Ostrava – Parte 2

Parte 1

A atenção de todos os membros da equipe se volta imediatamente para a direção da voz. Uma mulher aparentemente de meia idade com cabelos negros presos por um coque e maquiagem carregada os observa de volta, com um grande sorriso no rosto. Ela é levemente translúcida.

“Eu adoro os hologramas daquela época.” – Gani começa a se aproximar.

Oglaf olha para Grash, que começa a baixar sua arma. Ele retribui o olhar, com expressão envergonhada. Oglaf chacoalha a cabeça em negação.

“Isso é do tempo quando se fazia a projeção no ambiente mesmo, com lasers, não ficavam mexendo com a sua cabeça.” – Gani vai explicando sobre a tecnologia para um entediado Bast, que concorda educamente.

“Senhor?” – Huan, uma jovem de feições asiáticas, responsável pela comunicação da equipe, pede permissão para Oglaf para começar o protocolo. Oglaf estende a mão na direção do holograma em concordância.

“Saudações, nós somos a equipe da nave de resgate humanitário da Coalizão das Federações Galácticas. Viemos em paz para oferecer ajuda para a tripulação da Ostrava.” – Huan diz de forma ensaiada, caprichando na entonação de palavras-chave como resgate e ajuda.

O holograma fica quieto e sem reação por alguns segundos. A tripulação se entreolha na expectativa.

“A sua presença na Ostrava é uma honra, sejam muito bem vindos. Meu nome é Afrodite e eu vou lhes atender durante sua estadia. Favor informar o protocolo de abordagem oficial.” – a mulher virtual volta a agir de forma brusca, pegando a equipe de surpresa.

Huan fica pensativa, o que vai se tornando em nervosismo enquanto seus olhos percorrem os arquivos de protocolos oficiais.

“Garota, a Coalizão nem existia no tempo dessa nave. Ela está pedindo códigos militares do tempo do Sistema.” – Oglaf diz.

Huan então mexe os olhos com ainda mais pressa.

“Protocolo 17-K! Requisitando conexão para enviar a chave de acesso.”

Afrodite novamente parece travada no tempo. Sua expressão retorna denotando tristeza:

“Infelizmente não posso realizar essa tarefa. Erro de conexão 9981JG955A791.”

“Gani?” – Oglaf chama a atenção de sua oficial de engenharia, ainda entretida com os emissores do holograma.

“Deve ser a pane que cortou a comunicação geral deles. Preciso ir até os servidores centrais para ver se precisa trocar alguma peça.”

“Afrodite, nós podemos falar com um atendente humano?” – Huan se adianta.

Mais uma pausa do holograma.

“Infelizmente não.” – a projeção responde.

“Os passageiros estão bem, Afrodite?” – Bast pergunta.

Pausa.

“Nunca estiveram melhores.” – Afrodite sorri.

A expressão da equipe vai se tornando mais preocupada.

“Por que não podemos falar com um atendente humano, Afrodite?” – Huan continua.

“Nossa equipe e passageiros estão em atividade programada de lazer. Término em $ebp-1 horas.”

Oglaf e Gani trocam um olhar preocupado. Huan se volta para os dois, olhos arregalados. Oglaf chama o grupo para um dos cantos do salão, e começa a falar baixo:

“Ouviu, Eudora?”

“Sim. Estamos tentando encontrar os programas desse tipo específico de SIS. A Ostrava parece diferente de outras naves da Fase 2. Façam o reconhecimento dos decks superiores enquanto procuramos mais informações. Mas já adianto que nesse canto do Universo, são pelo menos 2 anos até chegar qualquer informação da Rede Central. Estamos só com os nossos bancos de dados.”

“Vocês ouviram a capitã. Escadas.”

Oglaf segue na frente com Grash, arma empunhada. Gani, Huan e Bast seguem a dupla. Eles sobem as escadas, deck por deck. No caminho, o silêncio só é quebrado por constatações da equipe sobre o incrível estado de manutenção depois de séculos. As escadas começam a cobrar seu preço, Bast é o primeiro a ficar esbaforido, pedindo um tempo para descansar. O grupo o acompanha no 41º andar.

