Dia da Mentira – 2020

Carlos tenta fazer algum senso da cena que vê: está sentado no chão no meio de um campo aberto. Algumas árvores pontuam a cena, com vegetação baixa e um campo florido à sua frente. À sua esquerda, uma densa floresta tropical, à sua direita uma área nevada com apenas uma casa se destacando. Ele toca a grama próxima a seus pés para confirmar se não está sonhando. É quando ouve uma voz vinda de trás.

“Eu nunca te vi aqui antes…”

Ele se assusta e se vira rapidamente. Enxerga um índio coberto de pinturas, penas e outras decorações primitivas. O índio segura uma lança. Carlos começa a se afastar.

“Não tenha medo. Eu sou Opori. Sou o deus da caça!”

Carlos fecha os olhos, suspira e volta a encarar o indígena.

“Eu sou o Carlos…”

“Você é um deus?” – Opori pergunta.

“Não, eu… eu só estava meditando em casa. Eu acho que dormi e estou sonhando, é isso?”

Opori faz uma expressão de dúvida, e começa a andar lentamente ao redor do homem. Carlos veste uma camisa surrada e uma bermuda larga. Opori sorri.

“Eu já ouvi falar disso, você não é um de nós, você é um visitante! É tão raro um de vocês conseguir chegar até aqui.”

“Onde eu estou?” – Carlos se levanta, mais relaxado com a postura tranquila do índio.

“Isso aqui é o inconsciente coletivo. O lugar onde a imaginação das pessoas se manifesta.”

“Um mundo da imaginação? Então… tudo o que eu pensar acontece?” – Carlos termina a frase e estende as mãos como se estivesse tentando fazer um truque e mágica.

“Não. Coletivo. Pra qualquer coisa acontecer por aqui, precisa que muita gente acredite. Ou, como no meu caso, que poucos acreditem com muita força.”

“Opori… eu nunca ouvi esse nome antes…”

“É só uma tribo praticamente isolada no meio da Amazônia que acredita em mim. E ainda bem que são isolados. Eu vi muitos outros deuses indígenas desaparecerem desde que o pessoal do cristianismo começou a invadir aquelas terras.”

“Mas você fala tão… é…”

“Normal? Você achou que eu ia falar ‘mim Opori’ e ficar dançando?”

“Pra falar a verdade, achei sim…” – Carlos parece envergonhado.

“Eu estou aqui há milhares de anos. Já vi de tudo e conversei com milhões de entidades imaginárias. Era de se esperar uma evolução, não?”

“Verdade, falha minha. E como é que eu vim parar aqui?”

“Todas as pessoas têm uma conexão com este lugar, eu não sei a mecânica exata, mas a sua meditação deve ter colocado nesse caminho. Mas nenhum visitante fica tempo suficiente para a gente realmente entender.”

Carlos se volta para a paisagem nevada à distância.

“Já tinha visto neve antes?” – Opori pergunta.

“Não. Eu também sou do Brasil.”

“Quer conhecer o Papai Noel?”

Carlos ri, um pouco surpreso.

“Papai Noel? É ele que está naquela casa?”

“Sim, aquela região é uma fronteira entre crenças seculares, cristãs e pagãs. Muito embora do meu ponto de vista, são os cristãos que são pagãos… mas acho que você entende melhor desse jeito. Seja como for, sou amigo dele desde que chegou aqui.”

“Um deus amazônico é amigo do Papai Noel? Esse lugar é divertido!”

Os dois começam a andar em direção à casa no meio da neve. A distância, que parecia enorme à primeira vista, é vencida em poucos minutos. É como se o espaço se contraísse de acordo com a intenção de quem se movimenta. Carlos olha para trás e é como se o campo verde e a floresta estivessem a centenas de quilômetros de distância. A casa, que de longe parecia uma cabana isolada, agora começa a aumentar e ganhar milhares de detalhes decorativos. Surgem outras construções, elfos e renas correm por todos os lados com milhares de pacotes de presente. Uma garrafa de coca-cola surge na mão de Carlos.

“A propaganda realmente fez efeito em você, não?” – Opori diz enquanto ri.

“Propaganda funciona aqui?” – Carlos cheira o bico da garrafa antes de dar um gole.

“Naquela direção estão as crenças que a sua indústria do entretenimento cria, e é claro, os produtos que te vendem através dela. Se você for até o final, pode ver a área do comunismo.”

Carlos observa o horizonte enquanto Opori bate na porta da casa de Papai Noel. Rapidamente o bom velhinho os recebe com um largo sorriso.

“Ho ho ho! Se não é meu amigo Opori! Seja bem-vindo à minha casa! E quem é esse menino?”

Carlos estica a mão para cumprimentar Papai Noel, mas percebe que está muito menor. Ele olha para o próprio corpo e é como se tivesse regredido aos 8 anos de idade.

“O que aconteceu comigo?” – pergunta o pequeno Carlos.

“Acho que a sua maior conexão com essa área vem da sua infância. Seu corpo deve ter se adaptado para maximizar a experiência.”

“Caralho…”

“Isso não é jeito de criança falar! Quer ir para a lista dos meninos-maus?” – Papai Noel diz quase em tom de deboche.

“Eu só estava meditando… isso deve ser o sonho mais maluco da minha vida.”

“Entrem, amigos, está frio aqui fora.”

Os três entram numa casa impossivelmente maior por dentro do que parecia por fora. Meticulosamente decorada com temas natalinos, uma grande lareira e no centro da sala, uma enorme mesa com todo tipo de comida natalina.

“Quando eu venho aqui não tem essa comida toda!” – Opori se aproxima da mesa, arranca uma coxa do peru assado e começa a comer ali mesmo.

“Deve ser a imaginação desse menino. Como você se chama?” – Papai Noel se abaixa para falar com o jovem.

“Carlos, mas eu não sou uma criança…”

“Nem para ganhar um presente especial?” – Papai Noel mostra um grande presente para Carlos.

Carlos titubeia por alguns segundos, mas a curiosidade vence. Ele agarra a caixa e começa a rasgar o embrulho, empolgado de uma forma que não sentia desde… desde que era criança. Opori e Papai Noel riem. Era a base do seu herói da infância, um brinquedo caríssimo que seus pais nunca puderam comprar.

“Eu sonhei tanto tempo com esse brinquedo… eu era o maior fã do Bill Gates Assassino!”

Carlos para por alguns segundos, expressão confusa.

“Não, não se chamava assim… tem algo errado…”

“Não tem nada de errado, meu jovem. O Bill Gates Assassino vem com um monte de acessórios. Essa seringa injeta AIDS e um chip de controle mental criado pelos chineses!”

“Do que você está falando, Papai Noel?” – Carlos solta a caixa com o brinquedo e se afasta.

“Se você se comportar bem, eu vou te dar de presente uma luneta para você ver com os próprios olhos como a Terra é plana!”

“Opori, o que está acontecendo?” – Carlos parece assustado.

“Não sei, faz alguns anos que ele começou a falar essas coisas estranhas. Mas eu já me acostumei. É bem pior se você for na direção onde as religiões se encontram com as conspirações. Tem umas coisas bem assustadoras por lá…”

A coxa de peru na mão de Opori desaparece. Ele faz uma expressão de desânimo.

“Podia esperar eu ter terminado antes de voltar a ser adulto, né? Na minha floresta não tem esse tipo de comida!”

Carlos se percebe como adulto de novo. Papai Noel senta na sua poltrona diante da lareira e começa a falar:

“Eu vou te falar quem foi um mau menino neste ano: os homossexuais! Eles têm um plano para destruir o Natal! Aposto que vão me fazer ficar negro. Eles adoram negros.”

Opori toca no ombro de Carlos e o convida a sair da casa.

“Quando ele começa com essas coisas, demora horas para parar. Mas ele não era assim antes…”

Os dois saem da casa de Papai Noel e começam a seguir em direção ao que parece ser um oásis no meio de um deserto. Novamente, o espaço entre os lugares encolhe enquanto andam, e em questão de minutos tudo mais parece incrivelmente distante.

“Eu gosto de vir aqui. Esse é lugar das divindades do Zoroastrismo. É raro eles aparecerem, mas são dos mais legais entre os deuses das pessoas do Oriente Médio.”

Carlos se senta num tapete embaixo de uma palmeira, diante de um pequeno lago. O lugar é muito bonito e a temperatura bem mais amena do que se esperaria. Opori se senta ao seu lado.

“O que foi aquilo com o Papai Noel?”

“Cada dia que passa, essas áreas ficam mais estranhas. Naquela direção estão as divindades cristãs. Alguma coisa aconteceu com eles… parece que tudo o que está ao redor da área deles fica contaminado. Faz algumas décadas que eu não viajo para a área das crenças seculares, mas uma deusa hindu me contou que as conspirações vazaram para a área das religiões. E a cristã era uma das primeiras na borda.”

“E você sabe como controlar isso?”

“Carlos, eu sou imaginário. Tudo o que está aqui é imaginário. Eu não posso ajudar de verdade nem meu povo a caçar melhor… eles que acreditam nisso.”

“Mesmo assim, é uma pena.”

“Eu gostava mais dele quando se chamava Nicolau… mas, as coisas mudam, não importa se a gente quer ou não que elas mudem. Eu tento fazer o meu melhor.”

“Um ser imaginário é mais realista que eu…”

Opori ri.

“Será que eu vou acordar logo?”

“Não tenho a menor ideia.”

Os dois ficam observando o oásis por mais algum tempo.

“Qual a deusa mais gostosa que você já viu?” – Carlos pergunta.

“Agora sim você entendeu! Eu vou te apresentar uma deusa da fertilidade polinésia que é uma maníaca…”

Para me desejar um Feliz Dia da Mentira, para dizer que eu passei a mensagem errada, ou mesmo para dizer que Opori é real: somir@desfavor.com

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