Heróis Tupiniquins

Confesso que me soa estranho que isso precise ser dito, mas, como vejo uma crescente de discurso mártir tomando conta de muitos brasileiros, achei melhor vir aqui reforçar: arriscar a vida de forma desnecessária não te faz um mártir, não te faz nobre, não te faz um herói. Te faz um idiota.

Salvo raras exceções, como arriscar a sua vida para salvar a vida de uma pessoa que você ama, colocar a vida em risco é uma mera imbecilidade. Não sei por qual motivo tem uma geração emocionada aí que está endeusando esse comportamento.

Não me refiro apenas a adolescentes retardados, mas também a adultos que se comportam como adolescentes retardados. Por mais nobre que seja a sua causa, se você não se cuida e coloca sua vida em risco, eu sou levada a acreditar que você não está apto a lutar por essa causa, pois está com algum probleminha sério de cabeça. Quem não se ama não tem qualquer condição de amar ou ajudar mais ninguém.

Quem não se ama e se respeita não tem seus atos movidos por amor ou compaixão e sim por ego. É a vontade de parecer herói, de ser aceito, de ser aplaudido o motor para agir. E, acreditem, nada vindo daí dá certo ou tem um bom final. Geralmente a pessoa com essa sede por militar, por ser valorizada ou por ser admirada acaba aprendendo uma valiosa lição.

Um exemplo polêmico: médicos que atendem a pacientes de covid-19 sem o equipamento de proteção necessário para não contrair a doença. Desculpa, mas não são heróis. Ainda se deixam fotografar, cobertos apenas por um saco de lixo, mostrando como são nobres e honrados e o sacrifício que fazem pelo outro. Não. Se colocar nessa situação não é ser nobre e honrado, é estar muito mal de cabeça.

Já discuti com vários médicos que se sujeitam a isso, afirmando que eu jamais colocaria a minha vida em um risco dessa proporção. Se não tivesse EPI (Equipamento de Proteção Individual), não atenderia pacientes contaminados com um vírus que pode ser letal. É apenas óbvio, no entanto, ao que tudo indica, isso é reprovado por muita gente. Parece que as pessoas estão realmente ficando loucas.

Venho escutando respostas muito críticas a essa afirmativa: “é por isso que você não serviria para ser médica” ou “isso é egoísmo” ou “nem todo mundo tem a coragem que precisa para ser médico”. Oi? Para ser um bom médico você tem que entrar em contato com um paciente que sofre de uma doença que pode ser letal sem proteção? Vocês tão tiririca das ideias?

O mesmo vale para os manifestantes tão engajados (em propagar o coronavírus) que afirmam que quem fica em casa é fascista e culpado por ______________ (complete com a causa em questão: violência contra negros, corrupção, etc). Não. Não querer arriscar a própria vida em um país que é epicentro mundial de uma pandemia não é ser conivente com racismo ou com corrupção, é ser são.

Observando esse crescente grupo de pessoas com essa mentalidade lunática, infantilóide e distorcida, fico me perguntando até que ponto as pessoas não estão forçando uma barra para se colocar em risco, de modo a conseguir sua estrelinha dourada de heróis. Acham tão bonito e nobre se arriscar que não seria estranho se potencializassem esta situação aqui ou ali, para parecerem ainda mais heróis.

É de uma egolatria desenfreada achar que um ato seu é importante o suficiente para erradicar o racismo, a corrupção ou qualquer outro mal enraizado do país. Sua manifestação não vai conseguir nada além de espalhar o coronavírus, como bem dissemos no último sábado.

E mesmo que consiga, fazer isso às custas de vidas que não escolheram morrer por isso, como a avó de um imbecilóide manifestante, que estava fazendo sua quarentena certinha até o demente levar o vírus para dentro de casa, é imoral e criminoso. Quem você pensa que é, quão importante você pensa que é a sua causa, para matar inocentes por ela?

Um médico que se dá ao luxo de atender pacientes de uma doença muito contagiosa com um saco de lixo na cabeça pode se achar muito herói por ter ajudado aquela pessoa específica, mas, se pensarmos bem, é um tremendo de um egoísta, pois por sua irresponsabilidade, ele pode ter se contaminado e pode ter infectado mais 50 pessoas que atendeu depois. Lindo, salvou um (se salvar) e matou 15. Muito herói, você!

O curioso é que esses heróis se dizem preocupados com questões sociais, em corrigir desigualdades: atender pessoas sem recursos ou lutar pela igualdade social manifestante. Porém, na prática, o que fazem é justamente o contrário: ferrar com essas pessoas às quais eles dizem querer defender. Na melhor das hipóteses são muito burros, na pior são hipócritas que usam grupos vulneráveis de palanque para se promover.

Quem vai às ruas pedir pelo fim do racismo se acha um desbravador social, porém está contribuindo para o aumento de casos de coronavírus e… adivinha quem mais vai sofrer com isso? Toda a população vulnerável, que não vai ter acesso ao mesmo cuidado médico de quem tem um plano de saúde, sedo boa parte deles negros. Lindo, militou mas pode ter levado dezenas de negros a óbito por coronavírus.

Não bastam boas intenções. É preciso ter consciência para fazer algo bom. Sem consciência, você pode causar mais danos do que ajuda. E quem expõe sua vida, sua saúde e saúde dos que os cercam a risco certamente não tem consciência.

Será que querem mesmo ajudar? Provavelmente não, provavelmente querem posar de heróis, de abnegados, de pessoas excepcionais que colocam o bem-estar do outro à frente do seu. Dica: quem sacrifica seu bem-estar em detrimento do outro não é uma pessoa boa, é uma pessoa ególatra (que para receber aplausos topa pular na granada) e/ou autodestrutiva. Quando, para fazer caridade, você tem que fazer um mal a si mesmo, deixa de ser caridade e passa a ser algo inadmissível.

Bondade não é isso. Se alguém te exigir que você sacrifique sua vida por uma causa, manda um joinha e bloqueia a comunicação com essa pessoa, pois ela está com a cabeça muito ferrada. Quem está no fundo do poço sempre convida mais gente para pular lá, pois quer estar acompanhado.

Não duvidem da necessidade bizarra do ser humano por aplausos, aprovação e atenção, especialmente nestes tempos pandêmicos onde isso não pode mais ser conseguido da forma tradicional, ostentando a vida em redes sociais. Tem uns malucos que, se o evento fosse filmado e transformado em reality show com muita audiência, topariam até ser crucificados.

Para avaliar uma ação não basta olhar para essa ação. É preciso analisar de onde ela vem, de onde ela parte, o que moveu a pessoa a realizá-la. Se o que move a pessoa é um sentimento pouco saudável, como medo, raiva, inveja, desejo de vingança, rejeição, necessidade de aprovação ou qualquer coisa parecida, não apenas deixa de ser uma boa ação e passa a ser uma ação egoísta, como também tem grandes chances de dar merda.

Faça a sua parte e não aplauda débil mental que arrisca a sua vida e a vida das pessoas que o cercam achando que com isso está ganhando um troféu de herói. Enquanto a sociedade recompensar, esses retardados vão continuar se comportando assim. Tem que aplaudir quem age com consciência, quem faz o que precisa ser feito com responsabilidade, esses sim são merecedores do nosso reconhecimento.

Não basta agir feito um louco, ainda que com um discurso de boas intenções. Em um momento crítico como o que estamos passando, o que torna alguém verdadeiramente especial é manter sua sanidade, seu discernimento, sua consciência. Quem consegue isso é muito mais admirável do que militante emocionado que vai berrar na rua e depois volta para casa cheio de coronavírus.

Saber dar um passo atrás e perceber que, por mais importante que você ache que uma causa é (seja ela militância, seja ela atender um paciente) isso não pode colocar em risco a sua vida e a de terceiros não é egoísmo. É maturidade, equilíbrio emocional e consciência. E é isso que devemos valorizar e aplaudir, pois isso, hoje em dia, é artigo de luxo, está em falta.

Chega dessa geração emocionada, passional e intensa que só faz bosta. Um adulto tem que ter sanidade mental, capacidade de avaliar todas as possibilidades e bancar escolhas trágicas. Sim, pode ser que seja necessário não atender uma pessoa para outras 50 possam ser atendidas, pois a cada profissional de saúde doente dezenas de pacientes ficam desamparados. Lidem com isso. O mundo não é um arco-íris, não dá para salvar tudo e todos sempre.

Dá tristeza ver essa geração incapaz de se frustrar, que quer tudo do jeito que ela acha que tem que ser. As coisas são como elas são, não como você queria que elas fossem. Ignorar a realidade é agir de forma cega, irresponsável e temerária. Muitas vezes a realidade é feia, isso faz parte da vida. Ter estrutura para reconhecer isso e criar os melhores cenários dentro de quadros desfavoráveis merece seu aplaudo. Fazer o que quer fazer por não aceitar as restrições frustrantes que as circunstâncias impõem merece apenas críticas.

Não caiam no conto no herói tupiniquim, que, por um momento de glória, por não aceitar uma frustração, faz cagadas em sequência.

Para dizer que o rei está nu, para dizer que eu estou atacando os médicos que estão tentando salvar vidas ou ainda para dizer que não dá para criticar essas pessoas pois você seria socialmente execrado: sally@desfavor.com

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Comments (10)

  • Sobre querer ser herói, permitam-me parafrasear um discurso famoso do lendário treinador de boxe Cus D’ Amato, que teve sob seu comando lendas do esporte como Floyd Patterson e Mike Tyson. Muita gente do meio pugilístico ainda hoje cita o que D’Amato dizia a seus pupilos: “Qual a diferença entre um herói e um covarde? Não há diferença. Ambos têm medo de morrer e de serem feridos. Mas o covarde é aquele que se recusa a enfrentar o que precisa enfrentar, enquanto que o herói é mais disciplinado, afugenta esses sentimentos de dentro de si e faz o que tem que fazer”.

    Explicando: Todos nós temos “medo de morrer e de sermos feridos (ou de ficarmos doentes). Só que o BM que vai bundear na rua sem necessidade e o médico que mostra em rede social que trabalha sem proteção posando de abnegado e querendo biscoito é o “covarde”, o “que se recusa a enfrentar o que precisa enfrentar” (o isolamento social imposto pela pandemia de Coronavírus e a responsabilidade de tomar todos os cuidados para minorar a propagação da doença). Ao mesmo tempo,quem fica em casa – mesmo que a contragosto – colaborando para que o vírus não se espalhe mais e tenta não piorar uma situação que já é bem ruim é que é o verdadeiro “herói”, por “fazer o que tem que ser feito” (suportar uma rotina muitas vezes tediosa, buscar se adaptar tanto quanto possível e sair só em caso de necessidade procurando estar sempre protegido). Concordam?

  • Eu acho que algumas dessas pessoas que vão aos protestos vão mais para poder sair de casa, tomar um ar, passear e tals, sem a repreensão dos outros, e ainda saindo bem na foto. Não devem nem sabem pelo que estão protestando, o importante é o rolê.

  • Querida Sally,

    Antes de mais nada espero que vocês estejam bem. Eu concordo com você em princípio, mas gostaria de adicionar dois elementos à discussão.

    1. O desenvolvimento dessas questões não é dicotômico, preto no branco. Há inúmeros matizes, técnicos e éticos. Um exemplo claro é que profissionais de saúde trabalham com níveis de proteção e de contenção. Você pode não estar trabalhando com o nível adequado de acordo com os padrões internacionais (Brasil inteiro em todos os laboratórios), mas pode trabalhar em condições de risco aceitável. Cada caso é um caso, e geralmente essa “conta” é feita considerando inúmeros fatores. Vale lembrar que, embora o coronavirus seja uma desgraça, ele não é de longe o patógeno mais mortal nem o mais prevalente que a maioria dos medicos plantonistas encontra ao longo de sua carreira profissional. Enfim, essa é uma discussão longa e técnica, e tenho razões para acreditar que a maioria dos médicos, mesmo em condições muito precárias, sabe o que está fazendo. Evidentemente o exemplo extremo que você colocou é reprovável.

    2. O pensamento humano não é completamente hierárquico. Ele é até certo ponto, mas em questões complexas, há fatores que CONCORREM para uma decisão, com diferentes pesos. Essa é uma questão muito interessante, por que está relacionada diretamente à estrutura do nosso sistema nervoso. Outros organismos não tem esse problema, e vivem suas vidas muito bem baseados em decisões hierárquicas e dicotômicas. Mas até uma bactéria diferencia matizes e integra sinais antes de “decidir” ir para um lado ou para o outro.

    Boa parte da burrice generalizada atual pode ser contemplada nessas duas categorias de simplificação do pensamento: redução a extremos com perda dos matizes e probabilidades; e hierarquização sumária de processos decisórios.

    Enfim, espero ter entretido você por alguns minutos, e que todos estejam bem de saúde. Um grande abraço!

    • Estamos todos bem, felizmente (e em parte, graças ao seu conselho, que foi crucial)

      Eu entendo quem atende a um paciente com uma máscara que não é a N95, eu entendo quem faz um Face Shield em casa e vai trabalhar com ele pois falta EPI em seu local de trabalho. Mas saco de lixo é foda. Amarrar saco de lixo no corpo e na cabeça é um grau de risco inaceitável e a pessoa que não pode perceber isso não é altruísta, é uma pessoa incapaz de avaliar riscos. Eu tenho muito medo de gente que não sabe avaliar riscos.

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