A realidade da pandemia.

Estou um pouco surpresa com as reações de muitos às fracassadas tentativas de abertura de diversos países em meio à pandemia. Tenho a impressão de que ninguém entendeu nada, de que não há sequer um resquício de compreensão sobre como funciona a ciência, o vírus e as estratégias adotadas. Isso ou o ser humano é um bicho mimadinho que, se não tiver o exato resultado que o agrade, decreta que não serve.

Estamos em meio a uma pandemia de um vírus respiratório com baixa letalidade, porém com grande capacidade de transmissão. Isto quer dizer que alguns países fatalmente vão performar melhor do que outros na hora de tentar reabrir. O combo instrução + densidade demográfica + economia é determinante para maior ou menor sucesso na reabertura.

Não é tecnicamente possível que todos os países consigam reabrir, ainda que parcialmente, e manter o número de casos controlados. Deve ser o desejo de muitos, e qualquer coisa que foge disso é um fracasso, mas não é humanamente possível conter de uma vez o coronavírus sem vacina. E muitos usam essa impossibilidade de abertura sem aumento de casos como argumento falar muita besteira, inclusive que fechar é inútil e certo está o Brasil, que não faz porra nenhuma.

É desonesto pegar países com baixa densidade demográfica, com pessoas instruídas e com uma economia bem estruturada e comparar com outros com alta densidade demográfica em centros urbanos, povo com pouca instrução e economia capengando e dizer “A Nova Zelândia fez tudo certo, por isso reabriu sem problemas. E quando tem um caso novo, controlam rapidamente”.

A Nova Zelândia é uma ilha, com pessoas instruídas e tão educadas que devem espirrar para dentro, com uma boa economia e com uma presidente foda que sorri para terremoto. Ter menos controle sobre o vírus do que a Nova Zelândia não faz do país um fracasso, faz dele uma realidade diferente. Quando junta a alta densidade demográfica, com baixa instrução com pobreza, não parece ser possível controlar o vírus sem uma vacina, é um cenário desfavorável onde só o lockdown segura. E não dá para ficar dois anos de lockdown.

Então, o que seria uma vitória nesse cenário desfavorável, onde é praticamente impossível controlar o vírus sem vacina? Que todos tenham acesso a atendimento médico e tratamento. Que não falte respirador para ninguém. Que os médicos não tenham que escolher quem vive e quem morre. Que hospitais não tenham que colocar containers frigoríficos para armazenar excesso de corpos. Que não seja preciso abrir covas rasas pois os cemitérios não dão conta da quantidade de mortos. Não passar por isso é uma vitória quando as condições são desfavoráveis.

Está longe de ser o ideal, está longe de ser o que nós gostaríamos, mas é o que se pode fazer no mundo do possível. Pode não parecer muito para quem está focado no próprio umbigo e na vontade de ir a uma festinha, mas não passar pelos horrores descritos no parágrafo acima é muito, e se você mora em um país que não passou por isso, seu país foi vitorioso sim. Se você mora em um país onde quem podia ser salvo, foi, você é um privilegiado.

É extremamente desonesto o discurso que estão promovendo no Brasil e em outras partes do mundo dizendo que “tá vendo? Tal país fez quarentena e agora está se fodendo, não adiantou nada”. Adiantou sim, filho da puta. Muitas vidas foram salvas pela quarentena. Ganhou-se tempo para equipar o sistema de saúde, coisa que não é fácil em meio a uma pandemia, quando literalmente o mundo todo está tentando comprar respirador, quanto o Trump vai e compra o que você tinha comprado por cima da sua compra, oferecendo o dobro do valor.

Não zerar os casos, não erradicar a doença, não é sinônimo de que “não adiantou nada”. Querer colocar o Brasil como espertão por não ter feito nada é um discurso medonho. Um país com mais de cem mil mortos e com 500 mortes por milhão não é exemplo de nada. O Brasil errou e continua errando, o fato de outros países enfrentarem dificuldades não torna o Brasil certo.

Países que estão tentando reabrir e estão enfrentando um aumento de casos não são fracassados. É exatamente isso que se esperava que acontecesse. A pessoa precisa ser bem demente para entender que com a quarentena o vírus vai embora e depois você reabre sem problema algum. A quarentena não se destina a erradicar o vírus, ela serve para se ganhar tempo para equipar o sistema de saúde e para diminuir o ritmo de contágio da doença, de modo a que não adoeça todo mundo ao mesmo tempo e colapse os hospitais.

É sabido, previsto e esperado que em uma reabertura os casos aumentem. É um pensamento extremamente infantil e desinformado achar que esse aumento de casos é sinal de fracasso da quarentena. Os casos aumentam, mas se o sistema de saúde segura, se o país não tem mortos pelas ruas, se hospitais não deixam gente morrer por falta de tratamento, o país fez um bom trabalho. É uma pandemia, uma tragédia, uma catástrofe, não um passeio no parque. Na vida, às vezes, o melhor cenário continua sendo ruim.

E até que tenhamos uma vacina, e por ter eu não me refiro à “descoberta” e sim a toda a população efetivamente vacinada, países nestas condições desfavoráveis terão que viver à base de quarentena intermitente: quando o número de mortes sobe muito e coloca em risco o sistema de saúde, fecha um pouco mais, quando o número de mortes cai e dá uma folga para o sistema de saúde, abre um pouco mais. Essa é a nova realidade. E se um país promove esta realidade, ele não é um fracassado, ele soube lidar com uma pandemia.

Não tem solução mágica que traga o “antigo normal” de volta. Não tem solução rápida. Não tem solução ideal onde você usa um suposto medicamento, uma oração ou uma medida e tudo se resolve. O melhor cenário possível para países em condições desfavoráveis ainda vai ser uma merda. E ainda vai demorar pelo menos um ano nesse esquema, se não mais. Não vai ter nenhum salvador da pátria, nenhum chá milagroso, nenhuma grande descoberta que reverta isso este ano ainda. Não é assim que a ciência funciona.

E quanto mais democrático for o país vulnerável, mais difícil fica. Em países que não prezam pela democracia fica mais fácil conter o povo. Não adianta citar a China como modelo na solução de pandemia se depois a pessoa fica toda nervosinha por levar uma dura de um guarda. Não tem almoço de graça. A China só conteve da forma rápida e eficiente por pisotear a democracia e impor ordens a seus cidadãos que foram cumpridas, muitas vezes, na base da arbitrariedade e violência. Não dá para pegar o melhor de dois mundos. Elogiar o controle da doença na China é elogiar, por tabela, um regime pouco democrático.

O que os governos podem fazer agora: testar o máximo que puder a população, fazer rastreio de quem entrou em contato com os infectados, tentar isolar essas pessoas infectadas ou com suspeita de covid, tentar aumentar a quantidade de leitos hospitalares, sobretudo de UTIs, de respiradores e de intensivistas e monitorar o número de casos, de internações e de mortes, para restringir ou ampliar a circulação de pessoas quando se faça necessários. Não tem milagre. Não tem solução mágica. Isso é o que existe no mundo real. Se o seu governo está fazendo isso, jogue suas mãos para o céu, seu país é um vencedor, apesar das mortes, apesar do aumento de casos.

Pretender que não ocorram mais casos, que os casos não se alastrem, que não venha uma segunda onda, quando um país está repleto de ignorantes, quando em uma única casa de um cômodo moram 8 pessoas, quando a economia está na merda é devaneio. Eu gostaria que fosse possível? Sim, claro, mas é aquela velha frase: as coisas são como elas são, não como a gente gostaria que elas fossem.

Ao contrário de cães, pessoas não podem ser ensinadas em poucas semanas. Quem é ignorante vai continuar não entendendo quão grave é a situação e quais medidas devem ser tomadas. Vai continuar tirando a máscara para espirrar no meio da rua. Vai continuar com discurso dual entre salvar a economia e salvar vidas. O preço que se paga por manter uma população ignorante é esse: quando se precisa da colaboração de todos, ela não vem.

Uma economia capenga não permite equipar o sistema de saúde como se deveria, portanto, são menos leitos, menos respiradores e menos médicos do que se gostaria e, por consequência, menos margem para deixar as pessoas saírem e irem se contaminando lentamente. As pessoas precisarão se contaminar muito lentamente, para que um sistema de saúde capenga possa atender a todos.

A densidade demográfica também não se resolve em questão de meses. Onde há aglomeramentos, muitas pessoas morando no mesmo cômodo, onde há problemas habitacionais haverá maior contágio. Para resolver isso seriam necessários anos, talvez décadas, reordenando a população de forma equilibrada e assegurando uma moradia digna para todos.

Se o vírus vai continuar aparecendo, então é inútil sujeitar as pessoas a privações como quarentena? Óbvio que não. Não conseguir erradicar não é justificativa para não fazer absolutamente nada. Se há uma forma de minimizar o contágio, ainda que não seja possível zerar os casos, ela deve ser adotada.

