Cérebros?

Desde que a energia elétrica acabou, anda difícil marcar a passagem do tempo. Eu sei que estamos no ano 2038, mas a linha entre Junho e Julho está meio borrada. Sim, um calendário resolveria tudo isso, mas quando você fica sem rotina, os dias começam a se misturar… espero que você ainda esteja marcando os dias. Faz bem para a mente. De qualquer forma, eu escrevo esta carta para me despedir.

Não sei para quem estou dando adeus, não sei nem se alguém vai ler o que eu escrevi, mas me ajuda a passar essas minhas últimas horas. E talvez te ajude a entender melhor o que aconteceu, porque eu tenho a esperança que alguém vai repovoar esse mundo, e que essa tragédia não tenha sido a nossa última. Tomara que alguém esteja lendo isso, tomara mesmo…

Eu era bem jovem quando os primeiros casos apareceram, muita gente nem levou a sério, eu incluído. Era algo distante, um problema de outro povo que eu assistia de camarote da segurança do meu lar. Aí, atingiu outro país, depois outro, outro… eu via as notícias todos os dias e mesmo assim me pegou de surpresa quando chegou aqui. Os mortos andavam entre os vivos. Parecia coisa de filme! Zumbis? Eu nem achava que isso era possível.

O engraçado é que muita gente já estava preparada para lidar com isso, era um tema tão presente na cultura popular que eu mesmo já tinha discutido com amigos como isso aconteceria se fosse real. O meu argumento era que o mundo só acabava nos filmes porque todos os vivos ficavam magicamente burros e deixavam a praga se alastrar. Na realidade, eu tinha certeza que ninguém deixaria isso acontecer, os exércitos matariam todos em questão de semanas, talvez dias. Talvez grandes cidades dessem mais trabalho, mas não parecia tão impossível assim parar os mortos-vivos.

Mas, a vida real ensinou que na prática, a teoria é outra. Os zumbis não eram exatamente como os dos filmes: tinham mais ou menos o mesmo grau de proeza de um ser humano vivo, eram rápidos, e nem sempre morriam com um tiro na cabeça. Ainda eram bem limitados no intelecto como nos filmes, mas não tinham fome de cérebros: na verdade, eram carnívoros generalistas. Conseguiam digerir até carne estragada, como urubus.

É complicado lutar pela sua vida contra um ser que não sente dor, quase não se cansa, usa toda sua força até os limites dos músculos… nas primeiras semanas eu li bastante sobre eles: tecnicamente, não estavam mortos, podiam ser sufocados ou afogados, por exemplo. Mas tinham uma vantagem incrível sobre nós: podiam se regenerar e gerar pequenas adaptações biológicas em questão de dias. Nenhum zumbi tinha cérebro suficiente para desenvolver novas tecnologias, mas dentro de suas limitações, eram capazes de usar armas simples e interagir rudimentarmente com portas e outros objetos.

Mesmo assim, não parecia tão difícil assim vencer essa guerra. O problema é que não entramos em guerra com eles. Não foram os zumbis que acabaram com a nossa sociedade, foram os saudáveis. Como eu disse, no começo a maioria acreditava que passaria logo, que era só uma doença bizarra confinada num lugar pobre. O país onde tudo começou preferiu esconder o problema por um bom tempo, e pessoas infectadas começaram a viajar pelo mundo debaixo do nariz das autoridades.

Quando o resto do mundo descobriu o que aconteceu, passou tempo demais perdido num jogo de culpar uns aos outros. Enquanto isso, aeroportos abertos e livre circulação. Os números de infectados começaram a sair de controle em alguns países, enquanto outros ainda pareciam atônitos. Quando as primeiras medidas de contenção começaram, tivemos uma série de problemas: mesmo diante de notícias e vídeos das áreas mais afetadas, alguns teimavam em dizer que era mentira. Outros faziam pouco. Diziam que logo acabaria e que era impossível os zumbis tomarem conta do mundo.

Não era impossível. Enquanto zumbis se multiplicavam sem parar nas áreas mais carentes do planeta, a classe média fazia protestos nas ruas contras as medidas de fechamento do comércio. Diziam que sem a economia, não teria um mundo para voltar quando vencêssemos os zumbis. O vírus que causava a morte e a subsequente reanimação dos cadáveres era transmissível de diversas formas: qualquer troca de fluidos e até mesmo pela respiração. A questão é que os soldados que enfrentavam os zumbis acabavam infectados, e mesmo quando eliminavam populações inteiras de doentes, levavam eles mesmos a doença de volta para o resto da sociedade.

No mundo todo, faltava material de proteção para o exército. Especialmente nos países mais pobres. A nossa capacidade de produção fica cada vez menor com as populações mais carentes sendo devastadas pelos zumbis. O que só reforçava o argumento daqueles que não queriam isolamento total da humanidade para reduzir a transmissão até que os exércitos eliminassem os infectados. O que eu tinha certeza que seria eliminado em semanas ainda estava dando um jeito de sobreviver meses depois.

Foram várias fases onde acreditávamos que estávamos vencendo só para descobrir novos focos dias depois. O que pouca gente percebeu na hora é que era uma guerra de atrição: os zumbis estavam nos cansando e acabando com nossos recursos. Eles não consumiam apenas humanos, uma praga de zumbis perto de uma fazenda acabava com milhares de cabeças de gado em poucos dias, a maioria dos outros animais não exibiam os sintomas, mas ficava infectados do mesmo jeito. Muita gente não teve coragem de sequer testar seus animais de estimação.

O colapso acontecia diante de nossos olhos, e por incrível que pareça, isso só dava mais força para negadores e conspiradores, inclusive os que controlavam boa parte das religiões. A narrativa que era uma praga divina foi se popularizando, com gente tentando se proteger comprando frascos de água benta e óleos abençoados… as igrejas lotadas contra todas as recomendações médicas não deixavam o vírus desaparecer.

Golpes de Estado se tornaram comuns. A unidade foi se desfazendo num estado caótico de cada um por si e os zumbis contra todos. Aqueles com mais dinheiro se encastelavam em condomínios extremamente protegidos, mas nunca duravam muito: sempre tinha alguém que subornava os funcionários para sair e comprar bebidas, drogas e cigarros nos cada vez mais raros lugares onde ainda se vendia alguma coisa.

Pouco mais de dois anos depois do começo da pandemia zumbi, praticamente todos os países só existiam mesmo no papel, exércitos sem liderança formando grupos que não lutavam mais para vencer a guerra, e sim para sobreviver. Havia a promessa de uma vacina, mas se ela foi criada, nunca fiquei sabendo. Começamos a nos falar cada vez menos, fazer cada vez menos comércio, até que a falta de manutenção começou a desligar coisas como a internet, a rede elétrica, o saneamento básico…

Impressionante como em tão pouco tempo as coisas podem simplesmente deixar de existir. Eu perdi minha família para os zumbis, perdi tudo. A cada dia fui encontrando menos e menos pessoas, até que um dia, não encontrei mais ninguém. Os zumbis estão enfraquecidos, caídos pelas ruas, boa parte totalmente incapacitada. Isso aumentou minha confiança para sair mais, procurar alguns dos tesouros abandonados na minha cidade. Por uma garrafa de uísque, eu coloquei a mão perto demais de um zumbi aparentemente morto.

Aparentemente. A infecção é dolorosa, e eu sinto meu corpo falhando a cada dia que passa. Meu estoque de comida me manteria vivo por anos, se eu tivesse me protegido… mas, eu achei que estava tudo bem me arriscar por algo que não era necessário. Pode ser meu cérebro começando a morrer por falta de oxigênio e nutrientes, mas eu realmente acho que a doença que acabou com o mundo que conheci um dia já estava conosco desde o começo.

Eu queria contar mais sobre como foi a minha vida nesses últimos anos, mas… eu já não aguento mais. Vou apenas torcer para que alguém menos irresponsável leia esta carta.

Para dizer que zumbis não são reais e eu sou alarmista, para dizer que a ficção vai mudar para sempre depois de 2020, ou mesmo para dizer que não comer cérebros é uma adaptação essencial hoje em dia: somir@desfavor.com

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