convivência ou civilidade. A poluição sonora altíssima, desde bebês chorando, até pessoas gritando e brigando. E, é claro, muita gente tossindo e espirrando.

Não culpo as pessoas que estavam estressadas, nem sequer consigo culpar os seguranças do aeroporto, que estavam com cara de “Covid me leva”. Vai saber há quantos dias eles estavam passando por esse inferno. O fato é que o aeroporto se transformou em um belo ninho de Coronavírus: temperatura fria, aglomeração de pessoas do mundo todo e condições precárias de higiene. Não vai me surpreender se, em um futuro, se descobrir que a maior fonte de contaminação no Rio de Janeiro tenha partido desses dias críticos de aeroportos lotados.

No final das contas, meu voo saiu as 4:50 da manhã, com 12 horas de atraso. O procedimento para o embarque foi o mesmo de sempre: faz fila, se aglomera, mostra o ticket e entra. Pessoas acabadas, descabeladas, suadas e transtornadas caminhavam como gado pelo estreito corredor que leva ao avião. Por falta de organização, um afunilamento se formou e os passageiros ficaram presos por um tempo considerável antes de alcançar o avião, em um ambiente pequeno e sem ventilação. Tudo bem, o que é um peido para quem está todo cagado?

O voo era composto apenas de pessoas de determinada nacionalidade, uma vez que meu país de destino fechou as fronteiras para qualquer estrangeiro. Todos pareciam muito aliviados por estar deixando o Brasil e comentavam entre si a estratégia desastrosa adotada pelo governo diante da pandemia. Acho que a coisa mais agradável que disseram sobre o Bolsonaro foi “louco”.

Foi um voo tenso, pois todos sabiam o risco de contágio ao qual haviam se sujeitado em um aeroporto abarrotado e imundo por 12h e também o risco de contágio de estar horas trancado em um ambiente com ventilação ruim como é a cabine de um avião. Dava para sentir a tensão no ar até por parte dos tripulantes.

O curioso era o constrangimento de alguém quando precisava tossir ou espirrar. Hoje, tossir ou espirrar equivale a gritar “Allahu Akbar!”. Acho que é mais aceitável peidar alto. Os recursos que as pessoas estavam usando para camuflar tosse ou espirro me chamaram a atenção. Ninguém quer ser olhado com desconfiança, ninguém quem ser tratado como um vetor de doença.

O alívio coletivo quando o avião finalmente aterrissou era palpável.

DESEMBARQUE

Tudo mudou no desembarque. A gente se acostuma de tal forma com a precariedade brasileira que quando alguém faz apenas o básico, sentimos esse deslumbramento macaquito.

Para começo de conversa, sem luvas e máscaras o passageiro não desembarca. Não é a cia aérea quem fornece, você tem que levar de casa. É regra do país, sem luva e máscara quem vem do exterior não pisa no território nacional. Todos são tratados como infectados até que se prove o contrário, principalmente pessoas vindas do Brasil, um país que eles classificam como de “altíssimo risco”.

Todos os passageiros tiveram que preencher um extenso formulário durante o voo atestando que estavam sem qualquer sintoma que pudesse ser relacionado ao covid-19 (tosse, febre, calafrios, dor de cabeça e mais uns 20 que estavam na lista), sujeito a multa e prisão caso se constatasse que haviam mentido.

Também era obrigatório preencher uma declaração onde a pessoa se comprometia a cumprir uma quarentena em total isolamento, não sendo permitido sair de casa, abrir a porta de casa, interagir pessoalmente com alguém ou receber qualquer tipo de visita. Era necessário informar o endereço onde você cumpriria sua quarentena, para fiscalização. A punição para o descumprimento de qualquer norma é de multa (mais de vinte mil reais) e prisão imediata.

Usando as luvas e a máscara obrigatórias, desembarcamos. Logo na saída, um segurança do aeroporto se encarregava de que a distância das pessoas na fila indiana que formávamos fosse de, pelo menos um metro. Ele gritava para manter o isolamento com um bastão na mão, bastante convincente. Também logo na saída, uma câmera infravermelha filmava os passageiros e interceptava aqueles que estivessem com a temperatura corporal elevada.

Aeroporto vazio. Apenas com muitos seguranças. Ao todo, naquele dia, o aeroporto receberia apenas seis voos, todos destinados a trazer para casa cidadão daquele país. Fronteiras fechadas por mar, ar e terra. Quarentena obrigatória, com fiscalização eficiente. Quem é pego furando a quarentena recebe multa, é preso, responde a processo criminal (perde o “réu primário”) e, se estiver de carro, o carro é confiscado.

Todas as lojas do aeroporto fechadas, pois, segundo me informou um segurança, “não é local para sentar e fazer lanchinho em meio a uma pandemia, quer comer, coma em casa”. Apenas máquinas que, com cartão de crédito ou dinheiro, cuspiam algumas bebidas ou alguns biscoitos.

Zero pessoas do lado de dentro no setor de desembarque, não tem dessa de amigo ir te receber. Só é permitida a entrada no aeroporto de quem apresentar a passagem e comprovar que irá viajar naquele dia e só entra depois que os seguranças medirem a temperatura da pessoa. Estas medidas envolvendo cuidados nos aeroportos já estavam sendo adotadas desde antes do carnaval.

No trajeto para meu destino, o táxi foi parado por policiais, mais de uma vez. Exigiam não apenas as credenciais do taxista (uma autorização outorgada pelo Poder Público que lhe permite circular em tempos de quarentena) mas também os documentos de identidade dos passageiros e suas passagens aéreas, para comprovar que de fato todos os que estavam no veículo haviam chegado naquele dia, naquela hora. Estradas vazias. Ruas vazias. Parecia um país sob ameaça de bombardeio.

Ainda parece. Já cumpri mais da metade de minha quarentena, felizmente, sem qualquer sintoma. Ao que tudo indica, não fui infectada pelo Covid-19. Não acredito que eu possa ser daquelas pessoas que se contaminam e passam impunes, assintomáticas, uma vez que sou grupo de risco (tive parte dos pulmões fibrosados em função de uma septicemia, o que reduziu minha capacidade pulmonar). Eu escapei, mas muita gente que pisou naquele aeroporto no mesmo dia deve ter sido contaminada.

Vendo a diferença entre os dois países ficou bem claro para mim que não é sobre dinheiro. O Brasil tem dinheiro para adotar todas essas medidas. É sobre organização, sobre rigidez, sobre pulso firme. No país do jeitinho é difícil impor normas absolutas, pois nem quem dá o comando, nem quem está na ponta trabalhando com o público estão acostumados à falta de flexibilidade. Dizer um “não” firme, definitivo e incisivo parece que ofende no Brasil. O brasileiro só sabe ter firmeza na hora de abusar do poder. Quando precisa, a firmeza não vem.

A firmeza brasileira é fruto de antipatia (se eu não vou com a sua cara, não te deixo entrar), de poder subindo à cabeça (quando eu tentei entrar me barraram então agora eu vou barrar de volta todo mundo), de tudo menos do que deveria ser: uma forma de cuidar de seu povo. Proibir certas coisas a todos soa estranho na mentalidade nacional, como assim todo mundo vai sofrer restrições? Isso não existe, sempre tem um grupo que pode tudo. É uma ideia nova essa “lei que vale para todos” e acho que vai demorar para que o brasileiro se acostume com ela.

Ouso cogitar que muitas pessoas tenham até medo de dar “não” genérico e irrestrito e tomar um “você sabe com quem você está falando?” na cara. E com razão, sempre foi país da carteirada. Por favor, mudem. Entendam que muitas vezes uma negativa irredutível é um ato de amor, de cuidado de proteção. Vale para você que não vai permitir que seu avô vá na lotérica, vale para o segurança que vai impedir quem não tem passagem aérea de embarcar no aeroporto, vale para o Ministro da Saúde bancando a quarentena.

Esse medo de que as pessoas gostem menos de você se você lhes disser um “não” é muito vira-lata. Vocês são melhores do que isso. Essa preguiça de ter que aturar os desdobramentos (briga, birra, DR, etc.) depois de dar um “não” mostra que a pessoa não vale um aborrecimento. Vocês são melhores do que isso. Essa desistência em fazer a coisa certa pelo trabalho que vai dar mostra uma falta de gana, de força e de coragem sem precedentes. Vocês são melhores do que isso.

Continuo de quarentena absoluta, porém muito aliviada por não estar mais no Brasil. Nada me garante que por aqui as coisas não saiam do controle, que eu não me contamine, que tudo dê errado, mas ao menos terá sido uma escolha minha. Com os elementos que eu tinha em mãos no momento de decidir, acredito ter tomado a melhor decisão.

Quem puder, por favor, fique em casa. O Brasil, salvo algumas poucas cidades que estão levando a sério essa crise, está abandonado à própria sorte. Não é brincadeira, não é histeria. Por favor, se cuidem.

Para dizer que é só uma gripezinha, para dizer que o calor mata o vírus ou ainda para dizer que tudo não passa de uma estratégia para desacreditar o presidente: sally@desfavor.com

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Comments (23)

  • vc veio pra Bélgica? se veio me responde inbox please…

    No mais, parabéns por ter conseguido picar a mula. Fiz isso faz quase 17 anos atras e não me arrependo um dia sequer.

  • Todo mundo querendo saber pra onde a Sally foi… É claro que ela não vai falar!
    Mas só responde, se não for muito intromissivo: foi algum país cuja língua tu já sabia? Ou teve que aprender um novo idioma e tal? Pergunto pq penso que essa dificuldade pode ser uma barreira intensa a ser superada, e ter todo o choque cultural envolvido e tal, nossa… Não é fácil.

  • É um tremendo desfavor a minha cidade já estar tirando o isolamento social, ainda mais porque temos o costume de nos abraçar e coisas do tipo e NINGUÉM abre mão. O povo é irresponsável mesmo. O jeito aqui é ver Darwin agindo.
    Fico feliz que tenha conseguido sair da Macaquitolândia, Sally.

  • Q bom Sally , vc já estava planejando a algum tempo sua saída e q bom q deu tempo . Super feliz e boa sorte na vida nova. Espero q continue seu diário aqui pra gente confabular sobre sua vida. Pena q não vai mais rolar o encontro com cafezinho. Boa sorte ❤️❤️❤️

  • Chocada com essa cena de filme apocalíptico no aeroporto.
    Sally, adianta te perguntar pra que país vc foi? Kkkkkkkkk
    Fico feliz que você tenha conseguido sair do Brasil, acompanho o Desfavor há muito tempo, dava pra ver que era uma coisa que você queria muito!

      • Thaisa Pedrosa Fredo

        Sally, sua intenção era ir pra Itália, porém ficou fora de cogitação. Tenho uma curiosidade sobre o seu planejamento anterior para ir morar no país, já que sempre pensei em residir por um tempo na Itália mas não vislumbrava em que área poderia atuar ou como me manter sem ter que trabalhar em sub-emprego. Também sou formada em direito, mas sinceramente não saberia dizer o que e como fazer pra trabalhar nessa área. Teria que fazer alguma especialização? O que vc iria fazer pra se manter lá? Espero não estar sendo muito invasiva, se quiser responder por e-mail ao invés de responder por aqui.
        Ainda tenho planos de ir pra lá assim que eu puder e que a situação do país melhore.
        Boa sorte longe desse puteiro megalomaníaco que virou O Brasil!

  • Mito dos Lacres

    A progressão geométrica de casos já está dando as caras. 200 mortes agora, mas projeto 1000 mortes até a páscoa, 5000 mortes até fins de abril e algo entre 50 e 100 mil ao fim de maio.
    Em algumas cidades já estão dando uma relaxada e em outras estão falando de relaxar na próxima semana, o que é um DESFAVOR.
    Pior época pra relaxar com a questão do coronavírus é a SEMANA ANTA.
    Segurar até a Páscoa pode segurar a progressão dos casos, mas liberar a parada nessa próxima semana gera repique, em especial porque o infame “dia de pagamento” (onde o grosso das empresas concentram os pagamentos a seus funcionários) é justamente dentro de tal semana.
    É muito provável que a gente tenha que lidar com desabastecimento e inflação e esse mal também tende a pegar ai, hermana. Lá na Índia tem uma crise humanitária em potencial se desenhando por essa situação de controle rígido e outros países também poderão passar por sérios problemas nesse campo.
    O choque econômico por conta da porquice chinesa (passe longe de lanchonete ou restaurante mantido por chineses) tende a ser comparável ao da crise do petróleo da virada dos anos 70 pros 80, o que convenhamos, não é uma boa lembrança.

    • Vocês não percebem que ela foi preparar o terreno para a fundação da RID?
      Tem que ser discreto, gente, ninguém pode anunciar que está invadindo o local ou os governantes tomarão providências…

  • “Ele gritava para manter o isolamento com um bastão na mão”

    Sally, você foi morar na Índia?
    Brincadeiras à parte, muito sucesso nesta nova fase da tua vida. E boa sorte para todos nós!

  • Uau, Sally, que situação, estou chocada!

    E que bom que vc chegou no seu destino bem, força pra vc na sua nova vida, boa quarentena, força aí!

    Muito obrigada pelas informações úteis. Já anotei todas pra usar quando precisar.

    Um abraço

      • Sim, com certeza, Sally, evitarei sim, inclusive penso que viagem mesmo só a partir de no mínimo outubro ou novembro – e espero poder sair daqui pelo menos no final do ano. Conseguindo, não volto nem por decreto. um abraço e tudo de bom! :)

  • Se eu fosse minimamente honesto, admitiria que é sou covarde, já que faço questão de vir aqui julgar e criticar uma pessoa que mal conheço, a Sally. Mas provavelmente continuarei sendo prepotente e em 2022 acharei justificativa para fazer outra merda. Parabéns para mim, infeliz que sou, a ponto de perder tempo da minha vida vindo no Desfavor ler o que a Sally escreve.

  • Cuide-se bem você também, Sally. Por favor. Todo cuidado é pouco. E maisuma vez: boa sorte nessa nova fase da sua vida.

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