Mal concentrado.

Começamos a semana de comemoração do Dia de Sísifo aqui na República Impopular do Desfavor, homenageando as iniciativas mais inúteis da humanidade. E é claro que em 2020 o foco vai ser na medicina alternativa: desde que o mundo é mundo o ser humano tenta todo tipo de maluquice para cuidar de seus problemas de saúde, mas desde que o método científico assumiu a dianteira no campo da medicina, começou a ficar claro o que funcionava e o que não. Mas… e não é que muita gente continua teimando com superstições?

Sally e Somir concordam que homeopatia é uma das piores, senão a pior crendice medicinal no Brasil, mas não conseguem entrar em acordo sobre qual o princípio mais ativo dessa bizarrice toda. Os impopulares diluem a polêmica.

Tema de hoje: qual a pior parte da homeopatia?

SOMIR

A base de sustentação que ela dá para diversas outras formas de medicina alternativa e pensamento negacionista científico no país. Sim, eu acho que é uma vergonha que essa forma de tratamento sem nenhuma comprovação tenha chancela legal do governo tupiniquim, mas pode-se argumentar que o povão mal sabe disso, ou mesmo se importa com a opinião oficial do Estado brasileiro: no país de “lei que não pega” tudo é mais relativo.

Do meu ponto de vista, a parte mais terrível da prevalência da homeopatia como uma forma de medicina no Brasil é como isso vai erodindo as bases do pensamento crítico da população. Se você vive numa realidade onde vender água ou pílulas de açúcar dizendo que são remédios não é algo confrontado ou no mínimo mal visto pela maioria, a barreira para rejeitar pseudociência e/ou insanidades conspiratórias em geral vai ficando cada vez menor.

Sei que tem muita gente que acredita, ou pelo menos dá o benefício da dúvida mesmo em recortes mais bem educados da nossa população, e isso pode deixar muita gente em cima do muro, achando que tem algo ali que ainda não pode ser explicado pela ciência. Muito embora a ciência ainda desconheça muito mais do que conheça, nesse ponto da homeopatia estamos bem seguros. Não há lógica química ou física que suporte a ideia de “memória da água”.

A homeopatia diz que a água consegue lembrar das substâncias que entraram em contato com ela e de alguma forma, agir como se fosse essa substância. Basta um conhecimento rudimentar de química e física para perceber como isso é impossível. Não é assim que átomos e moléculas funcionam para absolutamente todas as outras coisas do mundo, e não é assim que a molécula da água funciona em qualquer outro contexto possível e imaginário. É mais ou menos como se alguém dissesse que colocar guaraná no tanque do carro fizesse ele andar: os elementos básicos do funcionamento de um combustível simplesmente não estão na bebida.

É ridículo ter que discutir isso. Mas, é claro, o fiel da religião homeopata corre desse ponto assim que descobre que está conversando com alguém que enxerga a bizarrice pseudocientífica da explicação técnica, e vai buscar abrigo na ideia de que “funciona pra muita gente”. Se o ser humano não fosse capaz de se curar da imensa maioria dos problemas de saúde que tem sem intervenção externa, não duraria uma semana como espécie. Você se cura sozinho de praticamente tudo o que a natureza joga contra você, e não são poucas coisas. Todo dia seu sistema imunológico evita que alguma bactéria ou vírus tome conta do organismo, todo dia uma porcentagem do seu corpo se renova para evitar o desgaste do tempo. Existem mecanismos naturais para evitar câncer, mecanismos de correção de erros de DNA, respostas químicas para desequilíbrios internos…

Para doenças que passam da capacidade do corpo de lidar sozinho, existe a medicina. E mesmo assim, sempre dentro das capacidades do corpo humano. Não existe remédio ou reza que faça nascer de novo um membro amputado, por exemplo. Mas o que pode ser curado? Aí a chance sempre existe. O fato de tomar um remédio homeopático e se curar de uma doença ou mal estar não é prova do funcionamento da homeopatia. Muitas pessoas se curam das mesmas coisas sem utilizar. É a analogia do amuleto anti-tigre: se eu te der um amuleto que evita o ataque de tigres e você nunca for atacado por tigres na sua vida, quer dizer que o amuleto funciona? Ou existem outras explicações mais óbvias para o mesmo fato?

Não há desculpa racional para acreditar em homeopatia. É indiferenciável de simpatia e superstição. Mas, assim como simpatia e superstição, muita gente acredita, ou… acha que mal não faz. Só que é justamente aí que mora o perigo: quando você abre a porta para o seu cérebro ignorar coisas óbvias em troca de conforto, ele vai continuar repetindo esse tipo de caminho neural. Se você pode ignorar a ciência no caso da homeopatia, pode ignorar no caso das vacinas, no caso de usar máscara… e aí, talvez nem seja tão difícil assim começar a pensar que a Terra pode não ser redonda…

Se você pode olhar para fatos científicos estudados por séculos e ainda sim ignorar tudo isso “porque mal não faz”, deixou um buraco na sua capacidade de compreender a realidade que uma hora ou outra pode te engolir. Parece que homeopatia é só uma coisinha que você faz que não causa problemas para ninguém, mas é um bueiro aberto na sua mente. Se ninguém ao seu redor confronta essa ideia bizarra de homeopatia, isso acaba dentro da sua cabeça, como se fosse um bug que complica a compreensão de diversos outros temas. Seu inconsciente sabe que você deixou passar algo completamente sem sentido, e isso vai complicar sua capacidade de entender a realidade em algum momento.

E enquanto pessoas como eu forem tratadas como chatas que se preocupam demais, mais e mais pessoas vão continuar tendo contato com insanidades como a homeopatia sem nenhuma forma de proteção. Isso acumula. Tanto que… acumulou. Vivemos numa era de desinformação e negação científica, que se não foi criada exclusivamente pela homeopatia, foi ajudada em muito pela falha gritante no funcionamento da realidade que sua crença gerou na cabeça de milhões de pessoas.

Medicina alternativa é uma doença social, e o remédio é conhecimento. Homeopatia faz mal sim, não para uma pessoa em específico, mas para todos nós ao mesmo tempo.

Para dizer que funciona pra você, pra dizer que é inveja da esperteza de quem vende água como remédio, ou mesmo para dizer que não faz mal (já fez pra você): somir@desfavor.com

SALLY

Para celebrar o próximo feriado nacional de domingo, Dia de Sísifo, resolvemos nos manter na pauta do ano: a saúde. Mas desta vez, pelo prisma da inutilidade. E nada retrata melhor inutilidade na saúde do que Homeopatia, a rainha do curandeirismo, a expressão máxima da dissonância com a ciência, o maior embuste de todos os tratamentos alternativos. Eu me recurso a chamar de “medicina alternativa”. Ou é medicina, ou é alternativo.

Qual é o pior aspecto quando falamos em homeopatia? Em minha opinião, a forma como ela é validada no Brasil. O fato dela ser reconhecida pelo Conselho Regional de Medicina desde 1980 dá credibilidade a algo que a ciência já comprovou sucessiva e exaustivamente que não funciona.

“Você não gosta de homeopatia?”, “Você discorda?”, “Para você não seu resultado?”, “você não acredita?”. Nenhuma dessas perguntas é cabível. Não estamos falando de algo passível de opinião. No que eu acredito ou não é irrelevante. Eu posso desacreditar de antibióticos que, ainda assim, eles vão matar bactérias. Ciência não depende de crenças, e sim de um método científico para provar ou refutar a eficácia de qualquer medicamento ou substância. E, ao longo de décadas, a ineficácia da homeopatia foi provada, não importa o que você ache a respeito.

A medicina começou a evoluir quando começou a se basear em evidências. Quando um pajé batia com uma folha na cabeça de alguém para espantar o espírito mau que estava deixando a pessoa doente, é possível que, por sugestão, a pessoa melhorasse. Mas não era ciência. Ciência são testes com duplo cego, justamente para descartar o efeito placebo. Ciência são estudos revisados pelos pares e publicados em revistas científicas de credibilidade. E, nestes termos, à luz da ciência, já foi provado centenas de vezes que homeopatia tem o mesmo percentual de eficácia que um placebo.

Os poucos testes que deram um resultado de eficácia ligeiramente maior do que o efeito placebo são distorções de gente mau caráter: como não são estudos sérios, usam uma amostragem pequena, menor do que a necessária para um resultado confiável, aumentando as chances de ter um desvio padrão maior.

Esses poucos testes feitos em desacordo com a ciência são amplamente ventilados, colocando um holofote no resultado. Como as pessoas não entendem nada de metodologia, acreditam que o resultado é válido. Mas quem entende sabe que são um embuste. Tanto é que não há um artigo científico sério, revisado pelos pares, publicado em uma revista científica médica séria endossando homeopatia.

A raiz do problema, na minha opinião, está no fato de ser reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina como um remédio. Quer vender? Vende. Mas como qualquer outra coisa que não seja remédio, para não enganar quem compra. Da mesma forma que vemos pessoas que compram cristais e acreditam que vai energizar sua casa ou ervas que vão espantar algo de ruim, homeopatia também pode ser consumida, mas sem o selo da ciência, pois a ciência já a desacreditou. A homeopatia se beneficia da credibilidade da ciência sem atender aos seus requisitos.

Daí você deve estar se perguntando, se é tão comprovadamente ineficaz, por qual motivo foi reconhecida, no Brasil, como uma especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina? A resposta é muito simples: foi uma decisão política, não técnica. Ela só chegou lá impulsionada por médicos militares homeopatas, que atuavam em benefício próprio, durante um regime de ditadura militar (que sabemos, faz questão de virar as costas para a ciência). Eles queriam avalizar seu estelionato e, graças a contatos políticos conseguiram.

Até mesmo em tese a homeopatia é risível. Dissolver uma substância cem vezes, sacudir para “energizar” e admitir que depois disso não sobra nenhuma molécula dessa substância, mas que “o solvente conserva a memória da substância que esteve nele dissolvido” me provoca uma crise de riso. Parece roteiro de filme B. Se você analisar o conteúdo do “remédio” homeopático não será capaz de detectar a substância que contém, pois não contém porra nenhuma, só uma “memória”.

Porém, o Brasil gasta dinheiro com algo comprovado como ineficaz pela ciência e dá acesso a esta porcaria pelo SUS, mesmo quando faltam medicamentos essenciais, como anestésicos. Não é apenas imoral que homeopatia tenha sido reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina, é imoral cada dia que ela continua neste posto e tem um aval que já foi provado não merecer. Pior do que o erro, é persistir no erro. Muitos países cometeram este erro, mas com o avanço da ciência e sucessivas provas da ineficiência da homeopatia o corrigiram.

Em países que levam a ciência a sério, homeopatia é uma piada. Em muitos ela nem foi inserida no sistema público de saúde. Mesmo os países que já abraçaram a homeopatia, estão pulando fora, como é o caso da França, que está banindo a homeopatia de seu sistema de saúde pública alegando a não eficácia do tratamento. Muitos outros países já perceberam que ela não tem que fazer parte de suas redes públicas de saúde, como Austrália, Reino Unido e Espanha. Nos EUA, há um aviso explicitando que esse remédio não tem comprovação científica.

Se você usou homeopatia e acha que funcionou, de dois um: ou seu sistema imunológico deu conta do problema sozinho e seu corpo te curou, ou sua mente foi sugestionada e resolveu o problema (efeito placebo). Você mesmo se curou. Seja racional: se o Brasil diz que é sério, tem grandes chances de não ser. “Mas Sally, meu cachorro usou, melhorou e ele não tem consciência do efeito placebo”. Sim, foi você e sua crença em que ele ia melhorar que fizeram o efeito. Donos mais tranquilos influenciam diretamente na saúde do animal, este tipo de efeito placebo dono/bicho já foi provado.

Mas não adianta mostrar centenas de estudos, não adianta explicar como funciona a ciência, não adianta nada quando se está em um país repleto de ignorantes que querem acreditar numa solução fácil e tem zero capacidade de lidar com frustrações. Qualquer fiapo de argumento é tábua de salvação e o Conselho Federal de Medicina se encarregou de dar o aval da ciência para algo que está cientificamente refutado.

Conferir a uma prática cientificamente desacreditada o aval da ciência é grotesco. Homeopatia apenas funciona como efeito placebo, isto é, para que talvez funcione é preciso que você acredite muito naquilo. É vergonhoso ver o Conselho Federal de Medicina dando algum reconhecimento ao que a ciência já PROVOU que não tem eficácia. É tão vergonhoso que mesmo médicos dóceis como Drauzio Varella hostilizam abertamente a homeopatia e sentem vergonha do reconhecimento gambiarrado que ela recebeu.

