Incompetência sem vergonha.

Eu tenho um problema recorrente na minha vida profissional: extrema sensibilidade a ser chamado de incompetente ou preguiçoso. Poucas coisas me deixam mais incomodado. Na hora eu fico muito irritado, e em alguns casos, passo dias mastigando esse sentimento podre. Já fiquei sem dormir algumas vezes por causa disso. Não deve fazer bem para minha saúde, por isso acho importante processar esse sentimento cada vez melhor e lidar com isso de forma mais serena, mas… espero, de coração, que ele nunca desapareça de vez.

E vejam bem, não é a mesma coisa que ficar irritado com críticas. Uma boa crítica pode te fazer se sentir mal por um tempo (é humano), mas ela não é um ataque pessoal. É uma análise pontual sobre algo que você fez ou disse. Se você souber ouvir e utilizar aquela informação, pode ser algo muito positivo. Ter sensibilidade a ser chamado de incompetente ou preguiçoso é diferente de ter sensibilidade a ser criticado. A primeira é sobre algo que você é, a segunda é sobre algo que você fez.

Muito embora sensibilidade excessiva às críticas seja um problema sério, ainda mais em sociedades como a brasileira, onde é considerado falta de educação criticar (explica muita coisa, não?), esse não vai ser o meu foco hoje. Muita gente fala disso, e frequentemente pelo ângulo certo: aceite críticas porque elas têm o potencial de te fazer uma pessoa ou profissional melhor. Agora, o que eu noto em muita gente é uma completa falta de incômodo com a ideia de ser vista como incompetente ou preguiçosa, e disso pouca gente fala.

Na minha profissão, eu tenho uma visão privilegiada do funcionamento de várias empresas diferentes, em vários níveis da organização. Do diretor ao atendente da loja, com todas as etapas no caminho. Isso foi me fazendo perceber duas coisas: a futilidade da existência humana (sobre a qual não vou falar hoje) e uma falta de vergonha na cara endêmica. Claro que eu lidei com muita gente esforçada e capaz nas suas funções, mas em todo lugar parece que há uma maioria silenciosa de gente que não tem o menor problema com o conceito de preguiça e incompetência.

Se tiverem um bom chefe, essa gente trabalha, mas no limite do que lhes é cobrado. Como publicitário, às vezes eu faço pedidos fora do padrão para esses trabalhadores, coisas que saem um pouco ou muito da sua rotina: um relatório das vendas do último ano contando apenas as clientes mulheres com mais de 50 anos, um desenho técnico do produto de ponta cabeça para fazer uma reflexão numa arte, uma descrição detalhada sobre a história da empresa… ou responder um e-mail dizendo sim ou não. Várias coisas que ninguém está acostumado a fazer no dia a dia, que exigem pensar ou agir de forma diferente.

É aí que fica clara a completa falta de vergonha de muitas dessas pessoas de admitir que não estão nem aí: tratam pedidos diferentes dos que fazem normalmente como se estivessem fazendo um favor, mesmo sabendo que eu estou cobrando por um contrato com tempo pré-definido. E não estou falando só de funcionários assalariados, muitas vezes esse desinteresse vem de quem está colocando a mão no bolso para me pagar. Escuto um discurso desesperado de como a empresa precisa vender mais e já vi contrato acabar antes do cliente me mandar uma lista dos produtos dele para criar uma loja virtual. Hoje em dia eu já não tenho tanto esse tipo de problema por saber fazer uma peneira melhor dos clientes e já saber dar as dicas de como eles devem se organizar, mas no passado esse tipo de desinteresse alheio em fazer as coisas direito quase me fez desistir da profissão.

E eu tenho certeza que todo mundo que trabalha com empresas tem histórias parecidas para contar. Incompetência e preguiça são uma praga no mercado brasileiro, mas não porque o brasileiro nasce pior que outros povos, e sim porque essa mania de querer contemporizar e agradar todo mundo cobra esse preço. Se criticar alguém por algo que fez e pode consertar é visto como uma ofensa, imagine só falar sobre a relação da pessoa com o trabalho em geral? Gente que não está nem aí nada de braçada nesse mar de vistas grossas.

Eu nem lembro mais quando escrevi esse texto, mas lembro que escrevi sobre como fazer as coisas nas coxas não é necessariamente falta de caráter, muitas vezes é falta de incentivo externo. Quem ganha um salário muito baixo normalmente não se esforça muito, e apesar de achar que isso não é bom para a vida da pessoa no longo prazo, é compreensível sim, você recebe o que você paga. Ou às vezes a pessoa ganha um salário decente, mas está cercada por gente que não se importa com qualidade e acaba vencida pelos números. Eu não estou com aquele papo de coach que você é obrigado a se esforçar horrores por tudo, direito seu não achar que vale a pena também. Nem todo mundo quer ser admirado pelo seu lado profissional.

Mas esses são casos extremos: uma pessoa que já se entendeu tão bem ao ponto de saber que sua felicidade não passa nem em parte pelo sucesso profissional é uma pessoa rara. Pouca gente consegue ficar segura depois de uma decisão dessas. A maioria de nós fica tentando equilibrar diversas áreas da vida, num malabarismo de pratos que provavelmente só a velhice vai nos ajudar a resolver. Mas nesse meio tempo, podemos prestar mais atenção nesse sentimento de vergonha e/ou revolta de ser considerado incompetente ou preguiçoso.

Argumento que essa é a direção certa, mas como em tantas outras coisas da vida, desde que você não torne isso uma fonte de sofrimento. É saudável ter alguma coisa que te provoque para não ficar na zona de conforto, e é essencial para qualquer tipo de evolução pessoal: ninguém é mecânico ao ponto de não ter nenhum sentimento por trás da ideia lógica de que sempre podemos melhorar no que fazemos e que provavelmente podemos fazer um pouco mais do que já fazemos. Sem um pouco de combustível na fogueira da vaidade, é complicado achar motivação.

Quem deixa essa chama se extinguir acaba virando o tipo de pessoa que eu critico: quem não está nem aí se está fazendo seu trabalho direito. Eu já tive várias pessoas trabalhando pra mim, e posso garantir que preferia muito mais quem errasse muito no começo por entusiasmo do que quem estava basicamente sempre na mesma, sempre fazendo o seguro. Quem erra muito aprende muito, desde, é claro, que tenha capacidade de ouvir críticas. Depois de algum tempo, a pessoa que não tem esse orgulho pessoal de fazer seu trabalho direito e melhorar começa a compensar os erros com uma capacidade muito maior de produção e especialmente adaptação, porque rapidamente conseguem se adaptar a outras tarefas (o que já é essencial no mercado atual). Eu já vi jovens de 17, 18 anos que estavam com a chama apagada, fazendo estritamente o que era pedido e nunca arriscando fazer algo diferente. E me entristecia, porque às vezes você via o potencial técnico da pessoa, mas não tinha como extrair. Você vê que salvo um evento grandioso, a pessoa provavelmente ia ficar daquele jeito pra sempre.

A pessoa que perde a vergonha de ser medíocre (pra baixo) não costuma perceber sozinha. E quando não tem ninguém por perto para deixar isso claro para ela, pode acabar achando que está tudo bem e que é puro azar que nada avança na sua vida profissional (ou inveja, ou conspiração, sabe-se lá o que vai racionalizar). Eu realmente acredito que esse seja o ambiente que gera a incompetência generalizada brasileira: pouca gente tem a oportunidade de sequer conviver com alguém que realmente sabe trabalhar além do básico. Eu tive a sorte de ter bons exemplos, inclusive depois de adulto. A Sally, por exemplo: a constância dela em sempre entregar o que promete não importa o custo foi me ensinando que eu tinha menos vergonha do que deveria de não ser confiável com prazos.

Nem todo mundo tem essas oportunidades de ter uma comparação próxima, o mais comum é trabalhar com gente que faz o que precisa na medida que precisa e nada mais. Que demora semanas para responder um e-mail que não faz parte do fluxo normal de trabalho, que não sabe nem por onde começar quando tem que se adaptar a uma nova função… e que no final das contas, não tem nem um incômodo interno com a própria inépcia. Novamente, não é sobre ter vergonha de errar, errar é normal, acontece aos montes mesmo com excelentes profissionais, é sobre ter vergonha de não entregar o seu melhor.

Acabamos com uma mentalidade torta que diz que é melhor ser preguiçoso do que cometer erros. O medo de ser criticado é tão grande que paralisa muita gente. Por isso eu separei errar de ser incompetente o texto todo: o incompetente é aquele que erra ou acerta sem se importar com o que está fazendo. Sem tentar melhorar, sem aprender com as experiências. É esse o incompetente que te deixa maluco quando depende de qualquer serviço no Brasil, o que erra uma vez, finge que não é com ele, faz ainda mais nas coxas quando pressionado e depois se ofende quando ouve a verdade. Essa pessoa perdeu a vaidade sobre sua capacidade de fazer as coisas direito. Quem erra (não sendo um médico, piloto ou um engenheiro) normalmente não gera um problema tão grande assim, e se demonstrar que se importa mesmo e der conta do recado em outra tentativa é capaz de gerar ainda mais respeito e senso de valor em outras pessoas.

Nós sabemos reconhecer quem se importa. Você vê nos olhos da pessoa, você depreende de suas ações. E pode apostar que os outros enxergam isso em você. Tenha muito mais vergonha de fazer um coisa mais ou menos por preguiça do que cometer um erro com a melhor das suas capacidades. Só assim que se combate a incompetência. E quando você se destaca assim, se tiver mais uma pessoa com vergonha na cara por perto, as coisas evoluem. Se você se esforça e ninguém ao seu redor parece se importar, saia correndo desse emprego, porque a incompetência já tomou conta e logo logo vai infectar você, se já não infectou. Nada pior que se sentir totalmente à vontade num trabalho cercado por gente que você considera ruim no que faz por desinteresse, quer dizer que você já está cooptado pelo menor denominador comum.

Preste atenção no que você faz agora. Se você não sente nenhuma vontade de fazer melhor ou não se dói porque alguém te passou a impressão que você é preguiçoso, é hora de se mexer, porque a incompetência já está se instalando.

Para dizer que foi um texto preguiçoso e incompetente (se eu não estou cobrando, sou imune), para dizer que não te pagam o suficiente (não pagam para quase ninguém no mundo), ou mesmo para dizer que está só treinando para ser político: somir@desfavor.com

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Comments (20)

  • Você já foi recrutador, Somir?
    Se foi, você poderia fazer um texto a respeito. Queria tanto entender o que raios significa “você não se enquadrou no perfil” e outras coisas desse mundo. Que tal “perfil” é esse que as empresas procuram? Já cansei de receber essa maldita resposta e não saber o que fazer pra melhorar. (meu contexto: 23 anos, bilíngue, recém-formado buscando o primeiro emprego, pais idosos e pobres)

    Estou perdendo as esperanças de achar algum emprego algum dia, e conforme estou envelhecendo vai ficar ainda mais difícil, acho que meu destino é ir morar debaixo da ponte depois que meus pais morrerem…

  • No mercado de trabalho e mais de alguns anos pra cá, quem é realmente bom no que faz e até consegue entregar mais do que o esperado, é penalizado….
    Explico: quando alguém vai além do que se espera e demonstra capacidade de administração dos prazos, demandas, absorve mais do que a rotina, é dinâmico e flexível, vai invariavelmente ter que fazer o trabalho daqueles que não conseguem, não sabem, ou não tem competência suficiente pra fazer.
    Daí essa pessoa de “destaque” é sobrecarregada pelas incompetências alheias +a preguiça do colega ou chefe; por que em geral as pessoas que são preguiçosas se tornam incompetentes e acomodadíssimas, afinal sempre tem alguém pra fazer o que não deram conta ( estenda isso até pra dentro da famílias, casas, pares, etc)
    E aí, quem chora e se faz de vítima, leva a “vantagem” de ficar na mesma ou entregar o menos possível porque alguém fará o que ela não pode/não conseguiu/não teve o mínimo de esforço pra fazer.
    É aquela história: “quem não trabalha, dá TRABALHO”

    • Passei por isso numa empresa, EDESS. Acabei me destacando demais pelo bom serviço, e carreguei o peso nas costas de gente incompetente, foi tenso!

  • Cumpadi Uóshito Cintura

    Finalmente as semanas Sim Senhora da “Frangomorfose” e do “Anel da Bunda” foram compreendidas. Parabéns, Somir!

  • “Eu tive a sorte de ter bons exemplos, inclusive depois de adulto. A Sally, por exemplo”
    Somir, eu acho impressionante como a Sally é pontual e nunca fura uma postagem. Ela é fora do comum, pode ter um terremoto que ela dá um jeito de escrever algo e postar no dia!
    Aí eu lembro do meu finado bloguinho que praticamente morreu de fome por falta de atualizações e penso, pqp, que vexame!

    • Isso se a gente acreditar que é um problema intrinsecamente brasileiro. Será mesmo que nos prédios comerciais da China também não tá cheio de gente fazendo só o básico?

