Tiktokalização da economia – Parte 2

No capítulo anterior, o foco era como enxergar diferentes redes sociais como alegorias de uma economia em processo de transição da Era Industrial para a Era da Informação: o tipo de conteúdo consumido e produzido por gerações diferentes reflete a forma como se enxergam inseridas nessa realidade. Hoje, a ideia é seguir em frente… do jeito que der.

Desde que a humanidade é humanidade, os mais velhos passam o controle do mundo para as novas gerações. Um processo inevitável que dá sangue novo para as estruturas sociais das quais dependemos e permite que se mantenham em constante evolução. Tudo o que consideramos como direitos básicos hoje em dia não foi nem um pouco básico na maior parte da história humana. E, é claro, isso não é resultado só das pessoas ficando mais “boazinhas” com o passar dos séculos, é um resultado benéfico de processos mais eficientes para tratar das nossas necessidades básicas.

Produzir mais foi se tornando sinônimo de avanço social. Quando sua plantação começa a entregar mais comida do que sua família precisa, começam a surgir novas oportunidades. Talvez um dos seus filhos possa aprender outra profissão, afinal, ele não precisa mais trabalhar na produção do próprio alimento. Antes que eu gaste dez parágrafos contando a história da economia humana até aqui, vamos estabelecer apenas que até pouquíssimo tempo atrás ser mais produtivo criava um efeito em cadeia na sociedade que ajudava progressivamente mais gente a melhorar de vida.

A mentalidade que moldou a sociedade humana moderna foi essa: seja mais eficiente e melhore o mundo. Foram séculos e séculos lutando para tirar gente do campo e torná-las especialistas nas mais diversas áreas de conhecimento e produção. Evidente que é uma generalização que não considera a infinidade de abusos contra a classe trabalhadora, mas os números não mentem: no final do século passado todo mundo vivia mais e tinha mais liberdade que em qualquer outra época da nossa história. Muita gente pagou o preço individualmente, mas todos colhemos os frutos dessa evolução.

Mas nessa sanha evolutiva, algo deu… certo demais. Se o ser humano acreditava que mais eficiência significaria mais qualidade de vida, o computador era a resposta de todos os problemas. Praticamente todo o nosso processo produtivo podia ser melhorado imensamente com o poder de processamento dessas máquinas. Com a experiência de produção e a abundância de energia e recursos, vivemos uma explosão de complexidade e resultados espetaculares se empilhando ano após ano.

E aí, o jogo começou a virar: mais eficiência começava a causar mais problemas. A ideia de que todo mundo tinha alguma função no mundo começou a caducar junto com os processos antigos de produção. Mas até os últimos anos do século XX, ainda acreditávamos que uma economia composta de bilhões de pessoas era grande demais para nos falhar. Só que ela já começava a dar sinais de fadiga: profissões desapareciam, indústrias se instalavam em países asiáticos com leis trabalhistas mais brandas, novos hábitos e tecnologias criavam uma demanda de profissionais para os quais escolas e faculdades não tinham preparado ninguém…

E é nesse momento que a geração dos millennials começa a fazer senso do mundo dos adultos. Eu sei por que vivi isso: em menos de uma década, profissionais excelentes viraram dinossauros vagando perdidos ao redor da cratera causada pelo meteoro da internet. Alguns foram vaporizados imediatamente, mas muitos estavam perto o suficiente de alcançar cargos gerenciais, e foi essa sua corda de salvação. E aqui, a minha teoria da conspiração: mais ou menos nessa época, o Marketing começou a virar um ramo muito lucrativo, com várias empresas montando equipes e gastando os tubos para se adequar à aparente obrigatoriedade de ter esses profissionais no time. Não é curioso que assim que muitos especialistas com muito tempo de empresa se tornam praticamente inúteis na linha de produção, todo mundo precisa ter um departamento de Marketing? Quando começou a ficar meio na cara, veio a febre da Administração… claro que são coisas importantes na empresa, mas eu ainda acho que a função de cabide de emprego de quem não entendia de computador foi o fator determinante para a popularização.

E eu não queria perder tempo alguns parágrafos atrás… ok, de volta: os millennials encontram um mercado que está com portas abertas para funções que ninguém os ensinou a preencher, e uma massa de ocupantes em outras funções mais clássicas que não tinham mais pra onde correr. A concorrência por “empreguinho” foi para as alturas. E com o processo de concentração de renda acelerando ao mesmo tempo que o êxodo rural batia recordes, tudo o que era relativamente barato para seus pais e avós começou a ficar proibitivamente caro. Complicado achar emprego e praticamente impossível pagar um aluguel… e ainda nos perguntamos por que tanta raiva em redes sociais…

Ficamos tão bons em tornar processos produtivos mais eficientes que os ricos começaram a ficar muito ricos. Tão bons que o número de empregos que alguém pode ter sem estudo não cobrem mais a taxa de reposição de pessoas no mundo. E não é um processo que pareça ser reversível: a tecnologia vai acelerar esse processo até algo mais forte a estagnar. Vejam bem, eu não estou falando isso de forma tão pessimista assim, pode ser que seja apenas uma fase complicada de transição e consigamos chegar num mundo pós-escassez que vai fazer um alto padrão de vida de 2020 parecer violação séria dos direitos humanos em comparação futura. Não perdemos nem ganhamos ainda, estamos no jogo.

E é com essa incógnita que crescem os usuários do TikTok. Sim, voltamos para ele. Com base na tecnologia atual e o que está sendo estudado e testado, não podemos ignorar a possibilidade de uma espécie de singularidade tecnológica (uma aceleração tão rápida do desenvolvimento que é impossível prever como vai ser) pelo menos durante a vida deles. Mas prever tecnologias futuras costuma ser furada, meu carro com certeza ainda não voa… vamos trabalhar com o que podemos depreender da situação atual.

A favor dessa nova geração está o fato de já serem imunes à esperança de uma vida adulta do século XX. Pouca gente está criando esses jovens para formar uma família de 2.5 filhos, morar em casa própria e ter um emprego pra vida toda. Não vão ter o mesmo choque da geração anterior. Já é um bom começo. Mas, contra essa geração está o fato de que seja lá que processo começou no começo desse século, ainda não estabilizou. O mercado de trabalho não abriu, e os millennials ainda começaram a ressuscitar tecnologias e profissões para ter algo o que fazer. Ser “hipster” não foi só uma moda, foi um movimento econômico necessário.

É meio que nem naquele filme “O Poço”: a noção antiga do mercado de trabalho foi consumida pelos mais velhos, os millennials pegaram o resto, e ninguém colocou mais comida na plataforma até agora… então, está na hora de ser criativo. Olhar para o mercado e ver quem você pode substituir de forma mais agressiva ou mesmo desenvolver ramos completamente novos para produzir valor. Alguns millennials acertaram nisso e fizeram a vida com redes sociais e aplicativos. Só que eventualmente as coisas mais óbvias acabam sendo feitas: criar uma nova rede social ou um aplicativo que entrega outra coisa é forçar a barra num mercado cada vez mais saturado.

Mas assim como a maioria dos millenials acabou não bolando nada de tão impressionante assim, é de se presumir que a geração Z não fuja tanto assim do padrão. Cada geração forma um número limitado de inovadores de sucesso, não é culpa do ano que a pessoa nasceu, é só uma realidade do desenvolvimento médio humano. E é aqui que eu volto para revisar aquela ideia de que esses jovens terão que ser criativos: é meio escroto exigir que uma pessoa média tenha que pensar fora da caixa para sobreviver. Não é essa humanidade que construímos, e não é esse tipo de Lei da Selva intelectual que deve ditar o nosso rumo. O mundo ainda precisa acomodar gente que não é completamente incapaz de contribuir com a sociedade, mas que também não vai fazer nada de muito chamativo durante a vida, afinal, somos a maioria esmagadora. O que fazer com o cidadão médio dessa nova geração?

Aqui, voltamos para o final do texto passado: se o TikTok demonstra como essas novas gerações já parecem nascer sabendo que precisam fazer um show para encontrar seu valor na sociedade, sites como o Only Fans são um dos sinais do que pode acontecer com eles com o passar dos anos. Only Fans é uma espécie de rede social onde você paga para seguir uma pessoa, não é a primeira vez que fazem isso, mas é um dos projetos de maior sucesso na área até hoje. E se você está se perguntando quem pagaria para seguir uma pessoa na rede social, aposto que você vai entender tudo quando eu disser que as pessoas mais populares na plataforma são mulheres atraentes que postam conteúdo erótico ou pornográfico para uma legião de homens sedentos.

Ao invés de trabalhar para uma empresa que filma cenas e vende para os consumidores, essas mulheres (e homens também, mas sabemos que continua sendo uma maioria esmagadora de homens que consome do mesmo jeito) viram sua própria produtora, e com um contato mais próximo com seus clientes, podem até mesmo adequar o material aos pedidos deles. E isso não acontece por ganância das modelos de cortar o intermediário, a própria indústria da pornografia começou a afundar por “excesso de eficiência”. Produziam tanta coisa tão rápido, competiam tanto que o mercado saturou, e com boa parte do mundo filmando por conta própria material do tipo para distribuir (intencionalmente ou não) de graça para todo mundo, o mercado teve que mudar. Se um vídeo gravado no celular num banheiro vende pelo mesmo preço que uma produção completa de grandes empresas, o incentivo vai diminuindo. Isso vai mais longe ainda, considerando que esse povo paga mensalidade para essas atrizes/modelos também por se sentirem mais próximos delas. Vivemos em tempos solitários…

Quando eu vejo vídeos do TikTok, não deixo de pensar que é uma espécie de curso profissionalizante do Only Fans. Não acho que vamos ter uma maioria de pessoas produzindo pornografia profissionalmente, mas é certeza que a repressão social vai diminuir o suficiente para que as barreiras de entrada ficarão cada vez menores. Quem melhor do que uma jovem de 18 anos para achar que vai produzir pornografia na internet e sair na hora que quiser sem nenhuma repercussão? Vai ser uma máquina de moer mulheres… e homens. Homens que vão achar natural formar uma relação de longo prazo completamente não correspondida como se fosse mais uma assinatura de serviço de streaming.

Mas é tudo sobre sexualidade e pornografia? Não, é uma parte do quebra-cabeças. Se eu falo das “trabalhadoras do sexo” do Only Fans, é por ser uma extensão visual óbvia da estética e da linha de comunicação do TikTok, mas isso vai muito mais fundo: quando você cresce acreditando que precisa ser uma marca e gerar valor através dela, deixa de se entender como parte de uma comunidade. Eu desconfio que vamos ver uma era de cidadãos-empresa, com todo o treinamento de marca das redes sociais e o desespero de dar de cara com um mercado de trabalho onde ninguém quer passar o bastão para a próxima geração. Vocês acham que os bilionários de hoje vão largar o osso? Que os idosos que foram obrigados a voltar a trabalhar (ou que “infelizmente” ainda estão saudáveis demais para parar) vão voltar para seus cantos? Que toda a indústria de profissões imaginárias dos millenials (chefe de departamento de diversidade, barista, etc.) está disposta a se aposentar antes da hora?

O cidadão-empresa é a solução para essa situação. O cidadão-empresa se enfia em qualquer canto que couber e tira seu sustento de quem der atenção para ele. Eventualmente, se alcançarmos uma massa crítica de pessoas vivendo assim, a economia pode ser balanceada levando em conta o valor gerado por conteúdo gerado por essa gente toda. E não precisa ser vídeo pornográfico, pode ser só um stream jogando um jogo, um canal de YouTube, e se a pessoa não tiver potencial para desenvolver uma carreira nesse sentido, eu temo que até mesmo coisas como amizades podem começar a ser monetizadas de forma agressiva. O cidadão-empresa tem que ganhar dinheiro para interagir com outros cidadãos-empresa.

Porque não é muito provável que mais profissões de baixa complexidade comecem a ser criadas. Tudo o que um robô ou um software podem fazer vai acabar sendo feito por um robô ou um software. E nem precisa de um salto tecnológico grande para matarmos boa parte das profissões da indústria e do comércio, só não é economicamente viável ainda. Mas, como eficiência ainda é a meta final, eventualmente vai ser. Quem quiser se adaptar a isso tem que saber trabalhar com máquinas e programas ou se adaptar bem à prostituição (sexual, emocional, seja lá o que seja necessário) de relações humanas sob a constante pressão de sobreviver num mundo cada vez mais desigual.

E não como se eu fosse um visionário falando disso, muito mais gente percebeu. Especialmente aqueles que precisam prever os próximos passos da economia global para continuar na frente. E não precisamos ir mais longe que o próprio TikTok para isso: espionar os hábitos dos usuários do aplicativo e compilar dados sobre o que é popular ou não pode dar uma janela para esse futuro. Se a China faz isso mesmo eu não sei, mas não seria uma anomalia tão grande assim, especialmente se você tem vantagens ao manipular dados. Saber o que é popular entre essa nova geração pode ajudar a criar celebridades alinhadas com sua causa, reconhecer ameaças rapidamente e preparar o terreno econômico para incentivar ou desencorajar conteúdo produzido por milhões de produtores de conteúdo compulsivo como é bem provável que vejamos na próxima década.

Da próxima vez que ouvir alguém falando de Renda Básica Universal, lembre-se deste texto. A economia global está indo para um lugar que pode ser muito problemático para a própria noção de humanidade. Claro que não é a única solução possível, é só um exemplo de pauta política que pelo menos se adianta ao perigo de uma era de cidadãos-empresa que podem muito bem tornar relações humanas em negócio numa escala nunca antes vista. É muito por isso que eu sempre escrevo sobre o terror que é viver polarizado entre direita ou esquerda: são modelos baseados num mundo que já veio e já foi. Tem um mundo novo se formando onde a maioria de nós ainda vai viver. As meninas rebolando no TikTok já viram isso, mas e quem diz que se preocupa tanto com as futuras gerações? Está vendo o quê, a bunda delas?

Se for, aproveita enquanto é de graça.

Para dizer que só eu para falar de um site pornô e te deixar entediado, para dizer que agora sim perdeu a fé na humanidade, ou mesmo para dizer que é tudo culpa deles (seja lá quem for): somir@desfavor.com

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Comments (32)

  • “Quando eu vejo vídeos do TikTok, não deixo de pensar que é uma espécie de curso profissionalizante do Only Fans.”

    Meu café e minhas tripas estão no chão.

  • Ainda tenho q reler esses textos, mas tenho q dizer q vim pra cá seguindo a Sally do corporativismo F. é nunca q imaginaria q meus textos favoritos seriam o seu. Parece que quer ser compreendido agora e não só mostrar sua superioridade intelectual.

    • Fico feliz que você tenha notado uma evolução nesse sentido, porque é algo no qual estou trabalhando há alguns anos. Mesmo nos textos mais arrogantes do passado, era incapacidade de fazer diferente mesmo.

  • Para grupos de feministas histéricas e de defensores da moral e dos bons costumes canibalizarem sites como o OnlyFans, pouco custa, ainda que no passado alguma ou outra das figuras pretensamente progressistas do meio feminista tenham feito trabalhos para sites como o SuicideGirls, que tem proposta parecida.
    Se você falasse isso em 2010, substituindo TikTok por Facebook e OnlyFans por Fotolog, ficaria menos furada essa previsão.
    O foco principal de tudo é na construção de sua própria bolha de conforto e “pertencimento”, ainda que tal bolha possa eventualmente te sufocar na depressão.

    • Não adianta espremer esse tipo de indústria, ele vaza para outro lugar. A não ser que comecem a fazer castração química na humanidade como um todo, a indústria sobrevive em outra configuração. Tem vídeo pornô caseiro da Arábia Saudita! Da fuckin’ Arábia Saudita.

      A verdade é que a feminista teme a gostosa mais do que qualquer homem opressor. Porque contra uma bunda, não há argumentos.

      • A sobrevivência da Pornografia em tal panorama tende a ser cada vez mais na deep e cada vez mais distante daquilo que hoje se tem no mainstream e isso se deve também a alienação “não-binária” que já dando as caras nas relações sociais.
        Antes tínhamos os dois lados mais ou menos bem definidos quanto a sexualidade (masculino e feminino).
        Depois vieram os transsexuais construindo uma ponte para transpor os conceitos que se tinha até então quanto a identidade de gênero e agora vem os “gênero neutro” que não fodem e nem saem de cima e estão levando os relacionamentos ao colapso.
        Há um grande risco de que os Lírio do Campo, Urucum e Sândalo de Dandi da vida acabem, a título de “empoderamento”, se tornando os capitães do mato de uma falsa inclusão em um futuro próximo.
        Por enquanto, a gente ainda aproveita o almoço grátis, mas já sabendo que o tempo tá fechando e arrisca de a gente ter problemas até com isso, dado que graças aos jênios do “porno revenge” tal indústria está bem ameaçada. Primeiro o cerco moralista começou com foco na pedofilia e na zoofilia, mas já vem tomando o rumo da indústria todo, como se DSTs como o HIV já não fosse problema suficiente.
        Está se tornando cada vez mais asséptico e arenoso o campo dos relacionamentos íntimos. Sorte minha que já tenho um relacionamento firme nesse campo e minha luta agora é pra ele não desandar graças aos militóxicos.

