Nacionalismo.

Enquanto as fronteiras estão fechadas em vários países e um verdadeiro leilão acontece para a compra de equipamentos de proteção individual produzidos na China, muitos defensores do nacionalismo ganham novos ouvidos para suas mensagens. Mas, o que isso quer dizer na prática?

O nome já diz muito, mas não custa esclarecer: nacionalismo é o movimento oposto ao globalismo. Segundo os defensores dessa ideia, um país deve buscar autossuficiência e colocar os interesses de seus cidadãos acima da integração com o resto do mundo. Assim como o globalismo, é mais uma ideia geral do que propriamente um sistema definido por regras. Não depende de esquerda, direita, democracia ou autoritarismo.

No século passado, tanto a Alemanha nazista quanto a China comunista poderiam ser consideradas nacionalistas. Antes da Segunda Guerra Mundial, os EUA tinham uma postura pra lá de nacionalista na sua política internacional. O Brasil abriu boa parte do seu comércio internacional só nos relativamente recentes anos 90! Aliás, antes da segunda metade do século passado, boa parte do mundo não tinha outra alternativa senão ser nacionalista. Foi a revolução na comunicação e a imensa melhora no sistema de transporte de cargas e pessoas da últimas décadas que ofereceu as condições necessárias para uma sociedade globalizada.

Hoje em dia você usa um celular feito na China com patentes americanas para chamar um carro feito na Alemanha com peças italianas para chegar na reunião com os sócios australianos da empresa russa com a qual está negociando matérias-primas brasileiras… e esse exemplo pode estar acontecendo na África, por exemplo. Especialmente em grandes negócios, essa imensa integração global já se tornou a norma.

Mas, ao mesmo tempo que isso promove um comércio global pujante, torna extremamente complexa a compreensão de quem deve o que a qual país. Essas relações não acontecem no vácuo: dependem de um solo onde ainda se pagam impostos relativos às fronteiras de um país. Num misto de contabilidade extremamente criativa que muitas vezes parece criminosa e lobbies com políticos de diversos países, multinacionais parecem mais afeitas a manipular esse sistema para lucros rápidos do que propriamente fomentar a integração entre países. E quando você adiciona especuladores do mercado financeiro e o poder desproporcional das maiores economias globais nessa equação, dá para entender o incômodo que muita gente tem com essa mentalidade de integração.

Não que o brasileiro ou americano médios entendam profundamente isso, mas ambos elegeram governantes mais alinhados ao nacionalismo. Ok, talvez Bolsonaro nem saiba soletrar nacionalismo, mas todo aquele discurso ufanista presume essa mentalidade. Colocar o país acima de tudo significa também rejeitar a tendência recente de borrar a linha que separa os países.

Vou ser o primeiro a dizer que a diferença entre remédio e veneno é a dose: embora existam vantagens consideráveis em se manter aberto ao comércio e ao livre movimento de pessoas ao redor do mundo, ainda não vivemos num planeta suficientemente homogêneo para aceitar os problemas da globalização como meros percalços no caminho. O globalismo beneficia desproporcionalmente os países mais preparados para isso, o que não é nada mais do que lógico, mas não deixa de ser preocupante.

Estados Unidos, China, União Europeia e em menor escala a Rússia tem um imenso poder de barganha em relação ao resto das nações. Projetam seu poderio econômico, militar e cultural onde quer que vão, e quanto menos barreiras encontram no caminho, mais colocam seus interesses à frente das populações estrangeiras com as quais lidam. Numa economia globalizada, quem não tiver como se defender vira quintal de um desses grandes poderes. E qualquer um desses grandes poderes que baixar a guarda pode e vai ser engolido por um dos outros.

Raul Seixas já sugeria alugar o Brasil, mas a realidade é menos psicodélica: permitir muito poder externo sobre sua nação significa que você ainda é responsável por manter as redes de proteção social básicas para sua população ao mesmo tempo que enfraquece sua economia e liberdade para acomodar os desejos de outro povo. Globalismo mal feito é uma forma de escravidão de países. Os velhos hábitos do colonialismo não desaparecem de um século para outro…

Mas nem só de países ricos explorando países pobres é feita essa realidade: no sentido oposto, o globalismo permite uma espécie de colonização inversa. Pessoas de nações mais pobres partem para esses grandes poderes em busca de melhores condições de vida, muitas delas mais bem preparadas do que o cidadão médio local. O nacionalismo em países ricos gira muito ao redor da imigração, EUA e Reino Unido que o digam, com a eleição de Trump e o Brexit para provar a popularidade de visões mais nacionalistas em países que em tese deveriam só colher os frutos do globalismo.