      (Mais ou menos off-topic, já ajudei a montar estande pra uma empresa chinesa, que mandava funcionários pra acompanhar a montagem e representar a empresa durante o evento. O intérprete já tinha trabalhado com eles em anos anteriores e me disse que muitos desses chineses só voltavam pra China porque eram obrigados, se pudessem ficavam por aqui.)

  • parece que há uma maioria silenciosa de gente que não tem o menor problema com o conceito de preguiça e incompetência
    NPC theory? Li isso no fórum do trevinho há um tempão atrás e nunca mais esqueci. De fato, a maioria das pessoas vai morrer sem fazer muita coisa além do básico. Vai ter notas medianas na escola e na faculdade, desempenho mediano no trabalho, desempenho mediano na criação dos filhos medianos, etc. É um ciclo que tem dado certo(?) há séculos.

    • Eu tenho um texto inteiro sobre o começo dessa meme/teoria (memeteoria?) falando sobre como é uma observação ao mesmo tempo realista e intelectualmente desonesta sobre a humanidade. É difícil dar muito crédito a uma ideia cujo objetivo é desumanizar o “adversário” justamente enquanto há uma guerra cultural em atividade. Parece muito conveniente, não?

      De perto, ninguém é mediano. Afinal, a média só existe se você se afastar o suficiente. Eu acredito mais em grandes movimentos da sociedade que não são fáceis de enxergar enquanto você está dentro deles, mas não que ninguém nasça destinado a ser de uma forma ou outra.

      • Eu nem levo essa teoria muito pro lado da guerra cultural, mas essa premissa de que existem pessoas que passam mais tempo no piloto automático do que tomando iniciativas próprias é bem realista. E isso independe de ideologia, gênero, idade, etnia…

  • o mundo de hoje é uma merda porque premia o fraco, o patético… quanto mais frágil e chorão você for, mais você ganha chances e coisas.

  • Se for parar pra pensar, pelo menos 60% das profissões que existem são inúteis, só existem pra manter o macaco médio ocupado ou pra não deixá-lo morrer de fome enquanto a renda básica universal ainda não é implementada.
    Esta semana saiu uma notícia de que a Alemanha vai fazer um experimento de renda básica universal num grupo de alemães durante uns 3 anos. Vai ser interessante acompanhar.

    • Depois que o ser humano conseguiu produzir mais comida do que precisava com consistência, o resto da nossa jornada foi só a gente entretendo uns aos outros, porque a luta “contra a natureza” estava ganha. Profissão inútil feita com excelência ainda pode tornar esse mundo mais interessante. Mas muita gente nem isso acaba fazendo…

      Eu acho que o mundo vira para Renda Básica Universal antes de eu morrer. Está ficando complicado achar outra solução.

    • Tá, mas essa renda básica universal quem banca vai ser um fundo global da nova ordem mundial ou cada país banca o seu? Porque na Alemanha deve dar pra sobreviver, mas aqui a esmola de 600 contos foi com choradeira e tão dizendo que vai cair pra 200 ou 100 porque não tem dinheiro.

  • “Eu já vi jovens de 17, 18 anos que estavam com a chama apagada, fazendo estritamente o que era pedido e nunca arriscando fazer algo diferente. ”
    E se a própria cultura da inveja estiver fazendo isso? A pessoa pensa tipo “ah eu não vou me destacar demais senão vou parecer metido e meus colegas vão me detestar”. Pelo menos pra mim, esse costuma ser meu modus operandi. Contanto que eu tenha comida e minha luz não seja cortada, tranquilo.

    E a maior ambição profissional do jovem brasileiro médio é fazer concurso público, qualquer incentivo à inovação e autonomia é sumariamente castrado com impostos abusivos, leis malucas, tudo é projetado pra arrastar o cidadão pra pobreza sob a desculpa de “proteção”. Igual como tentam acabar com o Uber e similares.

    • Aí que está, eu realmente duvido que alguém tão novo alcançou um grau de evolução pessoal tão grande ao ponto de saber que não liga para essa “baboseira capitalista”. Como eu disse no texto, é um caminho válido se a pessoa entende o custo e aceita pagar.

      Incompetência acaba se tornando a cultura vigente, e o que acaba sendo pior é que depois de um tempo a pessoa vai procurar coach estelionatário que diz que “acordar as 5 da manhã” vai mudar a vida dela, sem saber da armadilha na qual entrou lá no começo da carreira ao achar que está tudo bem perder a vergonha de cumprir apenas uma média puxada para baixo por outros desistentes.

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