  • Esse é um passo arriscado pela mesma regra que você arriscou a colocar. Mesmo a era dos cidadãos-empresa (com a qual já começamos a flertar quando a empregada doméstica começou a ceder lugar pra diarista lá pelos anos 90) tende a apresentar sérias falhas, assim como a onda dos apps hoje em dia.
    Os bilionários, com vistas a se aproveitar dos subterfúgios fiscais, vão passar sua fortuna a fundações que apesar de servirem de fomento a algum ou outro projeto bem sucedido economicamente, vão servir justamente para manter o valor das ações dos oligopólios, enquanto os abutres especuladores ficam correndo atrás de uma riqueza imaginária.
    Continuaremos em uma condição onde alguns poucos, que coincidentemente detém controle de posições privilegiadas na economia, garantem pra si os privilégios de sua posição enquanto a grande maioria se mantém na base de eventuais subsídios provenientes de eventuais auxílios ou de subempregos pra manter a roda funcionando.

    • Os bilionários são problema para outra discussão. Estou me concentrando justamente em quem vai estar abaixo deles.

  • Bem, o próprio Cyberpunk 2077 mostra que um futuro completamente tecnológico não necessariamente implica em boa qualidade de vida pro cidadão médio, essa renda básica universal vai ser uma migalha que só vai dar pro básico do básico pra manter o gado vivo, mas não vai tirá-lo da merda e ele vai se acostumar a viver na merda, como sempre.

    • Renda básica é justamente sobre a linha base de qualidade de vida. Embora o mundo seja muito desigual e provavelmente vá continuar sendo pelas próximas décadas e talvez séculos, isso não quer dizer que entre eras as desigualdades são equivalentes…

      A desigualdade de um rei da Idade Média para um camponês pode até ser tão obscena quanto a desigualdade de um bilionário para um trabalhador de baixa qualificação moderno, mas a linha base da qual ricos e pobres das duas eras partem é muito diferente. O pobre de hoje provavelmente não vai morrer por um corte na perna, dificilmente vai morrer de fome e mesmo considerando como a criminalidade domina comunidades pobres, a chance dele ser vítima de violência sem chance nenhuma de defesa é imensamente menor.

      Renda básica sobe essa linha de base mais uma vez. É uma vida de merda comparada com a vida do rico? Com certeza. Mas não é comparado com a linha de base que ele tinha antes. É tudo o que podemos esperar: melhorias pequenas e incrementais. Melhor que isso eu acredito que só com uma singularidade tecnológica.

  • Considerando como os filmes e músicas andam tão genéricos em roteiro, letra, ritmo etc, não duvido que algum desses estúdios e produtoras grandes já tenham desenvolvido uma AI que fica 24h fabricando entretenimento de massa (quase) sem intervenção humana. E com tanto playback e artificialização, podemos dizer que os artistas e celebridades ocidentais atuais não estão muito longe da Hatsune Miku (desculpe por conhecer isso). Deve ser questão de tempo pro ocidente largar essas bonecas antiquadas de carne e adotar bonecas de computação gráfica que nunca envelhecem, não engravidam e não precisam de direitos trabalhistas.

    • Se as empresas ocidentais passarem a usar celebridades virtuais igual você disse, vai confirmar a velha tese do Somir de que o Japão é uma prévia do que vai acontecer no resto do mundo.

    • Tá aí uma crítica que eu tenho, Ruan, e que já venho reparando há muito de uns anos pra cá. Inclusive até comentei coisa parecida naquele texto convidado sobre gêneros musicais, especificamente sobre o pop. Hoje tudo é artificial e playback, hoje tudo segue a mesma fórmula massante de sempre, sem novidade nenhuma, pode mudar uma coisa aqui ou ali com essa pegada r&b, trap, hip-hop contemporânea, mas o fundo permanece sempre o mesmo em termos de estrutura composicional. Não há novidade, não há criatividade, há apenas timbres quaisquer selecionados lá por um programa no computador. E eu me pergunto como que as pessoas, tão fúteis, conseguem apreciar isso, e mais, ficar criando polêmicas e picuinhas pra cima de cada diva pop só pra ‘lacrar’ em comentários nas redes sociais…

    • Pode ser uma boa instalar uma dessas impressoras 3D no lugar das famosas paredes de vedação nas construções prediais. Talvez o fator limitador seja o custo, por no geral o aglomerante (cimento portland) ser de maior custo que o aglomerado (areia, pedra, ferro).
      O ganho em termos de logística é considerável, mas a preocupação maior nas preocupações de alto padrão é o conforto térmico e acústico e nas de baixo padrão é custo na ponta do lápis mesmo.

  • Fiquei pensando no que comentaram no texto anterior: se eventualmente as tecnologias conseguirem se programar e se consertar sozinhas, o que será que vai sobrar pro ser humano fazer? Passar o dia todo rolando a timeline ou jogando FreeFires da vida pra ter uma ilusão de conquistar algo, enquanto espera o dinheiro da Renda Básica cair na conta? Nem cuidar dos próprios filhos as pessoas querem mais, visto a quantidade de recém-nascidos sendo entregues pras creches porque os pais querem “curtir a vida” (pais pobres e trabalhadores são minoria, já trabalhei em creche pública). E já falam da criação de úteros artificiais que poderiam dar conta de gestar uma gravidez completa enquanto os pais continuariam sua vida “normalmente”, leia-se trabalhando e comprando bugigangas. Quando foi que um fato da vida se tornou um incômodo, algo anormal? Pra que ter filhos, então? Só pra postar foto? E como vão ficar a saúde e a mente de uma pessoa gestada numa caixa, sem vínculos com a própria mãe (até hoje a gravidez humana tem muitos mistérios fora do alcance da ciência), e criada numa creche com comida artificial?
    Esse mundo “just consume product and get excited for next products” me parece mais um pesadelo. Todo mundo vai ser um robô sem propósito, gerado apenas pra manter o padrão de vida dos que estão no topo.

    • Embora eu concorde com boa parte da sua análise, eu ainda desconfio (ou tenho esperança) que as pessoas não vão ficar paradas enquanto perdem pouco a pouco seu propósito de vida. Ainda somos os mesmos macacos de uns 70, 80 mil anos atrás. Macacos sedentos por atenção, por contato, por pertencimento… o que torna realmente complicada uma transição até uma humanidade tão robótica assim. Uma possibilidade é a coisa sair justamente no sentido oposto: sem as obrigações de “robô” que temos hoje em dia como ir trabalhar todos os dias, quem sabe não sobra muito mais tempo para viver em função de relações? A minha preocupação neste texto é que na transição para isso, a economia se torne dependente de comercializar atenção e afeto.

  • Somir, falta um detalhe: de onde virá o dinheiro do consumidor? Sem consumidor, fodeu tudo. Provavelmente os bilionários criarão albergues e uma mesadinha para todo mundo. A briga será para ter status, não para sobreviver. O capitalismo depende do consumo e este depende de ter bens ou serviços para trocar. Se vier essa onda de desemprego e fome, jantam o bilionário.

    • Dinheiro é uma coisa que colocaram na sua cabeça. Governos e bancos só digitam um número na planilha do Excel para fazer mais. Não há lastro nenhum há quase um século. O grosso das fortunas pessoais atuais está em ações, que não tem valor físico definido. O setor de serviços, cada vez maior dos países mais pobres aos mais ricos, não deixa rastros também… desde que as pessoas concordem que aquele vídeo de mulher pelada no banheiro ou um texto de 10.000 palavras tenha valor mesmo sem nenhum lastro físico, eles vão ter valor e vão poder ser trocados por comida. Como já é o caso numa escala menor hoje em dia.

  • Essa minissérie de textos foi só uma prévia do futuro anúncio de que o conteúdo do Desfavor passará a ser pago em breve.

    • No plano master, a pessoa ganha uma gravação de um texto meu para dormir e um da Sally para acordar, todos os dias.

  • “tornar relações humanas em negócio numa escala nunca antes vista.” – Poxa, esse texto me deixou um tanto mal, na real. Até porque eu vivo em partes esse conflito de, por um lado, ter o sonho de um emprego fixo, quem sabe concursado, passar 40 anos no mesmo lugar, construir uma história, uma carreira, criar vínculos etc; e, por outro lado, ter que jogar tudo por alto meus planos a longo prazo (isso inclui meu plano de fazer doutorado, já que tive que abandonar o meu recentemente) e partir pra algo novo, me adaptar a uma nova realidade. Mas fazer o quê de novo é que são elas, bate uma angústia enorme quando tu não tem bem claro um ponto de partida e não sabe o que fazer, por onde começar, enfim.

    • Se serve de consolo, e provavelmente não serve, vai ser mais ou menos como foi a revolução da comunicação que a maioria de nós vivemos na virada do século. De repente você nem lembra mais como era viver antes da internet. Algumas pessoas vão conseguir esse sonho do emprego estável, mas pelo visto a maioria vai ter que aprender a ser coringa enquanto se vira para manter o próprio padrão de vida.

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