Ouvido absoluto.

É uma forma diferente de interpretar informações sonoras. A pessoa não escuta uma sirene ou um miado de um gato, ela escuta notas musicais. Todo e qualquer som é automaticamente classificado como seu correspondente na escala musical, sem qualquer esforço. Desfavor Explica: ouvido absoluto.

“Ouvido absoluto” é a capacidade de reconhecer e dar nome às notas musicais de qualquer som sem ter nenhuma referência anterior.

Pessoas comuns, com ouvidos relativos, escutam sons indefinidos (uma campainha tocando, um garfo caindo no chão, um passarinho cantando). Pessoas com ouvido absoluto escutam notas musicais, sabem identificar em cada som a nota musical correspondente. Não estamos falando apenas de músicas, mas qualquer ruído do dia a dia é facilmente classificado: uma chave cai no chão, um gato mia, uma buzina toca e, automaticamente, a pessoa sabe dizer em qual afinação isso aconteceu.

Reconhecer a afinação ou as notas musicais é relativamente fácil para um ouvido treinado quando há alguma referência. Exemplo: alguém toca um “dó” no piano e depois, com essa memória auditiva ainda fresca, a pessoa identifica um outro som em dó no seu entorno. É usando essa premissa que se afinam instrumentos: você escuta o som que deveria estar lá e adequa o instrumento ao som que deveria estar lá. Porém perceber uma nota musical em um som aleatório sem qualquer referência é muito, mas muito difícil.

Mesmo com muito conhecimento em música, a regra é que pessoas comuns (com ouvido relativo) precisem de uma referência para identificar notas musicais. É preciso que a nota que se quer identificar (ou alguma outra que sirva como parâmetro) seja tocada, para que esse som seja comparado com o outro som que será analisado. Assim, tendo uma referência, é possível estabelecer uma relação entre elas: se é igual à nota tocada, se é mais aguda, se é mais grave, etc.

Não raro, estas pessoas chegam a verbalizar quando escutam o ruído. Uma chave cai no chão e a pessoa diz “fá sustenido”. É um mecanismo quase automático, a pessoa simplesmente sabe classificar o som, a pessoa decodifica sons em notas musicais de forma involuntária.

Seria mais ou menos equivalente à nossa habilidade em dizer a cor de um objeto olhando para ele. Se eu te dou uma bola verde e te pergunto a cor, você não precisa olhar antes para outra bola verde ou para uma bola vermelha, para me dizer qual é a cor, certo? Pessoas com ouvido absoluto reagem da mesma forma no que diz respeito a notas musicais.

Não é uma habilidade muito comum, apenas uma em cada dez mil pessoas nascem com ela, o que corresponder a aproximadamente 0,01% da população. Por razões ainda desconhecidas, autistas e savants (personagem do filme “Rain Man”) possuem uma alta incidência de ouvido absoluto, cerca de 1 a cada 20.

Ainda não se tem total compreensão do que “causa” , tudo que se sabe é que existem boas chances de que ele seja hereditário e que quanto mais cedo uma pessoa receber educação musical (preferencialmente na infância, entre os 2 e os 5 anos de idade), maiores as chances desse “dom” aflorar.

Apesar do nome, o que diferencia alguém com ouvido absoluto do resto do mundo não está no ouvido em si: a estrutura auditiva de quem tem ouvido absoluto ou relativo é exatamente igual. A mágica se dá no cérebro. É uma habilidade ligada à cognição. Pessoas com essa habilidade possuem mais capacidade de receber e interpretar estímulos do lado esquerdo do cérebro, onde os sons são processados.

Uma experiência recente reforçou esse entendimento. Usaram máquinas de Ressonância Magnética para analisar a estrutura e a atividade cerebral de três grupos de voluntários: músicos com o ouvido absoluto, músicos que desenvolveram a habilidade de reconhecer notas musicais com muito treino e pessoas sem qualquer treinamento musical.

Os exames mostraram que o cérebro dos músicos muito bem treinados que desenvolveram o reconhecimento das notas musicais e dos leigos era praticamente igual. Mas, o cérebro dos que tinham ouvido absoluto desde que nasceram era bem diferente. Nestes cérebros a parte responsável por interpretar a música (papo técnico: córtex auditivo) era bem maior e funcionava de forma mais intensa interpretando os sons. Isso indica que é algo que vem de fábrica.

Porém, para que esse dom seja percebido, é preciso que a criança tenha algum entendimento sobre música, daí a importância da educação musical. Se a criança não sabe o que é um “ré”, não vai saber reconhecê-lo quando ele for escutado. Uma vez que a criança é introduzida no mundo da música, uma vez que as notas/afinação lhe são apresentadas, ela ganha as ferramentas que precisa para dar nome ao que ela está reconhecendo.

Isso quer dizer que se você nunca estudou música, é possível que tenha ouvido absoluto e nem ao menos saiba. Não se preocupe, não é algo que “se perca” pelo não uso, nunca é tarde para descobrir esse dom e tirar proveito do que ele pode te proporcionar. Hoje é ainda mais fácil, já que qualquer pessoa pode ter acesso a aulas de música gratuitas na internet.

Não existe nenhum sinal muito claro para identificar uma criança com ouvido absoluto. Pode acontecer delas gostarem especialmente de sons, músicas e terem uma facilidade maior para se expressar musicalmente (ex: reproduz com facilidade uma canção que escutou). Por ser algo que flui sem esforço, é comum que crianças com ouvido absoluto gostem de atividades musicais.

Grandes nomes da música mundial, como Mozart, Beethoven e Chopin foram agraciados com essa habilidade. Entre os músicos, 4 em cada 100 tem ouvido absoluto. Isso acontece, em parte, pela afinidade e facilidade que essas pessoas têm com a música, mas também pelo treino.

É como se você tivesse uma habilidade fora de série para dirigir um carro: se você nunca tiver um carro não vai descobrir. Se você dirigir pouco, talvez também não. Se você dirigir muito, tiver que passar por várias situações, aí seu dom saltará aos olhos, pois você se sairá muito bem, mesmo nas mais difíceis, sem o muito esforço.

O dom vem de fábrica, mas, quanto mais treino, mais se refina este dom e mais se aprende a utilizá-lo no seu dia a dia. Não é à toa que o ouvido absoluto é mais comum em países cujo significado das palavras dependem de sutilezas dos sons (papo técnico: fonemas) utilizados.

Exemplo: em algumas línguas, uma vogal mais aberta ou mais fechada pode mudar completamente o significado da palavra. Idiomas com pronúncias complexas, como o chinês e o vietnamita, obrigam a apurar a escuta. Curiosamente em países com essa sutileza há mais pessoas com ouvido absoluto, desde que as crianças tenham sido criadas no local e falando esse idioma. Filhos criados em outros países, que não exercitam tanto o idioma, tem menos incidência de ouvido absoluto. Daí se vê que um ouvido absoluto em pleno funcionamento é, provavelmente, resultado de genética + prática.

Talvez por isso, pessoas com ouvido absoluto também tem mais aptidão para idiomas. Normalmente nós estamos condicionados aos fonemas existentes em nosso idioma natal, de tal forma que temos muita dificuldade em pronunciar ou sequer reconhecemos outros. Muitas vezes não se trata de não conseguir reproduzir o som e sim de nem sequer perceber a diferença entre uma forma de pronunciar e a outra.

Faça um teste simples e peça para um argentino repetir a frase “cair no poço não posso”. Ele não vai conseguir, pois em seu idioma natal não existe um fonema equivalente ao “o” de poço, aquele “o” com acento circunflexo (papo não-técnico: chapeuzinho). É provável que a pessoa repita “cair no póço não pósso” sem nem perceber que havia uma diferença entre os dois ou achando que está conseguindo reproduzir essa diferença.

Português é um idioma do demo, tem 31 fonemas diferentes, enquanto eles estão acostumados apenas a 22. E, se você, assim como eu, é argentino e quiser devolver na mesma moeda, peça para um brasileiro pronunciar “traje rojo”. O fonema do “j” é algo que eles desconhecem e é muito engraçado vê-los tentando pronunciar. Juram que acertam, mas parece que estão tendo um AVC, emitindo um som que não chega nem perto.

Fato é que nós, reles mortais (com ouvido relativo), depois de adultos, temos muita dificuldade em reconhecer e reproduzir fonemas para os quais não fomos treinados. Por isso quase sempre que se aprende a falar um idioma na idade adulta, fica sempre um sotaque que te denuncia. O mesmo vale para o treinamento do ouvido absoluto: quem tem contato com educação musical desde cedo aprende e se familiariza com as notas musicais com muito mais facilidade e leva isso consigo para o resto da vida.

Mas, não é apenas aos músicos que esse dom favorece, ele pode ser aplicado em muitas outras áreas também. Só para citar um entre muitos exemplos, o ouvido absoluto poupou muito tempo ao entomólogo finlandês Olavi Sotavalta. Ele que classificou insetos conforme o zumbido (papo técnico: frequência do bater de asas) que fazem quando voam, se baseando na afinação do zumbido. Para classificar os tipos de insetos que havia em qualquer meio ambiente ele não precisava caçá-los e estudá-los, bastava ir ao local e ficar “escutando” quem passava por ali.

Em uma classificação bem básica, o ouvido absoluto pode ser dividido em dois tipos: ouvido absoluto passivo e ouvido absoluto ativo. No ouvido absoluto passivo a pessoa consegue reconhecer qualquer som, no ativo, além de reconhecer qualquer som, a pessoa também consegue reproduzir (cantar) qualquer nota solicitada sem que lhe seja dada qualquer referência para ela se basear.

Mas, nem tudo são flores. Apesar de abrir várias portas, o ouvido absoluto também pode gerar algum desconforto. Pela forma como o cérebro interpreta ou visualiza os sons na cabeça dessas pessoas, se você tocar uma melodia conhecida em um tom diferente do habitual, pode gerar extremos desconforto. É como se alguém te servisse uma banana azul: tem algo errado ali, algo que te provoca desconfiança e desconforto.

Talvez por isso, muitos artistas famosos com ouvido absoluto tinham fama de serem chatos e perfeccionistas. Algo fora do tom para essas pessoas pode ser um verdadeiro tormento. Michael Jackson, Frank Sinatra e Jimi Hendrix, só para citar alguns exemplos, exigiam de sua equipe um padrão de excelência bem acima do normal.

Por fim, vale lembrar que ouvido absoluto não é nenhum requisito essencial para ser um bom músico. É apenas um facilitador. Se você veio com esse opcional de fábrica, que bom, desenvolva e seja feliz. Se não, tá tudo bem, isso não vai te impedir de nada.

Curioso para saber se você tem ouvido absoluto? Existem muitos testes para fazer online, que medem de forma amadora sua aptidão a reconhecer notas musicais. Faça um e descubra!

Para dizer que tem ouvido zerado, para dizer que quem tem ouvido absoluto no Brasil morre de desgosto de tanta musica ruim ou ainda para dizer que independente de ouvido quem trabalha com musica passa fome: sally@desfavor.com

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Comments (13)

  • Já tinha ouvido falar muitas vezes em ouvido absoluto, mas confesso que nunca tinha me dado ao trabalho de pesquisar mais. Por isso, gostei de ver tanta informação condensada aqui. Pelo pouco que eu sabia, imaginava mesmo que tal habilidade fosse mesmo um fenômeno raro, mas não acreditava que fosse assim tão prevalente entre autistas. E, Sally, eu também achei bacana essa relação que você fez no texto entre o ouvido absoluto e a capacidade que certas pessoas têm de captarem sons de outros idiomas que não sejam o seu nativo.

    O meu caso, no entanto, é um pouco diferente. Não sou capaz de identificar notas musicais à primeira vista – ou à primeira escutada – e tampouco consegui melhorar nisso com treino. Mas às vezes consigo deduzir em que idioma gringos conversam entre si perto de mim ou vendo-os pela TV. Eu disse “às vezes” porque essa minha “capacidade especial” me parece só funcionar com alguns idiomas ocidentais, ainda que eu nunca os tenha estudado realmente. Posso não saber dizer sobre o que estão falando, mas algumas poucas palavras mais familiares que me soam mais claras em meio a um discurso ininteligível, ou mesmo o próprio ritmo da fala dessas pessoas ou até alguns poucos sons característicos já me permitem tentar advinhar em que idioma uma conversa entre estrangeiros está sendo travada.

  • Tema bem interessante esse! Muita gente acha que eu tenho ouvido absoluto, só porque estudei piano desde os 5 anos de idade, fiz conservatório, me graduei em música etc etc, mas não é bem assim. Consigo identificar com facilidade notas soltas e acordes, e dizer se são maiores, menores, diminutos, aumentados, com 7a… Mas isso veio com o tempo, e com muito treino. Eu tenho o ouvido quase absoluto, ou dizendo em outros termos, ouvido relativo mesmo, mas muito bem treinado.

    Outro fato interessante: eu, com ouvido bem treinado, consigo identificar determinada tonalidade e tocar/cantar a partir dali, mas tendo uma referência antes. Exemplo: pra cantar em fá maior, eu sempre peço a nota si bemol, daí consigo me localizar. Quem tem ouvido absoluto – já vi isso acontecer de perto – consegue simplesmente cantar em fá maior sem precisar de referência nenhuma! É fantástico!

    Um aspecto interessante a se destacar é justamente sobre a forma com quem tem ouvido absoluto percebe os sons. Digamos que eu tenha lá um acorde – um conjunto de notas tocadas ao mesmo tempo: quem tem ouvido relativo vai perceber a “nuance” do conjunto, a beleza das 3 ou 4 notas sendo tocadas ao mesmo tempo e produzindo uma “textura” harmônica. Já quem tem ouvido absoluto não vai perceber a beleza do conjunto, não vai perceber a nuance, vai perceber apenas as 3 ou 4 notas em separado. Isso certamente causa lá algum desconforto quando o ouvido absoluto se depara com acordes dissonantes, diminutos e aumentados no jazz, por exemplo.

    E sim, ouvido absoluto pode ser interessante em alguns casos, mas bem chato em outros, quando o músico é extremamente exigente.

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