Fim do mundo.

A gente jura que bolou o tema antes da pandemia: imagine que você tem uma informação privilegiada sobre o fim do mundo, sabe quando e como vai acontecer, e mais importante, é capaz de interferir nesse resultado. Sally e Somir discutem como agir, ou não agir. Os impopulares escolhem se participam.

Tema de hoje: você tentaria impedir o fim do mundo?

SOMIR

Claro. Por fim do mundo eu entendo uma situação que pelo menos torne impossível a manutenção da vida humana na Terra. Claro, pode ser mais abrangente do que isso, mas é bom definir um limite mínimo aqui. Seja nosso planeta azul explodindo em minúsculos pedaços, um colapso no ecossistema que mate todas as formas de vida complexas ou mesmo uma arma biológica que elimine apenas os humanos, para este texto, dá no mesmo: se os humanos deixarem de existir, eu contabilizo como fim do mundo. As plantas e as bactérias podem discordar, mas elas que escrevam seus próprios textos…

Muito embora eu entenda o ângulo da impermanência que a Sally vai propor e concorde sobre a imensa insignificância de um macaco pelado diante da vastidão do universo, acredito que a conclusão dessas premissas não precise ser essa complacência toda. Se você tem condições de pelo menos tentar evitar o fim do mundo, não há absolutamente nada de errado em agir. Mesmo que você discorde de como a humanidade em geral conduz sua existência, mesmo que você acredite que existe algo a mais além deste corpo mortal; é seu sagrado direito escolher a autopreservação.

E como a natureza nos prova dia após dia, direito não no sentido de ser concedido por força maior, mas direito adquirido por suas próprias ações. Sobrevivência é uma conquista daquilo que é vivo, sem garantia alguma. Bilhões de anos de evolução não me deixam mentir: a continuidade da vida na Terra foi arrancada das frias mãos da entropia. Da forma unicelular mais limitada à mente mais complexa que a humanidade pode oferecer, todos resultado de uma luta constante contra o acaso e contra outras formas de vida. Viver é impedir o fim do mundo.

Sim, devemos tomar cuidado com a arrogância de achar que estamos no controle para evitar uma existência de sofrimento desnecessário, mas a capacidade de influenciar a realidade é o que torna a vida um fenômeno único. Aceitar o fim do mundo é abdicar da vida, num sentido bem mais filosófico do que apenas deixar de ter suas funções biológicas: muita gente morre com cérebro e coração ainda funcionando. Quando você desiste de sua capacidade de agir sobre a realidade, torna o fato de estar vivo irrelevante. É por isso que doenças como a depressão são tão terríveis: desconectam o ser vivo da sua essência e causam uma dor imensurável, a de experimentar a morte dentro de um corpo vivo.

Estar vivo presume agir sobre a realidade. É muito saudável modular suas expectativas e aceitar que o universo do que está fora do seu controle é infinitamente maior do que o que está, mas como eu disse antes, precisamos de uma conclusão melhor aqui: se você é um grão de poeira cósmico virtualmente impotente, cada coisa que você consegue fazer é um feito de probabilidades astronomicamente pequenas. E como eu não acredito em seres mágicos controlando nossas ações, não me sinto na obrigação de realizar plano maior nenhum. Se o fim do mundo pode ser evitado pelas minhas ações, era uma porcaria de fim de mundo, isso sim. A gente aprendeu aqui na Terra que só os mais bem adaptados sobrevivem.

E se existe um plano maior, mais divertido ainda: tem coisa mais bacana que mostrar o dedo do meio para alguma entidade super poderosa que estava decidindo as coisas por você sem te dar nenhuma explicação? Se queria queimar a formiga aqui com sua lupa gigante, traga uma lupa maior da próxima vez. Um dia eu vou perder? Claro que vou. Mas até lá, o mundo continua onde está e eu exerço meu direito conquistado de sobreviver. É problema meu que uma força maior é incompetente? E, se for força maior mesmo, dá para ter bastante segurança que se você salvar o mundo, esse era o plano dela para começo de conversa.

Eu vivo repetindo essa frase: “dado tempo suficiente, o hidrogênio começa a se perguntar de onde veio”. Gosto tanto dela porque dá um sentido para a vida, o aprendizado. Existimos porque somos inevitáveis, a curiosidade é uma propriedade inerente ao universo. A evolução terrestre desemboca no ser humano porque é o único caminho que desenvolve ferramentas para compreender a realidade. Assim que tiver algo melhor, são grandes as chances do fim do mundo, mas até lá, somos nós que fazemos esse trabalho.