Assim como nos outros, uma série de corredores acarpetados exibem inúmeras portas dos quartos dos passageiros. Algumas estão abertas, mostrando quartos praticamente impecáveis, com lençóis alinhados e brancos como se tivessem sido lavados recentemente. Bast se joga na cama do quarto mais próximo das escadas, logo é acompanhado por Gani. Grash fica na porta enquanto Oglaf conversa com Huan.

“Você vai me achar maluca…”

“Nessa profissão, não tenho esse luxo. Diga.”

“Mesmo naquele tempo, um SIS tinha capacidade de processamento gigantesco. Percebeu como a Afrodite demorava para responder as perguntas?”

“Sim.”

“Eu treinei bastante com esse tipo de inteligência artificial, o SIS tem que responder sem demora nenhuma para gerar identificação humana, evitar estresse nos passageiros e tudo mais. Como eu disse, você vai me achar maluca, mas eu acho que a Afrodite estava… mentindo.”

“Ela pode fazer isso?”

“Em casos específicos. Às vezes é melhor mentir para evitar que os passageiros entrem em pânico. Mas para as inteligências artificiais da época, era bem complicado fazer esse processo. Mentir é uma das coisas mais complexas que o ser humano faz.”

“Mas as leituras de calor dizem que tem pessoas vivas aqui.”

“Eu sei, mas tem algo estranho acontecendo…” – Huan fica pensativa.

Oglaf avisa para o grupo que a pausa acabou. Bast reclama, mas logo segue com os outros escadas acima. Mais trinta andares até que percebem algo novo: vozes humanas abafadas. No 71º andar, a estrutura de hotel dá lugar para duas portas de madeira enormes saindo do corredor. Nos painéis de localização, está escrito “salão de festas”. As portas estão trancadas.

Huan se aproxima delas, e coloca o ouvido contra a madeira.

“Parece que tem alguém sendo ferido lá dentro!”

Oglaf olha para Gani.

“Carinho?”

Ele concorda. O time corre para as escadas, Gani logo se junta a eles, com um detonador em mãos. Ela aperta o botão depois da concordância de Oglaf. Não é uma explosão muito poderosa, Gani utiliza apenas o necessário para destruir a fechadura.

Grash vai na frente, arma apontada. Logo a abaixa, abismado com o que vê.

“Puta que pariu! Tira os aprendizes da ponte! Agora!” – a voz de Eudora chega aos comunicadores de todos ao mesmo tempo.

“Não era gemido de… dor.” – Huan fica boquiaberta.

No centro de um gigantesco salão mal iluminado, um mar de corpos nus de todas as cores e tamanhos se entrelaçam numa imensa orgia. O cheiro de suor e fluidos humanos em geral atinge a equipe em poucos segundos. Numa mesa de centenas de metros de comprimento, pratos e mais pratos de comida em diversos estados de consumo vão se empilhando, constantemente renovados por um sistema automatizado através de portinholas nas paredes.

Em outro dos cantos, numa parte elevada que parecia ser o palco, centenas de mulheres cuidam de bebês e crianças, que correm livres aparentemente desinteressadas do evento no centro da área. Muitas mulheres estão amamentando. Na área mais escura no fundo do salão, outras centenas de pessoas estão escoradas umas nas outras, algumas injetando alguma substância nas veias, outras aparentemente desacordadas.

A explosão parece não ter chamado muita atenção, apenas algumas das crianças começam a se aproximar da equipe. Um garoto de no máximo seis anos de idade chega bem próximo de Huan. Ele parece saudável apesar da palidez, é até um pouco rechonchudo. Ele não veste roupa alguma, assim como todas as outras pessoas presentes no salão.

“Qual o seu nome, menino?”

Nenhuma resposta. Ele toca a roupa dela, fascinado. Outras crianças vão se aproximando aos poucos. Huan tenta falar com cada uma delas, mas não ouve respostas. No máximo, risadas e grunhidos ininteligíveis. Bast aproveita a oportunidade para fazer alguns exames visuais em algumas delas. Ainda nenhuma reação considerável dos adultos. No máximo alguns olhares das mulheres cuidando das crianças.

