Antropocentrismo.

Embora Nicolau Copérnico (1473-1543) provavelmente não tenha sido o primeiro ser humano a considerar que a Terra não era o centro do universo, é sua teoria do Heliocentrismo que fica registrada nos livros históricos como primeira menção da ideia. Mais do que transferir o ponto central do universo para o Sol, o astrônomo e matemático polonês também colocava em xeque a importância do ser humano para a existência… de tudo. Dá para imaginar como foi difícil para as pessoas aceitarem isso.

Um mito comum repetido como se fosse verdade é que Galileo Galilei (1564-1642) foi queimado vivo pela Igreja Católica por defender a ideia de que a Terra gira ao redor do Sol. Na verdade, foi Giordano Bruno (1548-1600) que encontrou seu fim numa fogueira da Inquisição, e não exatamente pelo crime de defender o Geocentrismo, mas por suas visões “originais” sobre religiosidade e ocultismo. Galileo morreu de forma bem mais pacífica, em casa sob os cuidados da filha aos 77 anos de idade.

O que não quer dizer que a Igreja Católica não resistiu às ideias de Copérnico e Galilei, mas não podemos nos esquecer que naqueles tempos a maioria dos pensadores e cientistas vinham de famílias ricas: dinheiro fazia tanta diferença naqueles tempos como faz hoje em dia. E para a mente média dos séculos XV e XVI, praticamente qualquer coisa era mais importante do que questionar a posição do nosso planeta no espaço. A Igreja teimava, é claro, mas não é como se estivessem sob risco iminente de questionamentos pelos seus fiéis.

A história real de tirar a Terra do centro da realidade é bem menos dramática e violenta do que aprendemos. Foi um processo lento que demorou bastante para atrair muita atenção do público em geral. Argumento aqui que toda a dificuldade de convencer pessoas e instituições sobre a Terra não ser o centro do universo (e eu digo universo porque naquele tempo sistema solar e universo eram basicamente a mesma coisa) é muito mais questão da dificuldade do ser humano em não se colocar como referência de tudo do que fé, ignorância ou qualquer coisa do tipo.

Essa tendência de considerar que nossa existência é central à existência e a função de tudo o que nos cerca se chama antropocentrismo. Não é específica de pessoas limitadas como as que até hoje em dia defendem o terraplanismo, é algo pervasivo no pensamento humano em geral. Do mais simplório fiel ao mais bem educado filósofo, é uma tendência quase que inescapável. Afinal, como não contaminar qualquer ideia com a presunção que somos importantes? Uma ideia sequer existe sem nenhuma pessoa para pensar nela?

Quando pensamos no universo e suas possibilidades, uma série de questionamentos são derivados dessa visão antropocêntrica. Talvez a mais importante seja a “por que existe um universo?”. Se você olhar por um ângulo humano, a existência pode ser muito bem baseada em nós. Até segunda ordem, as nuvens de poeira que constituem a maior parte da matéria (diretamente detectável) do universo não tem consciência alguma. O único ser vivo conhecido que atende à condição mínima de percepção necessária para buscar um propósito é o ser humano. Então, até por falta de concorrência, podemos argumentar que o universo existe para que nós possamos existir.

Essa ideia é tão natural que dela se desenvolvem todas as formas de pensamento abstrato, inclusive ciência e religião. Tem gente que diz que religião era a ciência da antiguidade, que muitos cientistas famosos eram fiéis fervorosos, mas eu prefiro manter uma certa distinção: a domesticação do fogo e o desenvolvimento da agricultura não foram processos baseados em fé, por exemplo. Tentativa e erro, hipótese e experimento… mecanismos científicos que sempre conviveram com a fé durante nossa história. Às vezes se misturavam, às vezes divergiam. O mundo pós-revolução científica só colocou barreiras mais claras entre as coisas. Outro dia desses eu me aprofundo só nessa ideia.

Porque hoje continuamos com a ideia de que nos tratar como centro do universo é parte integrante do funcionamento da mente humana. É muito mais fácil explicar uma coisa se conseguimos nos colocar como razão ou consequência dela. A ideia de que nada existia antes do Big Bang ou do mito de criação da sua religião predileta é relativamente simples de digerir se você acha que o universo só existe para que nós possamos existir. Agora, se você tentar tirar o fator humano da jogada, as coisas ficam complexas rapidamente.

Talvez precise considerar que é tudo uma questão de tamanho: tudo o que existe agora sempre existiu antes do Big Bang, mas absurdamente condensado num só ponto. A diferença entre o segundo antes do início do tempo como conhecemos e hoje é apenas o espaço aparente entre as partículas. Mas aí você perde a noção de início, e isso é difícil de conceber: vidas começam em algum ponto, então como o universo não começa? Não acredito que algum ser humano esteja plenamente satisfeito com a ideia de que nada e/ou tudo existiam antes de um ponto inicial no tempo.