É apenas mais de muitas vergonhas que o Brasil protagoniza em matéria de desrespeito à ciência, porém, ela avaliza que milhões de pessoas sejam enganadas e percam dinheiro. O pilar de sustentação desse estelionato chamado “homeopatia” é o vergonhoso reconhecimento formal, adquirido na base da amizade e troca de favores entre militares obtusos, que hora acreditam na memória do solvente e hora acham que máscara não funciona, cloroquina funciona e coronavírus é uma gripezinha. O Brasil odeia a ciência.

Para dizer que militar + contra a ciência é redundância, para dizer que Brasil + vergonha é redundância ou ainda para dizer que esta semana vai ser um grande Processa Eu: sally@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Desfavores relacionados:

Etiquetas: ,

Comments (16)

  • Já mencionei algumas vezes em comentários antigos meus aqui no Desfavor o programa britânico “Horrible Histories” (“Deu A Louca Na Historia” na versão traduzida e dublada exibida por aqui) e lendo esta postagem me lembrei agora de uma coisa. Nesse programa infanto-juvenil – que no entanto também era divertidíssimo para os adultos -, havia um quadro sobre toda sorte de barbaridades cometidas como forma de medicina em diversos períodos históricos, da Grécia Antiga a princípios do século XX. Tinha cada coisa… Bizarrices que eram ao mesmo tempo ridículas e desumanas. E muitos daqueles absurdos sem qualquer respaldo científico mostrados nesse programa se pareciam muitíssimo com coisas pregadas pela homeopatia em nossos dias.

  • “Quer vender? Vende. Mas como qualquer outra coisa que não seja remédio, para não enganar quem compra.” Sally, quem vai atrás de homeopatia está mesmo a fim de ser enganado. Afinal, como você mesma disse: “não adianta mostrar centenas de estudos, não adianta explicar como funciona a ciência, não adianta nada quando se está em um país repleto de ignorantes que querem acreditar numa solução fácil e tem zero capacidade de lidar com frustrações”.

    • Complicado. Se você buscar no Google, em português, acha mil sites defendendo, com argumentos que, aos olhos de leigos, parecem convincentes e acha um ou dois refutando, com links para estudos em inglês ou espanhol. Quantos brasileiros conseguem ler e entender um estudo científico em outro idioma?

  • Um argumento que serve pra desacreditar de vez essa parada de homeopatia é que o cara do Cuzônio é “médico” homeopata.
    Não sei como esse povo tem paciência pra ficar seis anos naquele curso fodido de Medicina pra “rasgar” o diploma desse jeito…
    Pior, porque se o rasgassem fariam um grande bem e ao menos não teríamos merdas como Conselho Federal de Homeopatia.
    E pensar que essas ondas de “medicina” alternativa se mantém graças ao sucesso que fazem entre os hipsters de alto poder aquisitivo aqui no BR, que em grande parte dos casos ainda tá naquela choradeira do Foi Gôpi.

  • Impossível escolher um dos lados… acho que o fato dela ser validada pelo governo como aponta a Sally é o pontapé inicial de um processo que desemboca na erosão da racionalidade apontada pelo Somir. E realmente, é uma coisa tão surreal que o simples fato de você ter que argumentar contra isso é bizarro.

    Mas, conforme o Desfavor mesmo já disse, acho que o pior efeito disso é o fato de pessoas apelarem para a homeopatia para tratar alguma coisa séria que seria mais facilmente contornável tratando de verdade no começo, e só dando o braço a torcer depois de um tempo razoável, quando tratar esse problema vai exigir medicação mais pesada, um procedimento mais invasivo, e pode já ter deixado seqüelas irreversíveis. Na prática, é a mesma coisa de você ir tratar um problema sério num culto da Igreja Universal.

  • chazinho da vovó

    O que o Somir falou (negacionismo socialmente aceito) leva ao que a Sally falou (aval jurídico e estatal), logo fico com o Somir. O Estado e as leis são organizados por pessoas.

    “pra dizer que é inveja da esperteza ” Eu também sou desses que quando vê alguém faturando com malandragem, zoa que queria ter tido essa ideia antes, mas a real é que eu nunca teria coragem…

Deixe um comentário para W.O.J. Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: