A verdade do consenso.

A verdade é insustentável sem um consenso. Por mais que você queira acreditar em uma coisa, se ninguém mais concorda com você isso vai se tornando progressivamente mais incômodo, normalmente até o limite da sua sanidade. Somos seres sociais, isolamento em qualquer aspecto da vida costuma ter um preço muito caro para nossa qualidade de vida. Mas eu aposto que você nem deve pensar muito nisso dos dias atuais… especialmente se você tem acesso constante à internet.

Nem precisamos voltar muito tempo no passado para esse exemplo: há algumas décadas atrás, era muito complicado pensar diferente das pessoas ao seu redor. Não que ninguém fizesse, muitos dos avanços que tivemos na humanidade foram resultado direto de alguém disposto a enfrentar essa dificuldade, mas caso não fosse algo extremamente importante para você, o mais comum era simplesmente se calar e aceitar a impopularidade daquela ideia como a lógica de funcionamento do mundo.

E nesse processo, muitas verdades pessoais foram soterradas em algum canto escuro da mente. A pessoa cedia à pressão externa por saber que se expressar significaria isolamento. A humanidade tinha uma ferramenta quase que universal para gerar conformidade. Se você estivesse cercado por pessoas que não pensavam de forma parecida em algum tema, a probabilidade maior é que suas ideias ficassem presas. Seu grupo social era uma barreira muito eficiente para qualquer tipo de subversão.

E quanto mais voltamos no tempo, mais provável que alguém tenha sido forçado a aceitar a voz da maioria. Na Idade Média europeia, eu duvido que alguém chegando à conclusão que Deus não existe conseguiria sustentar um discurso ateu por muito tempo. Caso não fosse torturado ou morto pela heresia, provavelmente seria ignorado como o idiota da vila. Era mais simples reprimir esse tipo de ideia e focar no que tinha em comum com os outros.

E para falar a verdade, ainda é mais simples: não é à toa que grupos de pessoas que convivem tendem a pensar de forma parecida sobre o mundo. Existem recompensas biológicas no cérebro para falar com alguém que concorda com você, e hormônios do estresse que tornam confronto uma coisa bem incômoda. Buscar seu reflexo em outros seres humanos, focando no que você tem em comum com o outro é tão importante para nós que é um comportamento instintivo. Crianças são programadas para aceitar as ideias dos adultos ao seu redor como uma forma eficiente de gerar e manter relações.

Só que nesse mundo moderno e cada vez mais conectado, se conformar à realidade percebida pelo seu grupo mais próximo não é mais a única opção. A verdade é um consenso, e você tem o mundo inteiro para pesquisar por esse consenso. Melhor ainda: o consenso pode chegar na sua rede social sem você sequer procurar por ele. E nem precisa ser algo que você tenha muita consciência como sua opinião.

Como muitos psicólogos podem te dizer, nem tudo o que a gente tem na cabeça está claro e disponível para análise, você provavelmente tem algumas tendências para enxergar a realidade que não sabe colocar em palavras, e muitas vezes são elas que acabam ativadas quando você tem acesso a uma opinião alheia. Nunca leu ou ouviu alguma coisa que nunca tinha pensado diretamente, mas assim que entra na sua cabeça faz todo o sentido? Tinha muito mais coisa dentro da sua cabeça que você presumia. O inconsciente é gigantesco.

Esse bufê aparentemente infinito de verdades lida com o antigo problema do isolamento de ideias. Hoje em dia a pressão externa sobre o que você considera verdade não é mais suficiente para reprimi-la, afinal, com bilhões de humanos se comunicando constantemente pela internet, a chance de encontrar consenso aumenta exponencialmente. E basta uma pessoa a mais nesse mundo pensando parecido com você. A ideia de uma pessoa tem quase nenhuma chance de sobreviver, mas a ideia de duas que se conhecem dura enquanto elas durarem.

A necessidade de conexão que temos é tão grande que você só precisa de um comentário na rede social dizendo a mesma coisa que você acredita para aquilo virar a verdade. O homem das cavernas só precisa de um aceno de cabeça alheio para transformar a desconfiança que tem um tigre atrás dos arbustos em certeza. Somos resultado de uma evolução que colocou muita ênfase em cooperação e confiança na percepção alheia. É um reflexo: se mais alguém concorda com o que você diz, a probabilidade daquilo ser verdade se torna imensa, imediatamente.

