Disputa infectada.

Como comemorar o Dia do Nerd no ano da pandemia? Falando de doença! Mas nada de falar do vírus da moda, que isso não combina com a data. Nesta semana, só doenças contagiosas que causaram o caos na humanidade. E para começar bem, Sally e Somir escolheram duas delas para defender. Os impopulares se infectam pelos argumentos.

Tema de hoje: qual doença é pior historicamente, HIV ou Cólera?

SOMIR

HIV, também conhecida como AIDS. A Síndrome da Imunodeficiência Humana é uma doença transmissível através de fluídos corporais que incapacita o organismo de se defender de outras doenças. A descrição já deveria ser suficiente para estabelecer o tamanho do problema. O HIV é uma metadoença, por assim dizer: o grande perigo dela não é o que vírus faz diretamente, mas como ele enfraquece terrivelmente seu organismo contra a tonelada de outras doenças que nos cercam diariamente.

Ou, num exemplo mais visual, o HIV não é o trem que passa sobre você, mas o vilão que te amarra nos trilhos. E apesar de alguns resultados animadores de tratamentos nos últimos anos, não há comprovação que exista cura para a doença. Até segunda ordem, pegou HIV, morreu com HIV. A Cólera, apesar de ser uma adversária de valor, é uma doença curável. Mesmo em tempos onde colocar sanguessugas na pele era considerado tratamento médico, pessoas sobreviviam à Cólera e continuavam sua vida sem sequelas.

Então, vou repetir: pegou HIV, morreu com HIV. A doença não evolui necessariamente para uma fase mortal nos dias atuais, pela disponibilidade de tratamentos. Isso permite que muita gente morra por diversos outros motivos não relacionados ao HIV, mas o vírus está lá até o último suspiro delas. Sim, o tratamento da doença melhorou muito nos últimos anos, mas você vai entender como não tem comparação se eu te fizer uma pergunta: se você tivesse que pegar Cólera ou HIV agora, qual escolheria?

Ninguém quer passar o resto da vida preocupado com isso. Quando você se torna soropositivo, tem que tomar remédio para sempre. E isso vai influenciar nas suas relações dali pra frente. Claro que tem gente que vai aceitar ficar com você mesmo sabendo que você tem o vírus, mas o tamanho do seu público-alvo diminui imensamente. Você tem uma doença transmissível que a maioria absoluta das pessoas não quer nem arriscar pegar.

As coisas parecem melhores hoje em dia, e do ponto de vista da medicina, estão mesmo: os tratamentos foram bem testados e se provaram muito eficientes. Tem muita gente por aí vivendo com HIV positivo que você provavelmente nem desconfia. Mas isso é uma parte do problema mais global que eu vou estabelecer aqui: especialmente nas gerações mais recentes, o HIV começou a parecer algo bem menos preocupante. E isso tem consequências: quando o medo diminui, a vigilância idem.

Então, para refrescar a memória da maioria: há 20 anos atrás, a AIDS era a principal causa de morte de pessoas entre 15 e 59 anos no mundo. E isso num tempo onde o tratamento – se não tão eficiente quanto o atual – já existia. Bem depois também do pânico que tomou o mundo entre os anos 80 e 90. As pessoas já sabiam da doença e já tinham medo dela quando atingimos o pico de mortes. Até 2018, foram mais de 30 milhões de mortes relacionadas à doença. E como a doença não mata diretamente, posso dizer sem medo que foram 30 milhões de mortes sofridas: definhando lentamente enquanto o corpo não consegue lutar pela sobrevivência.

Hoje em dia, algo em torno de 40 milhões de pessoas ao redor do mundo que carregam a doença. Não acabou com o mundo, mas enfiou suas garras bem fundo na história da humanidade. Não há vacina, não há cura completa. Mas, como o tratamento aparentemente consegue manter as pessoas vivas e até mesmo saudáveis por décadas, a preocupação com o HIV foi se tornando cada vez mais secundária. Aposto que muita gente aqui acha que é doença de africano, e embora a maioria dos casos tenha ficado por lá mesmo, mais 850 mil pessoas a tem aqui mesmo no Brasil.

Para muita gente, é quase como uma lenda urbana, ouviu falar de alguém que tem, mas dificilmente convive com alguém que tenha o vírus. Ou pelo menos acha que não convive: como eu já disse, o tratamento atual tem muito sucesso em dar uma vida praticamente normal para os infectados. É aqui que a armadilha começa a se formar. A AIDS já mexeu muito com a forma como a humanidade lida com a sexualidade: camisinha era coisa de quem queria evitar pegar sífilis de prostituta, foi a pílula que baixou as taxas de natalidade mundiais. Agora é algo que faz parte do dia a dia de muita gente. É quase que automático usar.

Tão automático que muita gente esquece que foi o HIV que tornou isso um hábito. Não é à toa que entre a popularização da pílula anticoncepcional e o estabelecimento da pandemia de AIDS, tenhamos passado por uma era de liberação sexual: as pessoas estavam dispostas a arriscar boa parte das doenças sexualmente transmissíveis se tivesse outra forma de evitar a gravidez. E nada sugere que isso tenha mudado, quem segura o uso de camisinhas hoje em dia ainda é a AIDS, mas, o que acontece quando geração após geração as pessoas vão achando a doença cada vez menos assustadora?

Os números de novos infectados caem há vários anos, mas ainda há gente suficiente com o vírus para presumir que não estamos nem perto de erradicar a doença. A OMS considera a pandemia sob controle, e só. Também porque essas estatísticas podem enganar: embora o surto aparentemente incontrolável na África tenha cedido, outros países estão notando aumentos pontuais do número de infectados. Então, embora no quadro geral estejamos vendo um declínio, isso é em comparação com um pico absurdo de casos no começo dos anos 2000. Em países onde a vigilância está mais amena vemos cada vez mais comportamentos de risco.

E tem um vespeiro para mexer aqui: a doença tem uma representação muito desproporcional entre homossexuais. Existem diversos motivos para isso, a maioria tem a ver com comportamentos promíscuos de certos indivíduos, mas não deixa de ser verdade. O problema é o ambiente cultural atual, qualquer tipo de campanha voltada para esse público tem que pisar em ovos (trocadilho não intencional) para não gerar uma reação raivosa de ativistas em busca da próxima dose de polêmica. Não é um bom momento para separar o público homossexual em qualquer campanha que não seja de valorização… e isso pode diminuir a eficácia do controle da doença, especialmente nos países mais civilizados.

Mas… o tratamento existe, pra que tanto drama? Porque é um vírus. Um que não conseguimos eliminar de vez mesmo tentando muito há quase quatro décadas. Vírus podem sofrer mutações inesperadas, aumentando sua agressividade ou ficando mais resistentes ao tratamento. Outro vírus que ainda desconhecemos pode ter uma interação perigosa com o HIV, alguma tecnologia ou substância que se torne popular no futuro pode desencadear uma reação negativa… não sabemos. A AIDS não perdeu a guerra, ela está que nem a Coreia do Norte: num armistício sem prazo para acabar.

Já causou um estrago muito maior que provavelmente você se lembra, já mexeu com a mente da humanidade de formas perigosas e ainda está presente em milhões de pessoas. Sabemos que a Cólera é perigosa e vamos continuar preocupados com ela por muito tempo ainda, mas a AIDS já provou que veio pra ficar e que vai saber esperar até ficarmos distraídos.

Para dizer que não sabe se o Cazuza e o Renato Russo compensam o Freddie Mercury, para dizer que só tem AIDS quem faz teste, ou mesmo para dizer que outra doença é pior (leia o enunciado): somir@desfavor.com

SALLY

No saldo geral, qual doença foi a pior epidemia para a humanidade: cólera ou HIV?

Cólera. Seja pela forma de contágio, seja pela indignidade que a doença proporciona, seja pelo número de mortos que causou.

Normalmente em uma briga entre vírus x bactéria, eu tenderia a dizer que o vírus é pior, basicamente por mutar muito rápido impedindo a vacina, o que, por sinal, é o caso do HIV. Mas a cólera conquistou outro patamar, pelos estragos que vem fazendo na humanidade há mais de um século.

A primeira pandemia de cólera que se tem notícias foi em 1817, mas não foi a única. De tempos em tempos ela volta. Graças a esse efeito cíclico de ir e vir, provocando epidemias em diversos momentos, a cólera ainda é considerada uma pandemia. O Brasil, por exemplo, já teve vários surtos da doença. Ela ainda está presente em diversos pontos do planeta.

É uma doença indigna, que se espalha rápido e fácil e leva a uma morte horrível. A bactéria que causa a cólera se aloja no intestino humano e elimina uma toxina que provoca uma diarreia intensa. Há relatos de pessoas que cagaram até morrer, que morreram cagando sangue. Não vejo como qualquer doença pode competir com esse grau de indignidade.

É relativamente fácil pegar cólera: basta entrar em contato com água ou alimentos contaminados, ou seja, só de comer fora de casa ou pedir um delivery, o risco já existe. A menos que você prepare absolutamente tudo que põe na boca, há um risco, ainda que pequeno, de eventualmente se contaminar.

Até existe uma vacina, mas é de baixa eficiência (cerca de 50% de imunização). Tem tratamento, à base de antibióticos, mas é preciso que seja detectada de forma rápida, caso contrário pode não dar tempo de tratar. Em um dos surtos, em 1929, a ferocidade da doença foi tal que matou a maioria dos doentes em um único dia. Morte rápida e indigna.

HIV também fez um grande estrago, mas por algumas décadas. Hoje, não se morre mais de HIV, a menos que o paciente seja muito negligente. Mas ainda morre muita gente de cólera. Só para citar um exemplo recente, em 2019 morreram mais de 40 mil pessoas só no Haiti por causa da doença.

Historicamente falando, os estragos causados pela cólera foram enormes, e não apenas em republiquetas africanas ou da América Central. No final século XIX, quando o Japão resolveu reabrir os portos para comércio, um doente vindo a bordo de um navio americano começou um surto que levou à morte de três milhões de pessoas no país.

Pela rapidez com que pode matar e pela morte horrível que proporciona, a cólera também causou um dano colateral à humanidade: violentas revoltas populares contra estrangeiros, que poderiam estar trazendo a doença.

Em 1832 habitantes de países como Inglaterra, França e Alemanha perseguiram e mataram estrangeiros com medo de que eles pudessem disseminar a doença. Além disso depredaram hospitais e agrediram médicos, pois sabiam que as chances deles se contaminarem e depois levarem a doença para a população era grande.

Mas, apesar de tudo isso, o que mais pesou na balança para a minha escolha foi o contágio. HIV pega quem for relapso: não demorou muito para que a humanidade entenda como se dá o contágio, daí pra frente, se você pegou, via de regra, foi por optar correr esse risco. É quase que um mecanismo darwiniano de seleção natural: os irresponsáveis são eliminados. Pode parecer cruel, mas talvez, em algum grau, seja bom para a humanidade se livrar de gente que não acredita que uma doença exista ou acha que nunca vai acontecer com ela.

Cólera é mais difícil de evitar. Poucas pessoas podem se dar ao luxo de só ingerir o que elas mesmas prepararam, sem contar que nós não temos controle da água que ingerimos. Vejam o caso do Rio de Janeiro, que desde o começo do ano está fornecendo água com merda para seus moradores. Não é tão difícil quanto se imagina acabar ingerindo algo com coliformes fecais se você tiver que comer na rua. Cólera é mais injusta: você pode fazer tudo certo e, ainda assim, pegar e morrer 24 horas depois, todo cagado.

Por ser de contágio direto, é possível tomar precauções extras para não contrair HIV, como por exemplo, usar camisinha e fazer exames periódicos nas pessoas com as quais você se relaciona. Não dá para pedir um exame de cólera do cozinheiro do restaurante que você comeu ou da água que você bebeu. Sei que para muitos cólera soa como uma doença distante que só afeta países muito subdesenvolvidos, mas, sinto informar, o Brasil é um deles.

E, mesmo que a pessoa pegue HIV, ela tem a possibilidade de sobreviver à doença, controlando-a, como se fosse uma doença crônica como diabetes ou hipertensão. Ela certamente não vai te matar em questão de dias, é possível que você fique assintomático por anos, inclusive. Isso proporciona mais chances de tratamento.

E, antes que alguém venha com discurso de que só pega cólera hoje quem vive em um ambiente muito precário, gostaria de relembrar que após diversas catástrofes naturais tivemos como rebote um surto de cólera. Seu país pode ser ótimo, mas se tiver um terremoto, um tsunami ou qualquer outro desastre de grandes proporções, há chances de ser seguido por um surto de cólera e você pode morrer se cagando na sua privada de ouro.

Vamos ser bem francos: HIV não gerou grandes restrições à humanidade, basta usar camisinha e testar sangue antes de fazer transfusão. Salvo raríssimas exceções, está nas mãos de cada um se cuidar e se o colega ao lado se infecta, você sabe o que fazer para que não passe para você. Cólera não, ela sai do controle muito fácil e mata muito rápido. Nem sempre está ao seu alcance fazer o que é necessário para se prevenir.

Contem os mortos e verão que a cólera dá de goleada no HIV. Contem o estrago financeiro que causou e verão que cólera dá de goleada no HIV. Ninguém merece morrer se cagando.

Para dizer que já percebeu que esta semana vai ser alto astral, para dizer que agora está com medo de pegar cólera ou ainda para dizer que o ser humano é mesmo muito porco para não ter conseguido eliminar uma doença que passa através das fezes: sally@desfavor.com

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Comments (10)

  • Capitão Impressionante

    AIDS é pior. Afeta até os relacionamentos da pessoa, que fica com a pecha de promíscua e irresponsável.

  • Falando ainda em cólera e em epidemias: segue o link de um episódio do programa de TV português “Isto É Matemática” sobre John Snow, o médico inglês chamado de “Pai da Epidemiologia” – e a metodologia com a qual se conseguiu controlar um surto de cólera que assolou Londres em meados do séc XIX, utilizando-se de mapas e um Diagrama de Voronoi:

    https://www.youtube.com/watch?v=Mn6rEFIPWjg

  • Eu acho as duas doenças terríveis e concordo com a Sally sobre a indignidade que é morrer todo cagado devido a uma moléstia como a Cólera, que se pega através de água ou comida contaminada – ou seja, sujeira – , mas, no plano geral, fico com o Somir. O HIV “facilita o trabalho” de outras doenças, o grande surto dos anos 80 é recente e a ciência ainda está longe de erradicar a AIDS. Mas o pior mesmo, no entanto, ainda é o fato de que, por a pandemia de HIV estar mais ou menos “sob controle” atualmente devido aos novos tratamentos, com o passar das décadas verifica-se tanto uma diminuição do medo quanto um aumento no comportamento de risco, especialmente “onde a vigilânca é mais amena”. Ou, para continuar usando as palavras do próprio Somir, a AIDS “está que nem a Coreia do Norte: num armistício sem prazo para acabar.“.

  • Estou com a Sally. Sinceramente, não me conformo com o fato de ainda existirem lugares em que o saneamento básico não atinge no MÍNIMO 98% de sua população. Isso deveria ser crime, os órgãos internacionais deveriam pressionar os líderes desses shitholes (trocadilho semi-acidental) pra tomarem vergonha na cara.

    • O mais curioso é ver pessoas que moram nesses lugares empenhadas em discutir e brigar por White People Problem
      Também acho que deveria ser punido de alguma forma. É um absurdo que o Brasil, que está (ou estava, não sei como anda a coisa) entre as maiores economias da América Latina deixar tanta gente sem o básico. Merecia sanções internacionais.

      • Também me incomoda ver que tanta gente, em pleno século XXI, ainda não dispõe sequer de uma privada decente para cagar e que vive em condições sanitárias não muito diferentes das da Idade Média. Trágico. E eu concordo com você, Letícia, governantes que negam até saneamento básico a sua população deveriam ser mesmo criminalizados.

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