Ostrava

Oglaf abre os olhos lentamente, o corpo, ainda confuso com a retomada dos movimentos, não permite que se desvencilhe totalmente dos tubos de alimentação e excreção, que se enroscam na perna enquanto sai da gaveta. Contra a luz, ainda incômoda, surge a figura de Bast, rosto conhecido de tantas outras viagens. O bonachão oficial de medicina recebe-o com um sorriso debochado, emoldurado por um frondoso bigode ruivo.

“Bom dia, princesa. Eu sou seu príncipe encantado.”

“Por que eu sempre acordo em histórias de terror?” – Oglaf faz uma menção à perna presa, e Bast prontamente desconecta os cabos do sistema de suporte. Oferece então suporte para que o recém-acordado consiga se colocar em pé.

“Eu tenho uma boa e uma má notícia.” – Bast apoia Oglaf com um braço enquanto segura um roupão no outro.

“Hrm…” – Oglaf grunhe enquanto começa a se cobrir.

“Má notícia, estamos fora de rota. Boa notícia, tinha uma muito mais perto do que a missão original. Protocolo E!”

“Quanto tempo até chegar?” – Oglaf pergunta enquanto senta-se numa cadeira para os exames de rotina.

“Já chegamos. Toma um café porque a capitã já quer falar com você.” – Bast injeta algo no braço de Oglaf.

“Seu café é horrível, Bast…”

Alguns minutos depois, Oglaf bate os dentes e chacoalha as mãos rapidamente enquanto espera a liberação para entrar na cabine de comando da nave. A porta automática se abre, a capitã Eudora debruça-se sobre uma grande mesa de luz no centro da sala. Ao seu redor, a equipe se move freneticamente entre monitores e hologramas. Eudora levanta a cabeça e faz um sinal com a cabeça para Oglaf se aproximar.

“Capitã.”

“Oficial.”

“O que a senhora tem pra mim hoje?”

“Arca 982-C, partiu de Ceres em 2412 com vinte mil. Perdida desde 2493.” – Eudora ergue a mão para projetar o modelo da nave diante dos dois. Ela gira os dedos, movendo a estrutura holográfica.

“Fase 2? Essas coisas explodiam se um parafuso saísse do lugar.” – Oglaf começa a analisar os dados técnicos da nave.

“Essa não explodiu. E tem mais…”

Oglaf está com as mãos tremendo, até mesmo a esquerda, feita de metal.

“O Oficial Sebastién te deu quanto de metaloforina?”

“O suficiente para eu já ter sacado sua próxima frase. Ainda tem gente lá dentro, né?” – Oglaf destaca o dado de assinaturas da câmera de calor na lista de informações.

“Sim, mas não conseguimos comunicação.”

“Aliens!”

“Nunca são aliens.” – Eudora dá o primeiro sorriso desde que Oglaf chegou. Os dois riem.

O veículo de abordagem é apertado, Oglaf ajeita o traje enquanto navega pelas pernas da equipe de exploração. Além dos familiares rostos de Bast, o oficial médico, e Gani, a oficial de engenharia, uma equipe de mais três jovens desconhecidos olha atentamente para ele.

“Se você estão aqui, foram treinados para fazer suas funções. Eu não discuto com a engenharia sobre motores, eu não discuto com a segurança sobre como atirar, mas eu vou interferir em qualquer ação que vá contra o nosso objetivo aqui. Você pode estar com um traje espacial de última geração, pode ter uma arma capaz de matar um país inteiro, mas não se esqueçam que nós somos assistentes sociais glorificados.”

Um jovem negro com um grande implante metálico na testa solta um riso irônico. Ele carrega uma arma no colo.

“Qual é o seu nome, soldado?” – Oglaf o interpela imediatamente.

“Segundo Tenente Grash, senhor.”

“Grash, você já esteve numa dessas missões?”

“Não, senhor.”

“Minha primeira missão foi simples. Uma arca da quarta geração presa no campo gravitacional de Wolf 359. Sem sinal de vida. O reator derreteu, o reserva falhou. Recuperamos o que era possível e apontamos a nave em direção à estrela.”

Grash e o resto dos jovens começam a olhar fixamente para Oglaf. Bast e Gani se entreolham com um sorriso discreto.

“E eu agradeço por isso. Não é fácil dar de cara com milhares de ossos humanos flutuando no vácuo, mas depois de um tempo você começa a ver aquilo como um grande cemitério. Seja lá a dor que aquelas pessoas passaram, está no passado. Lá dentro… só a paz dos que já foram.”

Oglaf sinaliza para um dos jovens abrir espaço no banco que corre longitudinalmente pela nave, e se acomoda para ficar com os olhos na altura de Gani. Silêncio total.

“Mas a minha segunda missão, Grash, essa era de uma nave com sinais de vida. E isso muda tudo. Geração três. Das grandes, partiu da Terra com um milhão de pessoas para Sirius. Deveria ter chegado lá em doze, mas passou cento e oito anos sem comunicação nenhuma até que nós os encontramos. Mas havia sinais de vida, afinal, o reator nunca falhou. Não respondiam à comunicação, mas estavam lá para nos receber quando entramos. Dezenas de homens, mulheres e crianças. Magros, vestidos apenas com pinturas vermelhas. Mas um deles se diferenciava. Maior e mais forte, pele negra como a sua. Ele vestia a única peça de roupa de toda a tripulação: a pele de uma menina bem jovem sobre os ombros.”

Grash faz uma expressão de espanto. O ambiente continua silencioso.

“Nosso oficial de segurança, Marcos, se não me engano, não consegue se controlar. Ele, talvez tomado pelo horror que sentimos, aponta sua arma e dá um tiro certeiro no peito do homem. Justiça feita.”

“Aquele homem era um monstro…” – Grash responde.

“Talvez. Mas nós estávamos em seis. Eles em pelo menos quarenta. Só um de nós estava realmente armado. Marcos foi atacado primeiro. Ele deve ter matado uns dez deles, mas acabou acertando nossa oficial de comunicação e o engenheiro também. Eu vi aqueles selvagens rasgarem seu traje, e logo depois, sua garganta. Uma oficial de ciência e uma de psicologia foram carregadas para as entranhas da nave, tomara que tenham morrido logo. Eu fui perseguido por três moleques não muito mais velhos que seus 15 anos de idade, que carregavam facões improvisados. Estávamos em seis, e em menos de cinco minutos de missão, o único que podia voltar para a nave era eu. E mesmo assim, não voltei inteiro.”

Oglaf tira a luva para mostrar a prótese robótica.

Grash acena com a cabeça.

“Se eles quisessem atacar essa gente, fariam à distância. Décadas… séculos dentro de uma arca perdida mexem muito com o ser humano. Muitos deles nasceram numa nave à deriva no espaço sem esperança nenhuma de serem encontrados. Vocês nunca sabem o que vão encontrar. O nosso trabalho é salvar quem pode ser salvo e viver com as imagens horríveis que quase sempre nos esperam dentro desses lugares. A maioria não aguenta mais que uma ou duas missões e eu já estou cansado de treinar novatos. Pensem antes de agir. Lembrem-se que por mais bizarra a cena que encontrarmos naquela nave, ainda são seres humanos e alguém está nos pagando para salvá-los. Entendido, tripulação?”

“Sim!” – todos respondem em uníssono.

Oglaf chacoalha o corpo com uma careta antes de colocar o capacete.

A doca de entrada da Arca 928-C, cujo codinome Ostrava estampa a maior das amplas paredes metálicas, parecia em excelente estado de conservação. Uma grande porta podia ser vista no centro dela.

“Ostrava… irônico.” – A voz de Eudora chega ao comunicador de Oglaf.

“Ainda mais considerando que essa ainda tem energia… faz quanto tempo que a gente não vê uma Fase 2 funcionando?” – Oglaf diz enquanto acena para seu grupo seguir em frente rumo à recepção da nave.

“O ar está rarefeito. Tomem cuidado na hora de abrir a porta.” – Eudora manda a mensagem para todos.

“Trancada, sistema inoperante. Vamos ter que abrir com carinho.” – Gani diz para Oglaf.

“Atenção equipe, afastem-se da porta. Vamos ter que aplicar algumas gramas de carinho.” – Oglaf gesticula para dispersar o time.

“Carinho?” – pergunta Grash.

Um som metálico e grave precede a onda de choque. Uma pequena explosão faz uma abertura na porta. Um jato de ar atinge os presentes em alta velocidade, fruto da diferença de pressão entre o que estava atrás da porta e o hangar. As botas magnéticas são suficientes para manter todos firmemente presos no chão. Oglaf aponta para a porta, e todos correm para entrar. Gani espera a última pessoa entrar para tapar o buraco com uma manta metálica que se enrijece assim que bloqueia a passagem do ar.

Eles estão num enorme salão, decorado de forma berrante como um dos antigos cassinos da Terra. Pinturas famosas e estátuas em todas as paredes, obviamente reproduções. Várias cadeiras apontam para um balcão de madeira igualmente falsa onde deveriam trabalhar umas dez pessoas. Todos os equipamentos intactos, nem mesmo poeira pode ser ver nas superfícies. Não há viva alma ali para os receber.

“Barra limpa?” – Oglaf pergunta para Bast.

“Oxigênio ok, sem contaminantes óbvios, carga bacteriológica e viral abaixo de 2%. Vocês primeiro.” – Bast responde.

Oglaf tira o capacete, e logo é acompanhado pelo resto da equipe.

“Tem certeza que tem sinal de vida aqui?” – ele pergunta para Eudora.

“Pelo mapa de calor, sim. A maior concentração está nos deques superiores.”

“Entendido. Gani, como está o elevador?”

“Bloqueado do mesmo jeito. Escadas?” – Gani aponta para um porta de incêndio num dos cantos do salão.

“Sejam bem-vindos ao Ostrava! O que posso fazer para ajudá-los?” – uma voz feminina surge da direção do balcão.

Continua…

Para dizer que é claro que continua, para dizer que já viu esse filme, ou mesmo para dizer que minha punição compensa tudo: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Me fez colônias prósperas de chineses nas costas do Pacífico até a Noruega no século XV, criadas a partir de tripulações de navios afundados, que esperaram por gerações serem buscadas de volta pelo restante da frota.

    • Você tem fontes sobre o assunto? Fiquei interessado.
      Lembro de ler também sobre possíveis interações que aconteceram entre chineses e índios sul-americanos mais ou menos no mesmo período.

      • Li recentemente o livro 1421, do Gavin Menzies. Pessoalmente, fez todo sentido. A gramática de muita língua indígena da América do Sul me soou similar ao japonês…

        Agora estou lendo o 1434, do mesmo autor, que fala da ida de chineses à Europa

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