A era da comunicação chega para mudar a forma como a sociedade humana funciona, mas não muda o ser humano. Temos contato com milhares de pessoas todos os dias, direta ou indiretamente, mas não estamos habituados a isso. Ainda somos o caçador pré-histórico que só precisa do aceno de cabeça do outro para ter uma certeza terrível sobre a realidade. Muita gente parece focada em criticar os problemas dessa era das Fake News olhando exclusivamente para o ângulo do volume de desinformação.

Sim, atrapalha bastante receber toneladas de informações desconexas de todos os lados, mas eu argumento aqui que tem algo interno para lidar também: essa tendência natural de só precisar de mais uma pessoa concordando com você para formar um consenso. Isso não funciona mais em tempos de internet. Isso é uma grande armadilha que a humanidade vai precisar desarmar para encontrar um caminho seguro. O principal problema aqui é que é algo tão natural e instintivo que ninguém sequer para para pensar no tema.

A verdade é um consenso porque não estamos preparados para lidar com isso de outra forma. É uma questão filosófica antiquíssima definir o que é real, se é um conceito absoluto que precisamos apenas perceber ou se é algo criado pelas nossas mentes e inescapavelmente relativa. Está além da minha capacidade dar uma resposta definitiva, mas eu posso te sugerir deixar essa análise em segundo plano enquanto tenta entender como você define o que é verdadeiro. Existem fatores psicológicos poderosos aqui, para que a humanidade conseguisse avançar como avançou, precisamos desenvolver essa espécie de confiança cega no consenso com outra pessoa.

Mas o que funcionou até a era da internet pode não funcionar mais. Se por um lado muita gente que ficaria reprimida a vida toda pode finalmente se sentir menos sozinha, por outro o “sistema imunológico social” contra ideias absolutamente malucas e estúpidas não consegue mais isolá-las. Ideias são contagiosas, e com essa lógica de precisar contaminar apenas mais uma pessoa para se tornarem praticamente imunes aos perigos externos, vemos o crescimento de teorias malucas e desinformação ao redor do mundo.

Esse organismo social humano notou o problema e está tentando várias alternativas para reprimir o que considera danoso. Mas todas as tentativas atuais parecem viciadas no mesmo tratamento: oferecer uma nova conexão em troca da antiga. Ao invés de acreditar na pessoa X que diz que vacinas fazem mal, acredite na Y que diz que fazem bem. Ainda somos humanos, a palavra de uma pessoa ainda carrega muito poder. Tanto que na disputa entre opiniões divergentes, um dos argumentos mais comuns é o apelo à autoridade ou à maioria. Humanos disputando consensos. “Esse humano é mais bem preparado para te dizer o que é verdade”. “Mais humanos acreditam nisso do que no que você acredita”.

A questão é que esse é o mesmo jogo. Não estou aqui para dizer que especialistas e maiorias não têm peso na hora de discutir um tema, só para dizer que como estratégia para lidar contra Fake News, é no mínimo duvidoso. Há uma preferência instintiva em confirmar o que já acredita com a concordância alheia. E considerando como costumamos tratar bem melhor que já concorda com o que pensamos do que quem discorda, fica claro o problema: do lado da pessoa, validação e camaradagem, do lado oposto, humilhação e ofensas. É natural que alguém entrincheirado numa visão distorcida da realidade prefira a segurança dos companheiros do que correr em campo aberto contra as armas do inimigo.

A verdade é um consenso porque é um consenso pensar assim. Ela pode muito bem ser o conjunto de informações mais seguras que uma pessoa consegue acumular. Quando a gente fala aqui de pensamento crítico, esse é o ponto: quanto mais informações você tem, maior sua capacidade de conectá-las e fazer senso do mundo ao seu redor. A realidade é mais vívida, menos propensa a ser modificada por opiniões alheias. Ainda quer dizer que você vai estar errado boa parte das vezes, mas a tendência é que erre de forma progressivamente menos grotesca.

Não existe solução simples para a quantidade avassaladora de desinformação e confusão girando ao redor do mundo agora. Não é uma questão de censurar ou checar informação através de uma busca de consensos melhores, é aceitar que a verdade como consenso ficou desatualizada. A simples ideia que você não está sozinho numa ideia, por mais absurda que seja, já é suficiente para dar segurança para a maioria das pessoas. Foi assim que aprendemos a lidar com mundo, desde a infância.

E é muito complicado dizer para alguém que não só essa segurança não existe, como nunca existiu. Sempre foi um mecanismo prático para resistirmos ao sofrimento de não fazer parte do grupo. É útil para formar relações, mas não é a melhor forma de perceber o mundo ao seu redor. Pra isso, só se o ser humano médio começar a valorizar mais o método científico. Não porque só a ciência pode falar a verdade, e sim porque foi com esse método que ela conseguiu reduzir o impacto das verdades de consenso e se reinventar constantemente. A verdade – ou o mais próximo possível dela que podemos chegar – está em dados e experimentos, não em consensos limitados. Não adianta ter meia dúzia de pessoas que pensam parecido com você para estar próximo da verdade, você precisa de muitas informações e esforço concentrado de milhares de pessoas para ter uma boa base. Porque custa caro assim analisar a realidade: só entendemos o que entendemos do mundo por uma construção milenar de informações testadas à exaustão.

É humano buscar o consenso para ter paz interior, mas o mundo moderno está exigindo mais de nós. É muito mais difícil ter essa sensação de pertencimento por encontrar alguém que pensa parecido, porque existem cada vez mais grupos diferentes em choque. Essa paz dura muito pouco, e vai se tornando em frustração depois que você entra em contato com toda essa gente. Ninguém mais consegue forçar só uma realidade goela abaixo de todos, o que tem suas vantagens, mas só para quem estiver preparado para isso.

Busque conhecimento, já dizia Bilu. Mas busque ferramentas para lidar com esse conhecimento. Não adianta repetir os dados sobre uma pesquisa se você não sabe como pesquisas funcionam… não adianta usar argumento de autoridade se você não sabe defender a autoridade daquela pessoa. São mecanismos de quem busca verdade por consenso, rasos para qualquer coisa que vá além dessa necessidade pessoal de validação. O grau de exigência atual para não falar bobagens é muito maior do que em qualquer outro período histórico. Subiu o padrão. Não adianta mais encontrar gente que pensa parecido, porque isso não é mais sinônimo de que você tem um argumento forte, afinal, se a plateia com a qual você se comunica for grande o suficiente, qualquer coisa pode gerar concordância em pelo menos uma pessoa.

Temos que nos desacostumar a equiparar o sentimento de pertencimento com a segurança de estarmos enxergando o mundo da melhor forma que podemos. A ciência passou por isso até desenvolver o método científico. Está na hora de seguirmos pelo mesmo caminho.

Para dizer que discorda só para dizer que entendeu, para dizer que eu não disse nada com nada (quando você estiver pronto, vai entender), ou mesmo para dizer que esses parênteses foram muito arrogantes (eu sei): somir@desfavor.com

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Comments (7)

  • Okome Okude Ketaleno

    Somir, eu concordo com quase tudo. No meu tempo de mestrado, há distantes 27 anos, descobri que muito do que se faz em Ciência depende do recorte que se faz, das premissas do pesquisador e de manipulação de tamanho de amostra para valorizar pequenas diferenças. Além disso, pesquisa necessita de dinheiro, que geralmente vem de gente diretamente interessada nos resultados (por exemplo: Fundação Bill & Melinda Gates e suas pesquisas sobre vacinas em países de terceiro mundo, ou financiando o laboratório de Wuhan, etc; George Soros e suas ONG patrocinando investigação se a origem do coronavírus era natural ou artificial – está lá, podem checar os agradecimentos dos pesquisadores no artigo). Enfim, é uma merda, mas nem a Ciência na prática é lá essas coisas. É um pouco melhor, se isso lhe serve de consolo.

    • Pois é, é um pouco melhor. E já faz muita diferença. Uma das únicas coisas que a humanidade pode contar até hoje foram pequenas melhoras incrementais.

      Salvo uma singularidade tecnológica guiada por inteligências artificiais, é basicamente isso que podemos esperar: um pouco melhor.

  • “vemos o crescimento de teorias malucas e desinformação ao redor do mundo.”
    Até pouco tempo atrás, lavar as mãos antes de performar uma cirurgia também era uma teoria maluca. Inclusive, seu teórico foi internado num manicômio por defender isso: https://www.bbc.com/portuguese/geral-49817726
    Não simplesmente descarte teorias, mesmo que pareçam “malucas”.

    • Válido, mas não podemos nos esquecer que antes e depois desse caso muita gente sugeriu coisas que realmente eram malucas.

      Não foi a fé na pessoa que resolveu o problema, foi a comprovação técnica.

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