Semana Pandêmica: Varíola

Pode parecer surpreendente para nós de 2020 – especialmente nós brasileiros – mas já houve um tempo onde a humanidade conseguia vencer doenças. A varíola foi uma das doenças mais mortais da história humana. Foi, verbo no passado, porque desde 1980 ela é considerada erradicada no mundo. Mas não foi uma jornada simples… longe disso.

A varíola é uma doença contagiosa causada pelo vírus homônimo, da família Poxviridae. Além de ter um tamanho de respeito no mundo dos vírus, ainda usa DNA (ao invés de RNA como o coronavírus), o que o torna consideravelmente mais sofisticado. Ele é transmitido através da inalação de partículas com o vírus (vias aéreas) e no contrato direto com qualquer fluido corporal humano. O pobre coitado que fosse infectado começava então a exibir alguns sintomas iniciais como febre, dor de cabeça, cansaço… difícil de diferenciar de uma gripe.

Mas infelizmente não parava por aí, a coisa começava a evoluir para um quadro horrível de pústulas ao redor do corpo que em questão de dias vazavam todo seu conteúdo e deixavam feridas por toda a pele. Eu decidi não usar uma foto de doente para ilustrar o texto porque realmente não é uma cena agradável, se você tiver curiosidade, clique aqui para ver como a pessoa ficava. Muitas pessoas ficavam com cicatrizes horríveis pelo corpo todo depois de pegar a doença. E, as cicatrizes até que eram bom negócio considerando que a taxa de mortalidade da doença passava dos 30%. E não tem cura: tem que aguentar até o corpo vencer ou perder a batalha.

Sim, 30%. De cada 100 pessoas que pegavam a doença, 30 morriam. A varíola tinha uma versão comum, responsável por 90% dos casos, e algumas variações mais graves, a versão hemorrágica (ao invés de pus, sangue) tinha quase 100% de letalidade. Estima-se que nos 100 anos anteriores à erradicação da doença, mais de 500 milhões de pessoas tenham morrido da doença. Sim, eu escrevi milhões. E ela esteve conosco por muito mais que esses 100 anos. Mesmo considerando que a população humana era muito menor antes disso, eu não duvido nem um pouco que a varíola possa ter batido 1 bilhão de mortes durante toda sua convivência com a humanidade.

E esses números têm impacto. Ainda se discute a origem da doença, mas há sinais das erupções cutâneas típicas da doença na múmia de Ramsés V, que viveu há mais de 3.000 anos atrás. Existem relatos compatíveis com a varíola na Índia (onde mais?) desde então. Já nos primeiros séculos deste milênio, são registrados casos na China e uma grande epidemia no Japão. Várias religiões asiáticas tinham deuses relacionados à varíola. Um estudo mais recente analisando o material genético do vírus sugere que a primeira versão da varíola que foi erradicada recentemente surgiu por volta do século XV, sugerindo que as versões mais antigas tenham desaparecido naturalmente dando lugar à nova iteração do vírus.

Muito da história que conhecemos está interligada com a varíola, a peste antonina, uma epidemia que atingiu Roma no ano de 165 e matou mais de 5 milhões de pessoas é atribuída à varíola, e acontece bem na época que muitos historiadores consideram o começo do fim do império. Dali pra frente, as coisas nunca mais seriam as mesmas. Mas não precisamos ir longe para ver os impactos da doença na sociedade: aqui mesmo nas Américas, a varíola foi determinante para que os europeus controlassem o continente com a velocidade que controlaram.

Muitas vezes intencionalmente, os europeus deram para os povos indígenas americanos presentes cheios de varíola, e a doença não existia no continente até então. Os impérios da América Central e do Sul entraram em colapso rapidamente. No Norte, os nativos perderam muito da sua capacidade de resistência com a doença devastando suas populações. O famoso índio Touro Sentado morreu de varíola. Cuitláhuac, rei dos astecas e Huayna Capac, imperador inca, tiveram o mesmo destino. No resto do mundo, a doença também mostrou apetite por cabeças coroadas: o Imperador Komei do Japão e Louis XV são outras vítimas notáveis da varíola.

E quando morre rico, sabemos que a coisa fica séria na hora. Não é como se a humanidade tivesse ficado esperando um milagre, na verdade, ela produziu um: a vacina. A varíola levou milhões de vidas, mas nos fez desenvolver uma das ferramentas mais poderosas da história da medicina. E não foi um momento “Eureka!”, foi uma construção de longuíssimo prazo. Desde o século X existem relatos de uma prática chamada Variolação, que consiste em infectar pessoas com uma versão muito menos letal da doença chamada varíola menor. Surge na China e só muitos séculos depois que aparece na Europa. Não era bem uma vacina, mas a ideia era bem parecida: os vírus são muito parecidos entre si, e se o seu corpo aprende a reconhecer um, consegue pegar o outro.

Só que ainda não era o suficiente. Eu tenho quase certeza que a Sally já contou essa história em outro texto, mas como não consigo achar, vamos falar de um inglês que salvou bilhões de vidas da forma mais irresponsável possível: o doutor Edward Jenner. Seguindo a observação que as mulheres responsáveis por ordenhar vacas eram muito menos propensas a pegar varíola, Jenner fez a conexão entre a varíola bovina, uma doença parecida mas muito menos severa e a ideia de Variolação.

E aí, ele começou um processo de pesquisa que durou décadas, seguindo todos os protocolos de… há! Claro que não. Jenner é o herói que a gente merece: em 1796 simplesmente infectou o filho do jardineiro dele com varíola bovina, e semanas depois, infectou o moleque de 8 anos com varíola de verdade, aquela que mata 30% das pessoas. Como Deus protege os inconsequentes, deu certo. Importante: outras pessoas tentaram isso antes, mas Jenner foi o primeiro que realmente entendeu o processo arriscando a vida de uma criança no processo. Mito.

Estava criada a primeira vacina. Jenner saiu testando em mais gente, publicou seus estudos e algumas décadas mais tarde, em 1840, o governo inglês tornou a Variolação ilegal, oferecendo a vacina baseada na varíola bovina de graça para toda a população. O nome vacina vem do latim vacca, que vocês não vão imaginar o que quer dizer em português… das tetas das vacas para nossas correntes sanguíneas, um dos pontos mais importantes da história humana. Mas o mundo é um lugar grande e desigual, foram mais muitos e muitos anos até que a vacinação se tornasse um processo comum, disponível para todos. Como não é de surpreender, os países mais ricos da época foram reduzindo seus casos primeiro, e lugares mais pobres depois, bem depois.

E falando em lugares pobres, temos que voltar ao Brasil, o último país das Américas a erradicar a doença, só em 1977. Mas bem antes disso, em 1904, o médico Oswaldo Cruz queria controlar o avanço da varíola com vacinação obrigatória para todos os brasileiros. A história é cíclica: naquele tempo muita gente também temia a ciência (com mais razão, devemos admitir) e fazia questão da liberdade de pouco se importar com epidemias e saúde pública. No Rio de Janeiro (onde mais?) o povo decidiu que aquilo era demais e saiu quebrando a cidade toda contra a vacinação obrigatória. Claro, é mais complicado do que isso, tinha gente tentando derrubar o presidente na confusão e os agentes sanitários da época eram bem mais hardcore que os atuais, mas é curioso como em 1904 e 2020, só a violência faz com que muita gente siga regras básicas de convivência em sociedade.

Como se pode imaginar, embora pior não vacinar não tenha ficado, a relação do brasileiro com vacinas demorou um pouco para remendar. A doença começava a desaparecer em países mais desenvolvidos mais ou menos no meio do século XX, mas o ritmo não era animador da linha do equador para baixo. E aqui, entra a OMS (Organização Mundial da Saúde), da ainda jovem entidade das Nações Unidas. Sentindo que faltava apenas um último empurrão para vencer a varíola, muito dinheiro e esforço foi colocado numa campanha global de vacinação, especialmente nos países mais pobres. Entre o final dos anos 50 e boa parte dos anos 70, a entidade fez um esforço sem paralelos para vacinar a humanidade contra a varíola.

No final dos anos 70, quase todo mundo tinha sido vacinado. Os casos de varíola foram sumindo, sumindo, sumindo… até que em 1980 a OMS sentiu firmeza para afirmar: a varíola tinha sido erradicada. Depois de séculos de esforços, tínhamos derrotado um inimigo que matou centenas de milhões de pessoas. Pouco a pouco, os laboratórios com amostras do vírus foram destruindo seus estoques, para que não houvesse sequer chance da doença voltar. Dá quase esperança na humanidade, não?

Mas aí eu te digo que ficamos no quase mesmo. Rússia e EUA – ainda em tempos de Guerra Fria – pareciam muito preocupadas com a ideia de que se por um acaso o vírus voltasse naturalmente, seria bom ter pelo menos algumas amostras para fazer pesquisas… e, claro, vai que serve para fazer uma arma biológica? Por isso, a doença é considerada erradicada, mas amostras viáveis do vírus ainda existem em laboratórios de altíssima segurança. Quer dizer, um laboratório russo que tinha uma amostra sofreu uma pequena explosão, mas o vírus não escapou ainda. Conta como altíssima ainda, né?

Seja como for, a varíola pode até ser considerada uma página virada na história humana, mas é uma das páginas mais impressionantes: do terror da doença que derrubou impérios à criação da ferramenta da medicina que mais salvou vidas até hoje. Em algum momento aprendemos as lições que ela nos trouxe, só espero que nossa memória coletiva só esteja tendo um lapso momentâneo.

Para dizer que vai ter outra Revolta da Vacina logo logo (não duvido), para dizer que o Bolsonaro pegou a doença errada, ou mesmo para dizer que eu deveria ter alertado mais sobre clicar na foto: somir@desfavor.com

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