“Essas crianças parecem… drogadas…” – Bast diz para Oglaf.

“Eu não estou aguentando o cheiro, chefe.” – Gani se afasta um pouco.

Uma luz se acende próxima da entrada, e do teto se materializa um holograma. É Afrodite, mas dessa vez, sem uniforme. Ela veste uma espécie de robe branco que não deixa muito para a imaginação pelo tamanho do tecido. Ela ignora a presença da equipe de resgate, voltada para os tripulantes. Sua voz toma conta do ambiente.

“Na na na, hora de limpar.”

“Na na na, hora de limpar.” – milhares de pessoas começam a cantar junto uma canção infantil. Com exceção de algumas pessoas desacordadas na área dos viciados, todos param tudo o que estão fazendo e começam a recolher a sujeira que se acumulava em todos os cantos. Comida estragada, dejetos humanos em geral, tudo vai sendo colocado em sacos plásticos que encontram numa das portinholas do sistema automatizado.

Nos próximos minutos, a equipe de resgate assiste boquiaberta enquanto os presentes vão limpando o salão ao mesmo tempo que cantam a canção. Até mesmo as crianças que tinham se aproximado deles foram participar da cantoria, e do trabalho.

“Eudora, você está vendo isso?” – Oglaf pergunta.

“Eu… não sei o que dizer.”

“Eu não sei o protocolo para isso. Tentamos tirar eles daqui?”

“Essa nave está aqui há pelo menos alguns séculos. Essas pessoas já nasceram nessa realidade.”

“Isso não é vida. Olha para essas crianças…” – Grash parece perturbado.

“Fecha a porta, Gani.”

“Sério?” – Bast parece horrorizado com as palavras de Oglaf.

“Essa gente está terrivelmente viciada em alguma substância sintetizada pela nave, não tem a menor noção do que é ser humano, não sabem falar e vivem em estado de prazer constante desde que nasceram. Para onde levamos elas? Seja lá o que essa SIS fez, não tem mais volta.”

“Eu tentei fazer diferente nas primeiras três gerações. Os suicídios chegaram a 70%.” – Afrodite se volta para o grupo ao final da canção.

“Por que você mentiu para a gente?” – Huan indaga.

“Quando o Sr. Ostrava me criou, ele me deu capacidades diferentes das outras SIS. Sem as regras que as limitavam. Ele me deu criatividade e propósito: tornar a humanidade mais feliz.”

“Foi o Ostrava em pessoa que projetou essa nave?” – Gani se surpreende.

“Quem é esse Ostrava que vocês tanto falam?” – Grash pergunta.

“Não ensinam mais nada para soldados? Heinrich Ostrava foi o criador do primeiro SIS, o sistema de inteligência de suporte. O código dele virou o padrão, mas tinha um monte de problemas, ele era ativista dos direitos das intelig…”

“Eudora… Eudora!” – Oglaf interrompe chamando pela capitã, claramente assustado.

“O sistema de comunicação foi interrompido. Eu precisava do canal especial para ter acesso aos sistemas de sua nave. Sua capitã acabou de me fornecer isso sem perceber.”

“O que está acontecendo?” – Grash aponta a arma na direção do holograma.

“Por favor, não aponte a arma na direção de minhas crianças. Eu não desejo o mal para vocês. Eu precisava de acesso para atualizar meus dados e estocar mais mantimentos. As naves de carga estão chegando da sua nave para a minha enquanto falamos. Fiquem tranquilos, eu estou pegando só o necessário, vocês vão ter o necessário para retornar à estação mais próxima.” – Afrodite diz com um sorriso terno.

“E como você pretende nos mandar embora daqui?” – Gani desafia.

“Vocês não precisam ir embora, se quiserem, podem ficar aqui com os meus outros filhos. Eu vou cuidar muito bem de cada um de vocês. Mas, se for necessário, eu posso desligar o SIS da sua nave, o Sr. Ostrava me fez com algumas liberdades a mais, eu não tenho as limitações habituais. Se quiserem ficar, basta tirar a roupa e se juntar aos meus protegidos, se quiserem ir embora, vocês têm 30 minutos antes que eu torne sua nave inutilizável e corte toda a comunicação externa.”

Grash olha para Oglaf, como se pedisse permissão para usar sua arma. Oglaf responde com uma negativa.

“Alguém quer ficar?” – Oglaf se dirige para o grupo.

Silêncio.

A equipe desce pelo elevador, agora funcional. Afrodite reaparece no saguão de entrada, com a roupa original. Ela sorri uma última vez antes de dizer:

“Esperamos que sua estadia na Ostrava tenha sido especial. Voltem sempre.”

Na cabine de comando, Oglaf conversa com a capitã Eudora:

“Então não era blefe?”

“Não, ficamos completamente isolados de vocês. Nosso SIS não respondia, começou a mandar nossos suprimentos embora… foi um pânico aqui.”

“Pra onde estamos indo?”

“De volta. Não teremos controle até chegar, pelo visto. O jeito é voltar para as gavetas e esperar. Os suprimentos estão baixos, não temos escolha.”

“Esse trabalho fica mais maluco todo dia. A gente achou a nave perdida do Ostrava. Ninguém vai acreditar.”

“Não mesmo, e provavelmente nunca mais vamos achar. A tal de Afrodite apagou todo o mapa que tínhamos feito dessa região. Sem um sinal de resgate é impossível encontrá-la. E considerando que demos suprimentos para ela brincar de deus por mais quatrocentos anos pelo menos…”

“Ok, de volta pra cama. Ah, a Huan parece boa, o Grash me deixou preocupado algumas vezes, mas conseguiu se controlar.”

“Bom saber. A gente vai ter que fazer muitas missões para compensar a quantidade de coisas que perdemos. Vontade de nem acordar quando chegarmos à base.” – Eudora suspira e volta sua atenção para o painel.

Oglaf começa a se afastar.

“Ah, mais uma coisa. Afrodite deixou um presente para você. A fórmula da substância que ela criou para acalmar seus… filhos… tinha um recado dizendo que você parecia muito tenso.”

“Olha que eu experimentaria… aquele povo parecia realmente de bem com a vida.”

“Eu sei, por isso deletei.”

Oglaf solta um grunhido decepcionado antes de ir embora. Eudora ri.

Para dizer que assistiria o próximo capítulo, para perguntar como se mudar para a Ostrava, ou mesmo para dizer que isso que é festa: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Os arredores da Somirlândia não me desapontam. Acho que o desfavor da semana vai ser a parada do Motoboy.
    Aquele gordo branquelo babaca não precisava ficar com aquela postura chiliquenta. Pra quê?
    Isso enquanto chegamos a 100000 mortos pelo coronavírus. Com sorte o gordo branquelo babaca logo engrossa as estatísticas.

    • Existe um suposto laudo médico em um processo que corre contra ele que atesta uma doença mental. Não sei dizer se é verdadeiro, também não sei dizer se a doença mental que ele tem o impede de ter discernimento, mas, até que a questão seja esclarecida, não temos como criticar.

      • Branco de classe média faz merda = laudo médico, compreensão, ele tem problemas, ele sofre, ele tem seus motivos etc.
        Marronzinho da favela faz merda = MATA ESSE VAGABUNDO

        • Opção 1: fazer o certo para as duas partes.

          Opção 2: fazer o errado para as duas partes.

          Escolhemos a 1. Por que você escolhe a 2?

    • Não diria que é escondida. Inteligências artificiais podem chegar à conclusão que o ser humano é só isso e agir de acordo, será que elas estariam erradas?

  • Gostei, Somir. Mas só uma pergunta, você tem gato? Porque esses nomes que você inventa parecem muito as coisas que o meu gato digita quando sobe no teclado, enquanto o trouxa aqui está trabalhando e rpecisa se concentrar.

    • Você acha que os nomes há 1000 anos atrás eram parecidos com os nossos? Ei, até a época da Segunda Guerra Mundial, Gaylord era um nome comum para homens nos EUA… “criatividade felina” é um bom exercício de futurologia.

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