Mas podemos ser um pouco menos antropocêntricos: se a única constante do universo é o caos, é irrelevante se nós nos salvamos ou não. O fim do mundo chega de qualquer forma, hoje, amanhã ou em incontáveis anos na hipótese do “Big Freeze”. Tudo isso aqui é apenas um estado da realidade, impermanente como todos os anteriores e os futuros. Salvar ou não o mundo de posse dessa informação não muda essa lógica, então, que escolhamos o melhor para nós neste momento. O cérebro humano é incapaz de conceber tantas variáveis quantas as necessárias para tomar uma decisão “universalmente boa”, se é que isso é possível.

Como somos seres vivos, é razoável presumir que ações que permitam a continuidade da vida façam mais sentido. Deixar o mundo acabar é uma espécie de traição à essência do que é estar vivo. Não a você como indivíduo, que tem o direito adquirido de abrir mão da sua vida, mas com a ideia em geral. A vida só existe porque coloca a vida em primeiro lugar. Consome qualquer recurso e paga qualquer preço para se multiplicar. Acredito que mesmo uma pessoa que não queira mais estar viva tem uma obrigação de pelo menos avisar outra que ainda quer sobre como evitar o fim do mundo.

Obrigação autoimposta por questões éticas, é claro. Na prática, você pode fazer o que bem entender e deixar a vida humana acabar junto com a informação que você tinha, mas já que esta discussão presume uma decisão consciente sobre salvar o mundo ou não: eu no mínimo não deixaria essa informação desaparecer comigo.

E, óbvio, o argumento mais mundano que venceria essa discussão a qualquer momento: se você salvar o mundo e for esperto o suficiente para fazer bastante alarde desse fato, pode apostar que vai viver o resto da sua vida como herói, sendo paparicado pelo resto da humanidade. Deixar o mundo acabar só é melhor para quem quer acabar…

Para dizer que não estava pronto(a) para esse nível de discussão na segunda-feira, para dizer que porque conhece algumas pessoas ruins a humanidade toda tem que desaparecer, ou mesmo para dizer que nada é tão importante assim: somir@desfavor.com

SALLY

Se você soubesse que o mundo vai acabar em breve, tendo informações precisas como data e motivo, e pudesse impedir, impediria ou não interferiria?

Não. Não cabe a mim tomar essa decisão. Se a porra toda tá acabando, é porque a porra toda tem que acabar. Não se luta contra algo tão maior, pode acontecer coisa bem pior que o fim do mundo caso se resista aos eventos que estão programados.

Francamente, não se perde muito. O ser humano deu errado, já sabemos disso. Se o desenrolar da coisa foi no sentido de uma total extinção do ser humano, do planeta ou do que for, tá tudo certo. Vem que vem, temos mérito para que uma coisa dessas aconteça, não vai ser nenhuma injustiça ou grande surpresa.

Seria muita arrogância da minha parte querer “salvar o mundo”. O que eu sei sobre a “Big Picture” para tomar essa decisão? Absolutamente nada! Tenho o conhecimento de uma formiga manca. Se as coisas estão se desdobrando dessa forma, que base eu tenho para contestar ou tentar mudar a realidade? Só se for uma base egóica de “eu me acho tão importante, eu acho a humanidade tão importante que quero que fiquem vivos a qualquer custo”. Nem a pau que eu me atrevo a essa escala de interferência.

Meu foco não está nos meus ganhos pessoais. “Vou fazer tal coisa pois assim vou ganhar dinheiro, popularidade e ter tais e tais benefícios”. O foco de ninguém deveria estar. Gente movida por interesses pessoais, pelo ego, dificilmente faz boas escolhas. É querer se dar bem às custas do universo, imagina o grau de falta de consciência de quem tenta tirar proveito disso.

Fosse por algum motivo nobre, eu até entenderia o equívoco, pois sim, ainda seria um equívoco querer mudar o curso do mundo sem ter total conhecimento de todas as variáveis envolvidas. Ao menos seria um erro com boas intenções. Mas tomar uma decisão grave, séria e grandiosa como essa buscando benefícios pessoais é mostrar que a pessoa realmente não entendeu o que está fazendo aqui.

Você se mete a operar uma pessoa para salvar a sua vida? Espero que não, se não for um cirurgião. Por qual motivo? Por não saber exatamente o que está acontecendo e, justamente por isso, correr um sério risco de causar mais mal do que bem. Talvez se você não operar a pessoa, ela morra, mas se você operar ela pode morrer de forma muito mais lenta e dolorosa.

Sem informação, sem entender tudo que cerca e permeia aquele evento, sem ter compreensão das consequências dessa intervenção, é uma loucura se meter apenas por não gostar do resultado final. Não é sobre você. É algo muito maior acontecendo, algo que você não tem ideia do quão necessário, benéfico ou prejudicial isso pode ser.

Querer viver (ou sobreviver) a qualquer custo é se achar muito mais importante do que realmente é. Entendo quem luta pela vida quando vem um filho da puta com uma arma roubar seu celular, uma vez que há igualdade de condições: em tese um ser insignificante não teria o direito de tirar a vida de outro ser insignificante.

Porém, a coisa muda de figura quando falamos de um evento grandioso, onde, por motivos que desconhecemos, acontecera uma extinção massiva. Isso foge à nossa compreensão. Não temos elementos mínimos para sequer começar a fazer um juízo de valor ou compreender as consequências de uma interferência.

Quem garante, por exemplo, que uma interferência para impedir o fim do mundo não vai gerar uma segunda “tentativa” de fim do mundo, desta vez com todos morrendo de forma lenta e dolorosa? Quem garante que, no saldo final, no universo, para manter um planetinha de merda não se provoque um grande colapso que custa muito mais caro do que a vida de alguns humanos?

Só interfiro em situações realmente sérias quando tenho todos os elementos para entender as implicações da minha interferência, ou seja, para avaliar de forma clara e inequívoca se vou causar mais bem do que mal. Isso se chama ter responsabilidade em meus atos. Impedir o fim do mundo é uma situação que está tão fora da minha compreensão que eu sequer consigo cogitar os possíveis desdobramento negativos. Vale a pena estar vivo a qualquer custo? Não.

Meus queridos, vamos todos morrer. É um fato da vida. Quando é pela irresponsabilidade de um Presidente da República mongol que nega a ciência e comete erros grosseiros dá revolta, mas quando é um ato maior, oriundo de um evento ou força que não temos compreensão, me parece bastante arrogante e ignorante lutar contra.

Chegou a hora? O mundo vai acabar? Joinha. Tchau e bênção, que nem vocês nem eu somos tão importantes para mexer com algo macro. Não é você quem vai escolher a data da sua morte, todo mundo nasce sabendo disso, então, por qual motivo quando ela chega as pessoas insistem em querer ter tanto controle sobre ela?

Desistam de ter controle sobre a hora da morte. Você pode fazer algumas coisas para tentar viver um pouco melhor ou um pouco mais, mas, continua sem ter total controle. Viva com isso. Fazer da sua vida uma luta para adiar a morte é um jogo no qual já se entra derrotado.

A hora chega quando a hora chega, não quando você quer. Ninguém dá consentimento para morrer. Ninguém escolhe o prazo de validade que tem. O que te faz pensar que você pode ter esse poder, ainda mais de forma coletiva? Ponha-se no seu lugar.

Somos apenas pedacinhos de carne à mercê da impermanência. Aposte todas as suas fichas na mente, que é quem tem alguma chance de, talvez, quem sabe, permanecer. Não valorize o corpo, esse com certeza vai perecer em breve.

Para dizer que você se acha assim tão importante, para dizer que você quer as honrarias e o dinheiro ou ainda para dizer que por mera questão de preguiça não faria nada: sally@desfavor.com

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Comments (7)

  • Fim da espécie humana Gaia está doida e trabalhando duro pra que ocorra. Já viu o qnto o planeta tem se regenerado com a humanidade em stand by? Teorias apocalípticas na maioria são tudo pretensiosa pq fodem de novo a coitada da flora e fauna em cataclismas, matam novamente meio mundo de pessoas, e depois de aprontar bastante por aqui, a insana humanidade acaba absolvida e viva para sempre no paraíso, com algum ser Divino. Ser humano é arrogante mesmo.

  • Eu costumo concordar mais com os pontos de vista da Sally, mas não desta vez. Concordo com o Somir, se eu soubesse o que ia acontecer e como ia acontecer, e de algum modo ficasse sabendo como evitar isso… bem, eu certamente não deixaria essa informação morrer junto comigo. Se eu fizesse isso, seria de um egoísmo imenso para com toda a humanidade.

  • Ótimos textos, estão de parabéns!!

    ://www.recantodasletras.com.br/redacoes/6868860

    Xeretando pela internet também encontrei este outro texto. Acredito que seja parecido com a linha de pensamento comum neste blogue.

  • A sociedade é como um jogo de queimada. Do outro lado da quadra está “o universo”, ou “a natureza”, ou seja como você queira chamar. E ele está o tempo todo atirando bolas na sociedade, que no caso seriam os desastres naturais, as pragas, etc. A sociedade como um todo vive de desviar dessas bolas e tentar rebatê-las, criando vacinas, construindo diques para controlar as enchentes, e coisas assim. É assim que a sociedade funciona há milhares de anos. Com as outras espécies acontece algo parecido, mas nós temos cérebro mais desenvolvido e polegares opositores.
    Aonde quero chegar com essa viagem? Para dizer que concordo com o Somir, acho válido fazer tudo o que for possível para manter a espécie. Se sumirmos, que seja pela completa ausência de solução pra resolver os problemas, não pela omissão.

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