A vida vai ter uma dificuldade natural de entender tudo o que não é vida. Nosso ponto de referência é definido por ela, mas seres humanos vão além, porque partem de um princípio ainda mais específico: o humano. É comum vermos pessoas tratando outros animais de forma humanizada, desde a madame criando um cachorro como uma criança mimada até mesmo os ativistas que não conseguem diferenciar criação de animais de escravidão humana. O que é bom ou ruim para humanos parece bom ou ruim para todos os animais.

Podemos somar as duas coisas para analisar a questão da existência de vida fora da Terra: o antropocentrismo se mostra mais uma vez praticamente inevitável. Não só buscamos por formas de vida inteligente que tenham alguma semelhança fisiológica conosco (buscando condições parecidas como presença de água em estado líquido, atmosfera respirável, temperaturas amenas, etc.) como também esperamos semelhanças psicológicas como necessidade de comunicação, curiosidade, organização social… mandar sinais pelo espaço exige uma série de características que julgamos essenciais à inteligência.

Mas quem disse que humanos precisam ser o centro de tudo? Um humano? Eu desconfiaria dessa fonte, afinal, ela pode ser muito parcial. Um dos grandes desafios das ciências, inclusive das humanas, é conseguir eliminar preconceitos e vícios de seus estudos. O que já sabemos impacta no que podemos descobrir, e o nosso referencial antropocêntrico nos direciona, muitas vezes inconscientemente, rumo a ideias que confirmem nosso papel de importância inquestionável na realidade. Não importa o quão pequenos tenhamos nos descoberto ao olhar para as estrelas, não é que um dos elementos mais fascinantes do espaço acabou sendo justamente a busca por outras formas de vida? Uma forma de reestabelecer algo nosso como central para toda a história.

E quando começamos a nos aprofundar nessa busca, começamos a fazer contas: qual a probabilidade de sermos a única forma de vida inteligente do universo? Se é improvável pelo número imenso de galáxias encontradas nos céus e pelas quantidades de tempo envolvidas, ainda nos faltam provas. Talvez sejamos a primeira de todas, talvez demos azar de estarmos num hiato de civilizações galácticas, ou talvez sejamos únicos.

Mas a ideia de que é impossível que estejamos sozinhos não deixa de ser fruto do antropocentrismo: quem disse que vida inteligente é importante para o universo? Pode ser que sejamos um curioso acidente no universo, como aquele vez que uma supernova criou um átomo maior que todos os que já fizemos… dada a escala do universo, muita coisa estranha pode acontecer, algumas delas só uma vez. Se você parte do princípio que é algo “natural e esperado” no universo, claro que vai procurar por outras formas de vida. Se aconteceu conosco, por que não acontecer de novo?

E por mais que dizer isso possa ser considerado como não se achar especial, afinal, você está desistindo de ser único, por outro lado, está se colocando como a média. Está dando uma razão para sua existência, dizendo que é provável, e não um acidente. O antropocentrismo tem dessas armadilhas. Quando você menos percebe, está de volta para o centro de todas as discussões. Não é à toa que quase todo assunto pode ser reduzido até nosso senso de auto importância.

Porque se você parar para pensar, sem a gente quem estaria discutindo essas coisas? A realidade de um ser humano sempre vai ser antropocêntrica, não importa quantas civilizações alienígenas descubramos ou mesmo entremos em contato. É o ponto de referência tão importante na Teoria da Relatividade: cada combinação de vetores de espaço e tempo tem uma percepção diferente das mesmas coisas. Curioso como boa parte da nossa história científica foi baseada em tirar o homem do centro do universo, mas que tenhamos evoluído até descobrir de somos o centro, nós e todos os outros pontos do tempo e do espaço.

Antropocentrismo é perigoso quando nos leva a presumir que nossa visão específica é a mesma do outro, mas não quando entendemos que não importa o que fizermos, estamos dentro de uma mente humana que só consegue perceber uma realidade por vez. Toda vez que você tenta presumir que outra pessoa ou mesmo ideia partem das mesmas bases que as suas, assume um risco elevado de errar. Só o conhecimento, seja por observação, experimentação ou troca de ideias que pode tornar as coisas menos imprevisíveis.

Você é sim o centro do universo, mas não é o único.

Para dizer que não estava com saudades desses textos, para dizer que eu sou muito egocêntrico, ou mesmo para dizer que somos especialmente inúteis: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas:

Comments (7)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: