Teimosia doentia.

Quase um ano depois da eclosão de um surto que mudaria o destino de milhões de pessoas e colocaria governos contra a parede, um país reconhece que sua estratégia chegou a um limite. Nesta quarta: as autoridades da cidade de Estocolmo, capital da Suécia, alertaram que seus leitos de UTIs estão praticamente todos ocupados. LINK


O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse, nesta quinta-feira (10), durante evento no Rio Grande do Sul, que o Brasil está enfrentando o fim da pandemia de Covid-19, mesmo o número de mortes no país ainda aumentando diariamente. LINK


A Suécia errou? Errou sim. A Suécia aprendeu com o erro? Aprendeu sim. Já o Brasil… desfavor da Semana.

SALLY

A gente já falou tanto da parte técnica da pandemia (dados, países, eficácia de cada medida e assuntos relacionados) que seria muito repetitivo fazer mais um texto sobre isso. Então, hoje, nos mantemos no campo subjetivo, as informações técnicas sobre coronavírus nosso leitor tem de sobra.

Vamos falar da Suécia, um país notoriamente de primeiro mundo. A Suécia tem um dos maiores IDHs do mundo. Um país com uma economia de respeito, classificada pelo Fórum Econômico Mundial como a 4ª economia mais competitiva do mundo no Índice de Competitividade Mundial, com empresas de renome com a Volvo, a Scania, IKEA, Ericsson, Electrolux e muitas outras. O PIB por hora trabalhada por lá está entre os dez mais altos do mundo.

Também é um país que investe em ciência. A Suécia lidera a Europa em estatísticas comparativas em termos de investimentos em pesquisa (percentagem do PIB e número de trabalhos e publicações científicas per capita, por exemplo). Além de ter vencido mais de 30 prêmios Nobel, a Suécia é a fundadora do prêmio e berço do homem que deu seu nome à premiação, Alfred Nobel.

O índice de alfabetização da Suécia é de 99% da sua população. O ensino é gratuito e obrigatório. A expectativa de vida era de 82 anos de idade. Eu poderia gastar muitas páginas falando de como a Suécia é um país civilizado, preparado e forte, mas acho que vocês já entenderam o ponto. E, ainda assim, a Suécia errou feio na condução da pandemia. Errou muito feito e agora pede ajuda.

Mesmo com toda a infraestrutura, com um excelente sistema de saúde, uma população educada, baixa densidade demográfica e economia forte, a Suécia está com um número de mortes por milhão altíssimo, superando inclusive países da América Latina, como o Brasil. O principal motivo que levou a isso foi a recusa em fazer lockdown quando era necessário. Só lockdown não resolve, mas todo o resto sem lockdown também não resolve.

Em Estocolmo, a capital, e, portanto o local que supostamente estaria melhor equipado, o sistema de saúde está colapsado. Não há mais leitos de UTI livres. A Suécia está mal, e não é uma interpretação nossa. “Precisamos de ajuda”, foi a frase dita publicamente por Bjorn Eriksson, diretor de saúde para a região de Estocolmo.

Vale lembrar que a Suécia foi muito citada como caso de sucesso quando se falava de países que não “pararam” sua economia por causa da pandemia. A crise sanitária no país está tão grande que o governo já adotou várias medidas restritivas que, a esta altura do campeonato, com a coisa tão descontrolada, não foram suficientes e já comunicou que vai endurecer ainda mais. Por várias vezes o país admitiu publicamente que errou que está pagando não apenas com vidas, mas também com a economia.

Nesta pandemia aprendemos que o conceito de países “bons” para se morar e países “ruins” para se morar é volátil. Se alguém me dissesse que, em determinado momento da minha vida, eu teria melhores condições de saúde no Vietnã do que na Suécia, eu ia rir da cara da pessoa. A questão é entender qual vai ser o novo conceito de um país “bom”.

Todas as pessoas e países do mundo estão sujeitas a erros. Todo mundo pode errar. Ninguém é menos por errar. A Suécia, que é um país de primeiríssimo mundo, errou feio. Portanto, não é cometer um erro ou não que faz de um país primeiro mundo e sim como o país se comporta quando as coisas dão errado: o tempo que demora para detectar, admitir e corrigir o erro.

A Suécia errou apostando em um discurso furado de um infectologista muito equivocado. Mas percebeu, não ignorou os números e as evidências, e voltou atrás. Admitiu o erro, se desculpou e agora pede ajuda. Essa é a diferença entre um país de primeiro mundo e um esgoto verde amarelo: reconhecer o erro e tentar se limpar da merda que fez.

Um país decente, um país com autoestima, um país com vergonha na cara, analista, percebe e reconhece o erro. Um país vira-lata continua persistindo no erro, por mais que ele causa muitas mortes desnecessárias, por um orgulho imbecil de não admitir que errou. Errar todo mundo erra, o que fazemos com esses erros é que diz o tipo de pessoas/país que somos.

A Suécia vai pagar por esse erro, e ela sabe e admitiu isso. A expectativa de vida vai cair, os índices vão cair, a economia vai sofrer algum baque. Mas ela está trabalhando para reverter esse prejuízo, então, ele não vai ser tão grande quanto poderia. Além disso, a Suécia é um país rico e bem estruturado, tem gordura para queimar antes de entrar em total danação.

Observem os dois extremos desta semana: um país rico e bem estruturado pedindo ajuda na humildade X um país de terceiro mundo fodido que se porta como se estivesse lidando muito bem com a pandemia e ela estivesse acabando. Não, não me refiro apenas à infeliz frase do Bolsonaro (que já falou que o vírus estava no fim ou indo embora dezenas de vezes), me refiro também ao povo que, em sua maioria se porta como se nada estivesse acontecendo.

É isso que faz com que um dos países seja top em IDH, educação e ciência e no outro o povo nade no esgoto, nas palavras do próprio Presidente. Não são os erros que cometem. Repito: errar, todo mundo erra. Como lidamos com os erros é o determinante.

E eu sei que vocês não podem fazer absolutamente nada sobre a condução da pandemia no Brasil, mas podem pegar este exemplo macro e levar para vida pessoal de cada um, reavaliando como lidam com o erro. Demoram a perceber que erraram? Ficam em negação? Ficam protelando uma tomada de decisão difícil? Conseguem bolar um plano de contenção de estragos quando percebem o erro? Sejam Suécia, não sejam Brasil.

Sabemos que esta pandemia não acaba no ano que vem, sabemos que não vai dar para vacinar todo mundo em 2021 (nem todos os brasileiros) e sabemos que vacina não garante um retorno à “vida normal”. Talvez, o conceito de um país “bom” para se viver venha a mudar nos próximos anos. Talvez quem era bom vire ruim, e vice-versa. Mas uma coisa eu garanto: países que estão atentos e dispostos a corrigir seus erros o quanto antes continuarão sendo bons países para se viver, não importa o quanto errem.

Para dizer que é só uma gripezinha, para dizer que depois que tomar vacina vai sair lambendo corrimão ou ainda para dizer que o brasileiro ainda não tomou consciência do que vai acontecer com a sua economia: sally@desfavor.com

SOMIR

Ir contra o grupo exige coragem. Se todo mundo ao seu redor está dizendo que você deve fazer uma coisa e você vai lá e faz outra, está assumindo um risco. Muitas das melhores histórias que a humanidade tem para contar são baseadas nesses atos de rebeldia contra o que se considera bom senso. Risco e recompensa. A Suécia foi corajosa ao tomar uma decisão muito diferente de quase todo o mundo no combate à pandemia.

Mas, a admiração gerada pela coragem de fazer o diferente está diretamente ligada ao fato de que fazer o diferente normalmente dá errado. Se o resultado médio de nadar contra a maré fosse chegar são e salvo na praia, vamos concordar que não seria tão grandes coisas assim? A Suécia resolveu ir contra o consenso de infectologistas do mundo todo, e acabou com o pior resultado entre os países de tamanho e desenvolvimento comparáveis, com mais de 7.300 mortos. A Noruega, logo ao lado com um pouco mais da metade da população sueca, mal chegou a 400 mortes.

Não podemos esquecer que o país é pequeno e tem pouca gente, um pouco acima dos 10 milhões de habitantes. A Suécia que acostumamos ver no mapa é muito menor na realidade: a projeção mais comum do mapa-múndi exagera absurdamente o tamanho dos países europeus. 7.300 mortes é muita coisa num país inteiro com menos gente que a cidade de São Paulo! Especialmente considerando uma população altamente educada como a sueca. Normalmente tamanho menor e material humano mais cooperativo facilitam o controle de crises de saúde como essas, mas se a estratégia está errada, de nada adianta.

A tese de deixar o vírus correr solto e priorizar a manutenção da economia parecia errada desde o começo, mas como ninguém tinha certeza ainda em como as coisas funcionariam em 2020, havia espaço para tentar fazer algo diferente. O Reino Unido flertou com a ideia também, mas rapidamente mudou de ideia quando começou a ver gente morrendo sem parar e os hospitais abarrotados. A Suécia teimou um pouco mais, confiante que seu povo “certinho” acabasse controlando o problema. Não deu.

A coragem sueca virou um problema grave, como é o padrão nessas histórias de coragem contra o consenso. Especialmente os científicos. Fazer o quê? Agora eles estão correndo atrás, mudando políticas e tentando manter seus hospitais sob controle. A vantagem deles é que na hora de tentar consertar o erro, ainda são a Suécia. País pequeno, rico e muito bem educado. É mais fácil mudar a rota de um pequeno barco moderno.

Já por aqui, num gigantesco navio cargueiro caindo aos pedaços, acertar a rota inicial era bem mais importante. O capitão queria ir para o mesmo caminho do barquinho sueco, mas por sorte um princípio de motim pelo menos evitou que ele fizesse exatamente o que queria. Ficamos à deriva, com uma tripulação confusa. Se tivéssemos ido na mesma rota que os suecos, tenho até medo do que estaria acontecendo no Brasil. Porque é difícil imaginar algo pior que 180.000 mortos por uma doença altamente contagiosa num país com praias e baladas lotadas como se nada.

Tinha um caminho ainda pior que o que tomamos, isso é, pior que ficar dando voltas para chegar a lugar algum como aconteceu no país. Não fomos com força total do motor rumo ao iceberg como os suecos, mas também não saímos de uma rota de colisão. O Brasil ainda não resolveu sua estratégia, depois de quase um ano de conhecimento da doença.

E pelo o que depender do ainda capitão Bolsonaro, não vai se comprometer com nada. O número de mortos volta a crescer e ele diz que a pandemia está no finalzinho. O ministro “biônico” da saúde está mais preocupado em brigar com o governador de São Paulo para não perder o emprego do que montar um plano de vacinação. A teimosia de defender a postura negacionista é tanta que mesmo vendo outros países tendo que dar meia volta no caminho desejado por Bolsonaro, ele ainda se ressente de não poder ter feito o que queria e continua inventando problemas.

Nessa bagunça, o povão ficou por conta própria, cada um fez o seu plano de combate ao Covid e tocou a vida. Os casos e mortes aumentam e não há sequer conversa de lockdown. Coisa que o brasileiro nunca fez e tem certeza que não quer fazer de novo… as festas de final de ano vão gerar muita aglomeração, e a guerra de versões de governo federal e estaduais geram a falsa ilusão que a vacina vai se materializar magicamente na casa de todo mundo antes do carnaval.

O Brasil faz tudo errado, mas está cheio de coragem. A coragem forçada de quem se arrisca todo dia por falta de suporte do poder público e a coragem furada de negacionistas que não podem ser realmente combatidos, afinal, tem o presidente do seu lado. Coragem que já sabemos que vai gerar um resultado horrível. A verdade é que a chance do Brasil veio e passou, nossa sobrevivência como nação é apenas questão da baixa mortalidade do vírus. A natureza escolheu pelo país.

E agora, resta fingir que tínhamos algum plano, fazendo tudo em cima da hora e dando falsas esperanças para um povo que ainda está para ver muitas das consequências da pandemia. A vacina pode estar chegando, mas não para todos. Voltando ao exemplo dos barcos, é como se nosso plano no final das contas fosse esperar o iceberg derreter.

Para me chamar de comunista, para dizer que se nem a Suécia conseguiu não valia a pena tentar, ou mesmo para dizer que o capitão chegou de paraquedas: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Há países e pessoas que aprendem com os erros dos outros.
    Há países e pessoas que aprendem com seus próprios erros.
    E há países e pessoas que NÃO aprendem nem com os erros dos outros e nem com os seus próprios.

  • A notícia boa é que 50% dos huebr disseram que não vão se vacinar com medo da vaChina e isso significa que a seleção natural poderia agir e eliminar metade dos idiotas. Já pensou que sonho bom o país sem a metade de seus idiotas? Obsessão por vidas, tudo que faz tem fila, fila até pra entrar na fila, inflação, ah, tem vidas demais por aqui! Pena que o corona não é tão eficiente assim.

  • Esse filho da puta, eu li numa reportagem que ele só queria encomendar vacinas que cobrissem 10% a 50% da população, não vou postar o link, quem quiser que use o Google. Se não fosse a pressão do Dória ele não ia mexer o rabo, agora anunciou pra 100% da população. Eu odeio o Dória, mas devo admitir que a única coisa útil que ele fez foi agilizar essa porra dessa vacina!

  • Praticamente o mundo inteiro está a mesma porcaria, não tem muito pra onde correr.
    Eu tinha vontade de morar fora, mas estou totalmente desiludida :S

    • Migrar esperando pessoas melhores é besteira mesmo. E criminalidade é muito mais sorte do que estatísticas, eu já fui roubado em Berlim mas nunca fui roubado no Brasil. Como o amigo disse abaixo, não dá pra se iludir com tabelas.
      Mas em termos de poder de compra e infraestrutura, vale a pena.

  • O país que vacinar primeiro sua população consegue colocar sua economia para andar de novo. Alimentar a histeria antivacina no estrangeiro é tanto um modo de reservar mais doses para si, uma vez que a produção é limitada, quanto de atrasar a recuperação do adversário.

  • Concordo com a maior parte do que foi dito, mas ranking de IDH de países é puro retardo. Na lista mais recente, de 2019, Cuba, Sri Lanka, Albânia, Irã e Arábia Saudita estão na nossa frente, vocês prefeririam estar nesses lugares em vez do Brasil? Na minha percepção, só é possível auferir a qualidade de vida de um lugar vivendo lá, e de um ponto de vista estritamente pessoal. Tem gente muito feliz e tem gente que cai em depressão vivendo no mesmo lugar, há diversas variáveis que nenhum número numa tabela pode prever.

    • O IDH analisa tantos fatores que liberdades pessoais ficam diluídas no resultado, isso é verdade. Eu não gostaria de morar em Cuba ou na Arábia Saudita. Agora, “puro retardo” é esticar demais a corda do seu argumento… uma lista que consistentemente ranqueia Noruega, Suíça, Irlanda, Alemanha e Austrália no topo, por exemplo, com certeza está considerando fatores válidos de qualidade de vida humana. Não quer dizer que são paraísos para todo mundo, mas entregam uma qualidade de vida média muito superior que a maioria dos outros países do mundo. Toda lista do tipo pode ter coisas estranhas, mas se ela está 90% certa e 10% questionável, não é essa bizarrice toda que você está achando. Segurança pública, acesso à saúde, proteções sociais e serviços públicos decentes impactam muito na vida do ser humano médio.

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