E em tempos de pandemia, essa parte feia do globalismo fica em destaque. Estrangeiros trazem a doença e fazem com que o sistema de saúde nacional entre em colapso, e na hora de buscar os recursos para aparelhar hospitais e cidadãos, descobrimos que tudo é feito em outro país, onde o governo local não tem poderes para declarar emergência e exigir prioridade. Problemas que poderiam ter sido resolvidos com fronteiras mais rígidas e especialmente com autossuficiência produtiva.

Muita gente começa a falar agora sobre a necessidade de não depender tanto da China para produzir as coisas. O que é compreensível quando temos dificuldades de conseguir respiradores e máscaras, mas não incomoda nem um pouco quando podemos comprar todo tipo de bugiganga por uma fração do preço que pagaríamos se a indústria fosse nacional… como sempre, é uma troca. Para pagar 10 centavos numa máscara durante situações normais, arriscamos ficar sem estoque na hora da crise.

E pior, não é tão simples como nacionalizar indústrias para resolver o problema: alguns países são melhores em produção do que outros. Depende do tipo de produto e do histórico de cada um. Não compramos celulares feitos na Alemanha e desconfiamos bastante de carros feitos na China. Não é à toa. Cada país tem um tipo de parque industrial e sistema de educação e profissionalização mais indicados para um tipo de tarefa. Países como o Brasil são potências no agronegócio e extração mineral (sim, somos), mas não conseguem produzir eletrônicos no padrão de qualidade e especialmente no preço que os países asiáticos.

E mesmo antes da explosão da globalização, países ainda tinham suas especialidades. Uma série de fatores que vão desde cultura, geografia, organização política e até mesmo o impacto da colonização definem os pontos fortes e fracos de cada um nesse mercado global. Evidente que isso não torna impossível que a República do Congo comece a fabricar aviões, mas dificilmente vão conseguir competir com americanos, franceses e (pasmem!) brasileiros nisso. Demora décadas para desenvolver uma indústria, e alguns fatores internos podem ditar que um país não vá conseguir entregar um misto de qualidade e preço razoáveis para o mercado mundial.

E algumas coisas são bem óbvias: o Paraguai nunca vai ter uma indústria de navios, afinal, não tem acesso ao mar. A Arábia Saudita não vai poder substituir a indústria petroleira pela agricultura, afinal, é quase toda desértica. Mesmo que esses países façam esforços incríveis, gastariam tanto dinheiro estabelecendo e financiando esses negócios que seus preços nunca seriam competitivos. O mundo não se globalizou por uma conspiração, como os mais paranoicos gostam de dizer, e sim porque o planeta Terra é cheio de peculiaridades, e cada povo acaba se adaptando à sua região. Boa parte do mundo só foi trazida de vez à civilização moderna há poucos séculos, vivendo até então sob outro paradigma de existência humana. Ainda tem muito chão para bilhões de pessoas nesse mundo estarem preparadas para competir com quem teve, às vezes, até milênios de vantagem.

E é só com uma política de abertura de fronteiras e compartilhamento do conhecimento que permitimos o acesso da maior parte do mundo às benesses da tecnologia e da educação. Num sistema econômico dependente de crescimento infinito, não existem muitas alternativas além de abrir novos mercados, e para esses novos mercados conseguirem criar demanda, eles precisam de desenvolvimento.

Então, dá para compreender a preocupação dos nacionalistas sobre os males de tanta integração causando problemas nos seus países, mas não podemos esquecer que a humanidade como conhecemos hoje não funciona mais sem a constante abertura de novas fronteiras econômicas. Imigração desregrada é um veneno para países desenvolvidos? Sim. Isolamento vai ser terrível para a economia e o padrão de vida dos locais? Sim também. Você tem direito de ficar puto por pagar 10 vezes mais que um americano pelo mesmo equipamento eletrônico? Sim. Você provavelmente perderia o emprego se empresas internacionais pudessem vender seus produtos sem nenhuma barreira no Brasil? Sim também.

Eu escrevi outro texto dizendo que no final das contas as coisas são mais complicadas do que parecem? Pois é. Não dá para escapar disso. Sempre desconfie que discussões de longa data sem resolução aparente não tem uma resposta simples, porque via de regra, é justamente essa dificuldade de uma resposta clara que faz como que se tornem controvérsias. Equilibrar nacionalismo e globalismo é uma missão ingrata. A lição que temos que retirar dessa crise não é uma de soluções mágicas alinhadas a uma ideologia ou outra, e sim de que o sistema mostrou suas fraquezas e deve ser aperfeiçoado.

Os países que não saírem dessa crise com uma cartilha de ações razoáveis para os momentos de isolamento como mais agilidade nas políticas de fechamento de fronteiras, quarentenas e gestão de crises de saúde sem perder a capacidade de negociar com outros países serão os grandes perdedores. Não estamos num momento de valorizar nacionalismo a qualquer custo, estamos no momento de melhorar nossa relação com o globalismo. Infelizmente, eu prevejo que não vai ser exatamente essa a lição que muitos vão aprender, e é bem possível que uma onda de candidatos nacionalistas comece a vencer as próximas eleições.

Até relembrarmos na prática os motivos pelos quais deixamos de achar que o mundo acabava depois das fronteiras de nossos países. Nunca é tão simples quanto seguir só uma ideologia… nunca.

Para dizer que a lição é que todo mundo é egoísta, para dizer que não sabe do que me xingar, ou mesmo para dizer que a sua ideologia resolve tudo: somir@desfavor.com

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Comments (9)

  • Estuprador Satânico Pedófilo Nazifascista

    O que tende a ganhar força com essa onda reacionária, nacionalista e xenofóbica é justamente a consolidação do JUS SOLIS como o fator determinante da nacionalidade de alguém, em detrimento do JUS SANGUINIS.
    Não preciso dizer que em países europeus (em especial Portugal, Itália e Alemanha, de onde vieram o grosso dos imigrantes que vieram abarcar pelas bandas de cá), os cidadãos médios não veem de forma lá muito benevolente os “macaquitos” provenientes do Brasil.
    Por fim, isso é um movimento pendular que já vinha dando as caras com questões como o Brexit e a eleição do Trump com grande suporte dos cognominados “rednecks”, sendo que o coronavírus só abre a janela de oportunidades pra se avançar ainda mais nisso.
    PS: Ainda vai ter muita gente em país subdesenvolvido (seja na América Latina, seja no sudeste asiático, na África ou até mesmo no “Oriente Médio”) que vai passar por sérios problemas por não estar adequadamente preparado para lidar com uma situação de “escassez” por tempo prolongado.

    • Acrescenta também o Japão, onde suas prisões estão lotadas de brasileiros e peruanos descendentes de japoneses. Porém o jus soli também é imperfeito, basta ver os “bebês âncoras” nos Estados Unidos. No fim, tanto jus soli quanto jus sanguinis levam à importação em massa de gente burra e mal educada que não vai acrescentar nada aos países anfitriões.

  • “A lição que temos que retirar dessa crise não é uma de soluções mágicas alinhadas a uma ideologia ou outra, e sim de que o sistema mostrou suas fraquezas e deve ser aperfeiçoado”.

    Somir, essa foi, disparado, a melhor e mais sensata frase que li sobre o que vem acontecendo desde que essa crise toda começou…

  • Pior que o fim do coronga é o começo de outro pesadelo… Estou completamente entregue ao niilismo.

    “e é bem possível que uma onda de candidatos nacionalistas comece a vencer as próximas eleições.” Nisso eu me junto com aquele maluco que falou que democracia, e política no geral, é um teatrinho. No final das contas, nem governos de esquerda nem governos de direita cumprem suas supostas promessas. Dilma não liberou o aborto, Bolsonaro não liberou as armas, Trump não fez o muro e assim vai. Mas não é como se tivéssemos poder pra mudar isso, então vamos só aproveitar a vida enquanto der. A tia Zélia, curtidora da página Humor & Piadas no Facebook, está aproveitando mais a vida que a gente se preocupando com essas coisas.

  • tiago somir fan account

    eu não ironicamente acho que cultura nem existe, praticamente tudo forjado pelo mercado turístico

  • Se o Brasil não aprende nem com enchentes anuais e tenta controlar os danos de última hora, não seria diferente com pandemias… Ainda tem milhões de ratos de laboratório pra matar e ainda sobra pra continuar servindo aos políticos e empresários.
    Sobre imigração: 1) quem não tem filho não tem moral pra reclamar, o governo só está bancando a reposição populacional que você não fez e 2) apostaria que a América latina está mais propensa ao colapso do que a Europa. Esta ainda consegue atrair imigrantes e turistas o bastante pra sustentar a existência do continente por mais algumas décadas (até os imigrantes serem aculturados e terem redução em sua natalidade, mas isso é outra história). Já a América latina não atrai merda nenhuma e está com taxa de natalidade a níveis comparáveis aos europeus.

    • Mito dos Lacres

      O governo não se preocupa com a questão das enchentes pelo simples fato que o custo de desapropriação e realocação é alto e isso por si só não assegura que a área afetada vá ser desocupada de fato, uma vez que a pressão de grupos de interesse acaba sendo um desserviço ai.
      Daí é mais fácil tratar como fatalidade e se limitar a ações pontuais para manter as aparências. Se morrem centenas de pessoas nisso, PACIÊNCIA!

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