“Medicina” Ortomolecular

Para completar a semana da inutilidade medicinal, resolvi pegar um dos maiores desafios: a “medicina” ortomolecular. Medicina entre aspas porque assim como os outros exemplos desta semana, assim que a modalidade é testada de forma rigorosa, os supostos efeitos positivos desaparecem. Mas ao contrário de maluquices óbvias como cristais mágicos, essa tem uma base muito mais forte do ponto de vista científico… e é aí que mora o perigo.

Primeiro problema: o pai da ortomolecular é ninguém menos do que Linus Pauling, um dos grandes cientistas da história da humanidade. Não dá para bater no currículo dele, cidadão ganhou um Nobel por ter basicamente criado a base da química moderna (do século XX). Linus não é pouca coisa, não tem nada a ver com os malucos aventureiros que criaram quase todas as outras formas de medicina alternativa que criticamos aqui. Ao contrário dos charlatões que foram alçados à categoria de cientistas sérios pelos defensores das suas terapias alternativas, na ortomolecular, temos um cientista sério de verdade lá no começo.

Segundo problema: a ideia da ortomolecular não é bizarra. Orto vem do grego “certo”, ou seja, é sobre achar as quantidades certas de cada molécula que nosso organismo precisa para se manter saudável. Nada de errado com isso: precisamos mesmo de uma série de vitaminas e minerais para o funcionamento correto do corpo e da mente. Quando você tem deficiências ou excessos, a chance de ter problemas de saúde começa a aumentar consideravelmente.

Se eu quisesse te vender a “medicina” ortomolecular, eu tenho certeza que conseguiria. Pouca gente nesse mundo tem o conhecimento necessário para processar informações sobre bioquímica e categorizá-las como corretas ou falsas. Se não estivéssemos na semana temática da medicina alternativa, eu aposto que a maioria de vocês não teria a mínima defesa contra os argumentos em prol da ortomolecular. Não estou chamando ninguém de burro, até porque se estivesse, estaria me colocando no mesmo pacote. Eu já caí nisso uma vez.

Há quase uma década atrás, eu tive um problema chato de pele. E é claro, honrei a teimosia masculina demorando para ir buscar um tratamento. E, botando a mão na consciência, só o fiz mesmo porque era no meu braço, muito visível, o que me atrapalhava em basicamente todas as interações sociais. Mas como desgraça pouca é bobagem, era um problema de pele raríssimo que ninguém descobria o que era, procurei desde clínicos gerais até dermatologistas, tomei um monte de remédios… e nada. Não ia morrer por causa disso, mas era algo muito chato de conviver.

Recebi a indicação de um médico ortomolecular. Estava desesperado, e mesmo com uma pulga atrás da orelha por causa do nome, resolvi dar uma chance. Pesquisei muito por cima, vi Linus Pauling e vitaminas… ok, não deve ser nada bizarro. Tirei o dinheiro para pagar a consulta, que não era nem um pouco barata, e fui fazer minha consulta. Casa de alto padrão num bairro bom, sala de espera cheia, tudo parecia corroborar com a ideia de que eu tinha feito uma boa escolha.

Até que começa a consulta. Sou colocado diante de uma máquina bizarra que passa uma corrente elétrica do meu pé até minha mão (não se sente nada) e em alguns minutos dá um relatório de todos os elementos químicos do meu corpo. A vantagem de ser nerd nessas horas é que meu senso de perigo ativa: se essa tecnologia realmente funcionasse desse jeito, todo consultório do mundo teria algo assim. E como a máquina tinha uma cara de algo feito nos anos 80, 90 no máximo… tinha algo estranho ali. Eu já tinha ouvido falar de bioimpedância, mas era sobre definir massa magra e gordura no corpo, não a quantidade de cádmio ou vitamina D no seu corpo.

Segue uma explicação bizarra sobre a minha vida baseada nos resultados daquele exame que não parecia ter base científica alguma. Mais uma vantagem de ser nerd: eu sei reconhecer leitura fria. Leitura fria é uma tática de médiuns e charlatões do tipo onde eles vão jogando iscas para a pessoa ir completando as informações. Sabe quando o médium que diz que fala com os mortos pergunta se tinha “uma mulher muito importante na sua vida”? Eu me fechei na hora e não dei munição nenhuma. O curioso é que o “médico” teve que se virar, e começou a dar chutes e mais chutes, algumas coisas no alvo, outras totalmente sem sentido pra mim. Sentindo que eu não estava ajudando, até tentou dizer que pelos resultados eu deveria ter muita potência sexual… o que provavelmente diz quando sente que precisa ganhar um homem que está perdendo a paciência com a consulta. Naquele momento ele havia se tornado transparente. E eu estava puto da vida por ter gastado tanto dinheiro na consulta.

E quando eu achava que não podia ficar pior, ele me diz que o tratamento era equilibrar os elementos do meu corpo com… está pronto para ler isso? Com FUCKIN’ homeopatia. Ele ia reequilibrar meus elementos com soluções homeopáticas! Além de ignorar totalmente o problema de saúde óbvio que eu tinha, que estava diante dele no meu braço estendido sobre a mesa, ainda tenta me empurrar uma receita caríssima de vários remédios homeopáticos? Saí dali muito puto, sem nenhuma ideia de como tratar meu problema, e mais pobre.

Já que eu abri o tema: algumas semanas depois depois eu achei uma dermatologista com 40 anos de experiência que precisou de umas 20 consultas e o esgotamento da literatura médica conhecida para achar a solução. Estava quase achando que teria uma doença com meu nome, mas eu só estava sendo hipster com uma doença de pele que já tinha saído de moda há décadas. No final das contas, a medicina de verdade resolveu meu problema. Hoje em dia o meu único problema de pele é a presunção de opressor.

Voltando à ortomolecular: eu sei que não é assim que todos os que trabalham nessa especialidade lidam com as coisas, mas é um bom exemplo de como ela não anda em boas companhias. Como não há comprovação científica do funcionamento desses tratamentos de reposição ou megadosagem de vitaminas e minerais, por mais sentido que as ideias de Linus tivessem, a ortomolecular não pode ser considerada medicina de verdade. É aí que fica aberta a porta para todas as outras bobagens de medicina alternativa: o que é uma homeopatia para quem já trabalha com algo que comprovadamente não funciona?

Normalmente eu estaria aqui dizendo como o tratamento alternativo não tem nenhuma base lógica científica, mas esse não é o caso da ortomolecular: o buraco é muito mais embaixo. Um cientista de alto nível como Linus Pauling não sairia de uma base mística sem sentido. Mas isso não quer dizer que a “medicina” ortomolecular vai entregar resultados. Primeiro porque um experimento científico é sobre os dados coletados, não sobre a hipótese. Tem muita ideia que parece perfeita em tese, mas na prática dá errado. Em tese, achar que já sabíamos o suficiente sobre o funcionamento do corpo humano para conseguir equilibrar os elementos químicos que o compõem não era uma má ideia. Na prática, é absurdamente mais complicado: falta muito para conseguirmos entender exatamente o que influencia no quê com o grau de precisão necessário para a “medicina” ortomolecular funcionar mesmo.

A ideia de Linus estava uns 200 anos à frente do seu tempo, pelo menos. Eu estou tomando muito cuidado de não bater diretamente nele porque eu jamais o culparia pelo charlatão que desperdiçou meu tempo e dinheiro naquela consulta bizarra: o problema não era a hipótese lançada pela ortomolecular, o problema é a prática. Na prática, os testes sérios demonstram que seus tratamentos não geram mudanças reais na taxa de cura de qualquer doença. O que acontece, e muito, é um falso positivo baseado nas sugestões de melhorar a dieta e fazer exercícios. Claro que isso melhora a saúde das pessoas, é algo comprovado. Agora, tomar doses de elementos químicos aleatórios para equilibrar algo que nem se sabe direito como funciona não é ciência.

Linus pode até ter achado um caminho na medicina, mas não deu certo até hoje. Talvez a tecnologia do futuro permita isso, talvez não. O problema não é a ideia, o problema é a quantidade de gente que entrou nessa profissão e cobra caro de muita gente até hoje por tratamentos sem comprovação científica. A partir do momento que você se presta a aplicar uma modalidade medicinal sabendo que nenhum estudo sério suporta a conclusão de eficácia, você está trabalhando com charlatanismo. E é por isso que eu coloco a ortomolecular no mesmo balaio das outras pseudociências nesta semana temática: não se pode confiar em alguém que escolheu cobrar dos outros e prometer curas com algo que não funciona. Tem algo de errado com a pessoa, ou é ignorância (péssimo no seu médico) ou é ganância (igualmente péssimo).

Nem sempre vai ser fácil perceber o golpe. A minha “sorte” foi que o charlatão que me atendeu era tão desesperado para arrancar dinheiro que colocou uma homeopatia junto para vender água por preço de ouro. Eu estava desconfiado, mas só consegui ignorar totalmente a validade dele como profissional quando algo tão bizarro foi colocado no pacote. Talvez eu tivesse dado o benefício da dúvida, talvez eu não tivesse encontrado a médica de verdade que resolveu meu problema…

Eu não vou dizer o nome desse médico porque 1) não lembro mais, e 2) porque não é um problema específico: não vá em médicos ortomoleculares em geral. Não é reconhecido pelos conselhos médicos por um motivo.

Linus, descanse em paz (morreu de câncer), você sempre vai ser um herói na história da ciência (até alguém cismar que você era racista, machista, etc.), mas nessa parte da medicina, não deu não.

Para dizer que se fosse um texto normal dizendo que funciona você teria acreditado sem pensar meia vez, para dizer que a ciência só é confiável porque erra, ou mesmo para dizer que medicina não pode ter aspas: somir@desfavor.com

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Comments (16)

  • Sobre dermatologistas: NÃO confie muito. Fui em uma, famosa que só. Professora de medicina de uma universidade, nível elevado, paguei o olho da cara pela consulta. Eu tinha uma incômoda mancha no rosto. Ela me deixou nua. Olhou que olhou e me virou pelo avesso, a manchinha era na bochecha. Diagnóstico: LÚPUS. Receitou uma caralhada de remédios, pomadas, cremes e o diabo a quatro. Sai do consultório com uma Sentença de morte aos 35 anos, não comprei nada da longa receita, queria uma segunda opinião. Fumante que era desgostei do cigarro e parei de fumar. Uma semana depois a tal mancha sumiu e nunca mais voltou. Meu diagnóstico: a causa era o cigarro. E a fdp me viu nua, que ódio! Faz 10 anos. Se fosse LÚPUS eu já teria morrido.

  • E ainda colocam no pacote que “Linus Pauling consumia diariamente uma quantidade cavalar de vitamina C, o que fez com que ele passasse dos 90 anos”.
    Se você tivesse colocado isso no texto todo mundo ia acreditar na pseudo terapia.

    • Sebastiana Martins Azevedo

      Tinha um problema no intestino muito sério, e já tinha ido à vários especialistas e nenhum descobria o quê eu tinha, desesperada , começei a pesquisar sobre medicina alternativa, e encontrei em Araruama RJ, uma médica que me passou vários exames, e no final disse que eu teria que fazer esse Enema com café, confesso que até fiz, mas não obtive resultado esperado, depois de dois anos de sofrimento, encontrei um colonproctologista, quê me passou exames bem específicos, e fez duas cirurgias em mim, e obtive a minha saúde de volta. Então só pra constar, o quê tem de charlatães nessa área não está escrito.

  • Sempre desconfiei e nunca levei a sério essa parada de medicina ortomolecular pelo mesmo motivo que usam o termo “quântico” de forma completamente inadequada, puxando facilmente isso pro campo da pseudociência.
    Como não estou no público-alvo dessa turma, pra mim isso é indiferente, mas quem está no público-alvo dessa turma cai fácil.

  • Ah! E queria deixar uma correção! No SUS essas coisas aí não são consideradas “Medicina Alternativa”.
    O nome correto são “Práticas Integrativas e Comolementares”, pois se parte do pressuposto que elas complementam o tratamento alopático tradicional.
    Ninguém duvida que Yoga vai ajudar alguém a melhorar equilíbrio, massa muscular, etc…
    É a mesma coisa com o restante! Pra quem acredita, vai se beneficiar com a aguinha da homeopatia e não vai precisar tomar Rivotril… no fim, o efeito placebo é o mais forte de todos.

    Agora, ninguém Sério quer usar essas práticas como alternativa (nem é esse o termo) pra antibióticos, quimioterapia, psicoterapia, etc etc etc.

  • Achei a semana ótima, muito esclarecedora para leigos!
    Mas queria deixar um ponto como advogada do diabo aqui:

    É sempre bom lembrar que os estudos-modelo (duplo cego, etc) existem aos montes pra tudo (inclusive homeopatia, acupuntura, e alopatia). A questão são as revistas que os publicam e isso passa desde o dinheiro que precisa ser desembolsado só pra submeter seu trabalho a análise quanto ao lobby da indústria farmacêutica (envolvida em todas as coordenações de revistas acadêmicas médicas), que é pesadíssimo.

    Nenhuma farmacêutica vai querer um estudo dizendo que uma agulhada na testa funciona igual o remédio pra dor, então esses estudos não passam… e aqueles que mostram que “não funciona tanto assim” sao aprovados.
    Não venho aqui na onda de “indústria farmacêutica do mal”, assim como se houvesse um estudo que mostra superioridade evidente de homeopatia, isso seria publicado. Mas se for só equivalente, o bolso pesa bastante na hora de passar esse estudo.

    É só pensar.. sabemos que exercícios e dieta equilibrada são a chave pra reduzir doenças cardiovasculares. Mas vc não vê os cardiologistas insistindo nisso tanto quanto eles insistem pra vc tomar Estatina antes dos 40 anos. O próprio medo do colesterol foi algo criado pra vender mais remédio (assim como diversas outras doenças da moda).

  • Afinal qual era o nome da doença rara que demora trocentas consultas ora curar? E tô passado em ter charlatanismo com nome de medicina.

    • Era uma reação escrota e rara do meu sistema imunológico a uma queimadura de sol, basicamente. O nome técnico da doença é “brancopracaralhoite”.

  • Pior que realmente parece “científico o bastante” pra que eu acreditasse, ainda que momentaneamente, se eu nunca tivesse lido esse texto.

    “você sempre vai ser um herói na história da ciência (até alguém cismar que você era racista, machista, etc.)” James Watson se meteu em muitos problemas por causa disso, fico pensando quando (se) essa loucura vai acabar…

  • Não sabia praticamente nada sobre “medicina” – com as devidas aspas, claro – ortomolecular. Eu só a conhecia mesmo “de nome” e nem imaginava que a coisa fosse assim como o texto descreve. Por isso, gostei de ver tanta informação condensada aqui. Agradeço pelos esclarecimentos e também pelo alerta para não entrar nessa barca furada, Somir.

    • Pior: muita gente diz que funciona porque segue o conselho de parar de comer só porcaria e fazer exercícios e se sente melhor depois… com certeza foi a vitamina que o “médico” prescreveu, não?

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