Projeto de poder.

Quase todo presidente que cumpriu seu mandato tem uma montagem do seu rosto ao entrar no governo e uma ao sair. Normalmente a primeira demonstra força e confiança, e a segunda uma face quase que irreconhecível de tão envelhecida e abatida. Especialmente se tiver sido reeleito uma vez durante esse processo. Oito anos não costumam mudar tanto assim a imagem de uma pessoa de meia-idade, mas parecem destruidores para quem assume o cargo mais poderoso de um país…

Poucas profissões no mundo oferecem tanto poder e mordomia como o chefe do Executivo num país democrático, normalmente quem consegue chegar lá sai muito mais rico que entrou, mesmo que não seja corrupto. Da noite para o dia, você ganha uma influência gigantesca e seu tempo começa a valer ouro, evidente que isso acaba se transformando em dinheiro. Se você quer dinheiro e poder pelo resto da vida, a presidência é um caminho testado e aprovado. Então, por que quase todo presidente sai tão acabado do cargo?

Independentemente das condições do país que assume, o presidente – ou qualquer outro cargo de grande poder – se vê diante de uma complexa rede de interesses e estruturas de poder já estabelecidas que se provam imensamente cansativas de gerenciar. É claro que você consegue exercer sua vontade pessoal como quase qualquer outra pessoa no país sequer pode sonhar em fazer, mas existem limites (legais ou não) e preços a se pagar (legais… ou não) por isso.

Um ser humano sozinho não é capaz de cuidar de um país, nem mesmo um bairro. O presidente, ditador ou rei ainda são pessoas, não podem oferecer sozinhos os serviços que uma sociedade precisa para funcionar. Você pode ditar qual o tratamento médico quer ver aplicado no seu povo, mas depende de uma imensa estrutura de burocratas, técnicos e profissionais da saúde para fazer isso acontecer. Na prática é uma posição gerencial: você manda outras pessoas fazerem as coisas por você, e não consegue cuidar de todos os detalhes da aplicação da sua vontade.

Mas quando você tem um poder tão grande, gerenciando um país inteiro, as coisas vão bem além de motivar sua equipe. No dia a dia, você basicamente não existe para boa parte da população: as vidas seguem com você estampado em fotos e vídeos na imprensa, muito mais uma imagem do que propriamente uma pessoa. O elemento central de poder de um governante é seu controle sobre o dinheiro do país. Ajuda bastante ter a confiança e a simpatia do seu povo, mas é a sua capacidade de gerir e distribuir recursos públicos que realmente define seu poder.

Um presidente pode ser imensamente popular e não conseguir fazer sua vontade, um presidente pode ser detestado pelo povo e moldar o futuro de gerações. Tudo baseado em sua capacidade de lidar com as verbas públicas alimentadas pelos impostos. Tanto que se você parar para pensar, o sistema todo se organiza ao redor disso: qualquer governo precisa de quem colete impostos e de quem proteja esses recursos. O tal do “monopólio da força” do Estado – a ideia de que só o governo pode usar violência para impor sua vontade – não é exatamente para evitar que você bata no amiguinho, é para garantir que ninguém possa impedir o fluxo de dinheiro para os cofres públicos. Porque quando isso acontece, cabeças rolam. Especialmente as cabeças que estão no poder.

Claro que isso não é uma ideologia indiscutível: tem gente que prega o fim do Estado e não diferencia pagamento de impostos de roubo, especialmente considerando que o Estado pode apontar uma arma para você e exigir seu dinheiro, mas até o momento que escrevo este texto, virtualmente todos os sistemas de poder do mundo usam exatamente esse modelo de governar através dos cofres públicos. Democracias, ditaduras, teocracias e monarquias são basicamente máquinas de captar impostos, não importa o discurso que apliquem ao exercer essa função.

E quando você entende isso, começa a entender o porquê de tantas fotos de presidentes acabados ao final de seus mandatos. O trabalho é basicamente se manter no poder através do gerenciamento dos recursos públicos. Sim, você pode fazer grandes mudanças, desde que não perca sua capacidade de pagar as pessoas que permitem que você tenha esse poder. Por mais que presidentes tenham um grande poder de influenciar com elogios e medalhas, é a cereja de um bolo de dinheiro.

E eu ainda nem entrei no mérito da corrupção: boa parte desse processo é legalizado. O líder de uma nação direciona recursos para a manutenção de diversas instituições. Suas preferências definem quem funciona corretamente e quem fica abandonado. Todo mundo precisa de recursos. Seja para pagar salários, seja para comprar equipamentos ou tocar obras, cada um dos pilares de sustentação de um governo precisa ser alimentado constantemente, tudo isso enquanto eles disputam por atenção e preferência.

Se você consegue manter o dinheiro fluindo para as pessoas que trabalham para você, elas conseguem manter o dinheiro fluindo para as que trabalham para elas. Cada nível do poder tem seu próprio grupo de pilares de sustentação. O presidente precisa ajudar o governador a controlar seus prefeitos. O gerente não sobrevive sem seus técnicos, o capitão precisa da lealdade de seus soldados… e para que tudo isso funcione, um presidente precisa lidar basicamente com todos os interesses de um país ao mesmo tempo. Uma insatisfação na rua de casa pode virar uma bola de neve que acaba em avalanche na cabeça do presidente.

De uma forma ou de outra, todos os que já passaram pelo cargo dizem que é muito mais difícil que parece. E suas expressões derrotadas nos finais dos mandatos são provas disso. Evidente que a sua empatia deve ter limites: ninguém é obrigado a ser presidente. É uma escolha que normalmente depende de uma vida de preparação. Se não estava pronto para esse grau de pressão, não estava prestando atenção durante o caminho até o cargo. Um presidente deve ser um negociador de altíssimo calibre, capaz de tomar decisões difíceis e manter uma média saudável entre pessoas satisfeitas com suas decisões e cabeças pisadas no caminho. Não dá para agradar todo mundo, mas dá para agradar as pessoas que te permitem continuar no cargo.

E por incrível que pareça, isso não é tão diferente assim para um ditador. Sim, eles tendem a durar mais quando conseguem chegar ao poder, mas não é exatamente por ser algo mais fácil de fazer. O poder de um ditador é mais limitado do que parece: sem o apoio de pelo menos um exército mais poderoso que qualquer concorrência local, não é possível se manter no poder. E por mais que ideologia conte, não é ela que paga as contas. Toda ditadura ou monarquia absolutista acaba com uma classe muito privilegiada de “amigos do rei”, mesmo em revoluções comunistas. Alguém ainda precisa projetar o poder do líder autoritário nas ruas do país, e isso nunca é feito de graça.

Ditadores podem se dar ao luxo de reduzir o número de pilares de sustentação para simplificar o processo, mas nunca os eliminar totalmente. O grande líder ainda é um humano e sangra. Assim que as coisas ficarem difíceis para as pessoas que sustentam esse poder, elas começam a sussurrar pelos corredores do castelo. Nada assusta mais uma dessas pessoas do que perder o poder que conquistaram: não há garantias que um novo ditador queira seus serviços. Então, a classe privilegiada está sempre tentando se adiantar a qualquer surpresa. Se o líder parece forte, eles seguem seus trabalhos, mas se sentem qualquer fraqueza, começam a tramar uma substituição.

Não que os esquemas e artimanhas do processo democráticos sejam tão diferentes assim, mas um político que vê o presidente perdendo apoio pode se realinhar no futuro com quem ganhar a próxima eleição, ou mesmo ficar na oposição por um tempo. O dinheiro continua fluindo, e é mais questão de ter os contatos certos do que a simpatia do governante da vez. Numa ditadura isso é mais perigoso: o risco de ser executado pelo novo ditador é parte integrante do trabalho. Os pilares de um governo autoritário estão sempre lutando pela própria vida, ao invés de mais financiamento para suas bases de poder como na democracia.

Não existe poder solitário. O que existe é a compreensão de muita gente que estar no posto de comando de um país é estressante demais para as vantagens que oferece. Boa parte da elite mundial está contente em trabalhar nos bastidores e não chamar muita atenção. Cuidam de seus negócios e influenciam os tolos que buscam os holofotes. O trabalho deles também é gerenciar recursos, mas de forma muito mais segura que qualquer detentor de cargo público. Existe muita estabilidade na obscuridade. Dois fatores basicamente impossíveis para um presidente, ditador, monarca…

E com tanta atenção, vem também uma imensa dificuldade de governar por ideal: suas ações recebem um escrutínio constante, e tudo o que você diz e faz respinga nos pilares do seu poder. Então, no sentido oposto, todas suas ações precisam ser no mínimo toleráveis por essas pessoas e as pessoas que as sustentam nos cargos. Deputados dificilmente votam pautas impopulares se não tiverem muita confiança que vão sobreviver à ira de sua base de eleitores. Você pode conversar com gente que te apoiaria numa medida se dependessem deles mesmos, mas não podem porque perderiam financiamento de campanha ou votos de uma maioria semianalfabeta que os elegem a cada quatro anos. Quanto mais barulho o presidente faz, mais gente começa a olhar para esses pilares. De perto, ninguém é normal; de perto, nenhum político é honesto.

E se dissolver o Congresso e partir para o autoritarismo descarado, não é como se os problemas desaparecessem: o povo não pode te tirar dali, mas sua insatisfação gera um país cada vez menos produtivo, reduzindo o dinheiro disponível e tornando seus apoiadores menos fiéis. Percebam que quase todas as ditaduras de longa duração são baseadas em exploração de recursos naturais. Se você tem petróleo, ouro ou outro tipo de produto de exportação que não depende da economia local, tem de onde tirar o dinheiro para pagar seus soldados e burocratas. E não, a União Soviética não foi exceção: até hoje a Rússia depende muito da exploração de gás natural para vender na Europa, e as ditaduras que se estabeleceram ao redor também são financiadas assim.

Não tem atalho, não tem mágica. Se manter no poder é uma das coisas mais difíceis do mundo, gerenciando recursos e fidelidades de gente que pode te devorar a qualquer momento. Com certeza tem suas vantagens, mas acredito que para a imensa maioria das pessoas, não valha a pena. Como sempre, a melhor combinação do mundo é riqueza e discrição. O resto é concessão…

Para dizer que esse texto chegou alguns anos atrasado, para dizer que estou desmotivando a concorrência, ou mesmo para dizer que agora tudo faz sentido: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • O Lula envelheceu só se for por causa das cachaças, porque meteu a mão em tudo. Por isso não bebo cachaças, pra não ficar igual ao Lula. Bom desse blog é poder xingar os outros e o PT nem pode meter processo. Pé de cana!

  • Você e a Sally são ditadores na RID há mais de dez anos. Estão com essa cara de “onde é que eu fui amarrar o meu jegue?!”

  • Profissao Vampiresca, suga toda energia das pessoas envolvidas, ter que conviver com criaturas em estado animalesco nao e facil, tem que se proteger com arruda ou muita reza.

  • “Se você tem petróleo, ouro ou outro tipo de produto de exportação que não depende da economia local, tem de onde tirar o dinheiro para pagar seus soldados e burocratas.”
    O q explica Cuba ? Pelo q sei não tem nada além da aproximadamente com EUA, seus médicos baratos e gente q foge mas envia dinheiro para a ilha.

    • Cuba era sustentada pela União Soviética, pela posição estratégica e pelo potencial de propaganda. Essa conta era paga de fora para dentro. Nas últimas décadas, a ditadura pode se apoiar numa população mais ou menos pacificada por essa ajuda inicial e no fato de ser um país minúsculo. Por melhores que sejam os índices deles, a conta vai chegar…

  • Sobre impostos. A inviabilização da propriedade privada mediante o aumento progressivo dos impostos continua de vento em popa. O principal exemplo disto é o IPTU. Em breve, muita gente acabará tendo que vender sua casa para pagar pelo direito de possuí-la. Não é mais IPTU: é aluguel!

    Hilda Hilst, ao falecer, devia mais de 500 mil reais de IPTU. A dívida foi abalando pouco a pouco seu equilíbrio emocional. Paulo Francis, também falecido, também foi sugado pelo processo movido contra ele pela Petrobras: US$100 milhões.
    Esses casos parecem distintos, mas não são. É o Estado indo com tudo para cima de um cidadão indefeso.
    É um absurdo. Estamos alugando “nossas” propriedades do Estado, que vai engolindo tudo. A tal gentrificação… Você compra uma casa no fim do mundo porque ali ela é mais barata e o ambiente é mais tranqüilo, desprovido de prédios. Então os vereadores, com um empurrão de seus camaradas empreiteiros, modificam o plano diretor: aí fodeu, o IPTU vai pro espaço.

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