Se você acha aceitável mortos na rua, gente sem atendimento, médico escolhendo quem vive quem morre, cova rasa e caminhão frigorífico levando pilhas de corpos, você perdeu sua humanidade. Não fazer nada jamais deveria ser cogitado como uma opção. Pelo visto, no Brasil, é uma opção, já que metade da população acha que Bolsonaro não teve qualquer responsabilidade pelos mais de cem mil mortos da pandemia. Esse é o brasileiro.

Não adianta dizer que no Brasil morreu muita gente por ser um país muito populoso, o argumento favorito dos ignorantes. O Brasil tem uma média de 500 mortes por milhão de habitantes, uma das mais altas do mundo. Não fazer nada mata pessoas que poderiam sobreviver em outras condições. Isso sim tem que ser criticado, em vez de ficar metendo o pau em quarentena. O Brasil parece aquele aluno merda que só tira nota baixa e ridiculariza quem estuda, só que em uma versão adulta.

Se você olhava para países em condições desfavoráveis com a meta de erradicar o vírus, repense. Não é uma possibilidade. Em condições desfavoráveis vai morrer gente. O melhor que estes países podem conseguir é não incorrer na tragédia que aconteceu e continua acontecendo no Brasil: mais de mil mortos por dia, com subnotificação. Mais de três milhões de contagiados. ISSO pode ser evitado.

Não vá para nenhum desses extremos: de achar que quem tem novos casos é fracassado ou de achar que quem não fez nada é que foi esperto, pois de uma forma ou de outra os novos casos voltariam. A meta, no momento, não é erradicar o vírus, esta ainda não é uma possibilidade. A meta é fazer com que a população se contagie da forma mais lenta possível e tenha o melhor atendimento possível quando infectada.

No momento, o melhor que pode ser feito não é o que gostaríamos. Mas não é por isso que quem o faz fracassa ou que não se deva fazer nada. Críticas são válidas, quando não pedem o impossível.

Para dizer que se não for exatamente do jeito que você quer é considerado um fracasso, para dizer que não sabe do que eu estou falando pois no Brasil não tem pandemia ou ainda para dizer que ninguém se importa mais com coronavírus: sally@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: ,

Comments (8)

  • Vamos ver o que vai acontecer com a Europa depois que o verão passar. Eu tenho certeza de que eles voltarão para a quarentena. A Itália, França e cia estão se comportando de forma irresponsável também.

  • Tenho a impressão de que ninguém entendeu nada, de que não há sequer um resquício de compreensão sobre como funciona a ciência, o vírus e as estratégias adotadas. Isso ou o ser humano é um bicho mimadinho que, se não tiver o exato resultado que o agrade, decreta que não serve.

    As duas coisas, Sally. Eu já te disse antes, mas me sinto compelido a repetir agora: estou tendendo mesmo é à misantropia. Salvo raras exceções, já faz um bom tempo que eu não ando mais com paciência para lidar com pessoas. E brasileiro é do tipo que não gosta de pensar e, quando “pensa” – as aspas são necessárias – deixam o lugar em que está fedendo.

  • Num país “pró-vida” como o Brasil, 100 mil mortos em 4 meses de pandemia, cerca de 70 mil homicídios per ano, e o maior consumo de Rivotril do mundo definitivamente nao é mais importante que fazer aglomeraçao tumultuosa em porta de hospital “em nome de Deus” por feto na barriga de criança de 10 anos… Matar feto de estupro que é a barbárie contra a vida humana!

    • É muito revoltante, mas, se você observar, desta vez o brasileiro se voltou em massa contra a meia dúzia de malucos que criticavam o aborto.

  • O fato é que as pessoas já cansaram disso. O berço da pandemia Wuhan já tá fazendo rave com multidão sem máscara, a Anitta já foi rebolar o rabo no show da Itália onde teve aquela tragédia, cercada de multidão sem máscara. Virou rotina, vai perdendo importância.

    • Outros países estão abrindo por terem feito seu dever de casa, nem que seja na base da força, como fez a China, que colocou soldado na porta da casa das pessoas e não deixou sair para nada.

      Um país que não fez porra nenhuma não pode se comparar a países que fizeram, que tem realidade demográficas, econômicas e de instrução diferentes. O Brasil é um país de população burra, pobre e aglomerada, isso tem um preço, que é se foder muito mais do que quem tem um população instruída, distanciada e inteligente.

Deixe um comentário para Anônimo Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: