Teoria Crítica.

Imagine que tudo o que você considera básico para o funcionamento da sociedade exista com o propósito de te oprimir. Da matemática aos sistemas políticos, passando por linguagem, manifestações culturais, educação, medicina… tudo o que você aprendeu sobre o mundo e suas formas de viabilizar a humanidade moderna, tudo só está lá porque ajuda a perpetuar o poder de uma elite da qual você não faz parte agora, e muito por causa disso, nunca vai poder fazer parte no futuro.

Uma espécie de jogo viciado, onde todo mundo é obrigado a apostar, mas é sempre o mesmo grupo de pessoas que ganha. E quando você reclama disso, te dizem que você não deve ter entendido as regras, ou pior, que não se esforçou o suficiente. E por um tempo, você acredita nisso e tenta diversas outras formas de ganhar o jogo. Você já tentou ser paciente e esperar sua vez, já tentou agradar os juízes do jogo, já tentou até mesmo agir de forma mais parecida com aquele grupo que sempre ganha.

Mas, depois de muito bater a cabeça, finalmente te ocorre: você não tem capacidade de jogar esse jogo. Não é falta de vontade, não é falta de experiência, não é falta nem de sorte, é incapacidade mesmo. Cada uma das regras do jogo favorece uma característica inata daquele grupo que sempre vence. E não é nada muito explícito como ter uma regra que te proíbe de ganhar, são pequenos detalhes em cada uma daquelas regras. Como se seu braço fosse mais curto do que o necessário para fazer um dos movimentos, mas não tão curto ao ponto de todo mundo perceber que é impossível. Sempre parece que você falhou por alguns milímetros, que é só questão de tempo até conseguir.

E ao perceber isso, você começa a olhar para todas as outras regras e perceber o padrão. Não dá para jogar o jogo com o que você tem, pelo menos não com o objetivo de ganhar. E aí, fica claro: o jogo tem que mudar, porque da forma como ele existe, ele é uma piada de mau gosto para todo mundo que não seja do grupo privilegiado que sempre vence. Deixar de jogar não é uma opção, porque esse jogo é a vida.

Conseguiu se colocar, mesmo que um pouco, nesse estado mental? Então agora você entende a base do que se chama de Teoria Crítica. Ao invés de passar por uma longa história de nomes e locais onde se presume que essa escola de pensamento tenha se originado ou desenvolvido, achei melhor fazer uma introdução um pouco mais humanizada. A Teoria Crítica é uma das fundações mais importantes da esquerda moderna, e foi evoluindo para abarcar cada vez mais “regras bizarras do jogo” com o passar das décadas.

Se a gente pensar no Marxismo, a base dos movimentos socialistas, é uma teoria que aponta um desequilíbrio de poder imenso entre os donos do capital e os trabalhadores. Um desequilíbrio que leva à exploração, e que não pode ser desfeito sem uma revolução. Volte para o exemplo do começo do texto e o grupo que sempre ganha o jogo é a burguesia. E justiça seja feita, na época que Karl Marx escreve suas ideias, a noção de que um trabalhador conseguiria ter uma vida digna com seu trabalho era tão absurda quanto a de um camponês virar senhor feudal.

A ideia de que o jogo está viciado acompanha a humanidade há milênios, e não sem razão. Porém, com o passar do tempo, vimos avanços lentos, mas constantes nesse sentido. O miserável de hoje não tem grandes chances de sair do buraco onde se encontra, mas com certeza tem mais do que tinha há alguns séculos. Se você tem uma propensão de pensamento mais à direita, deve estar lendo este texto desconfiado(a) do caminho que estou seguindo, o que é compreensível: normalmente quando discutem Teoria Crítica, o fazem com exemplos como chamar matemática de racista, biologia de transfóbica, engenharia de machista, etc.

Curiosamente, esses exemplos são apresentados com orgulho pela esquerda moderna, como provas de pensamento complexo e disruptivo em busca de justiça social. Então, talvez se você tenha uma propensão de pensamento mais à esquerda, esteja incomodado(a) com o caminho também, achando que eu vou só pinçar alguns exemplos que tornem tudo em deboche, tirando tudo de contexto.

Mas é aí que está o verdadeiro ponto do texto: Teoria Crítica é algo tão complexo que acaba sendo muito mal representada pelos seus detratores e hoje em dia, talvez até mais pelos seus defensores. E eu tenho a nítida sensação que quase todas as brigas políticas dos dias atuais são baseadas nesse emaranhado de ideias mal explicadas por gente que parece agir por puro instinto, sem reflexão real. Ou, de forma mais simples: e se o problema for um bando de gente que não entende muito bem sobre o que está falando?

Porque mesmo que se explique Teoria Crítica pelo ângulo do jogo viciado que eu escolhi usar no começo do texto, você ainda precisa acreditar que isso é o que realmente está acontecendo com a maior parte da humanidade. E mais importante: que um grupo específico realmente esteja ganhando esse jogo de forma injusta sem parar há séculos (talvez milênios). São duas premissas fáceis de aceitar, mas complicadas de provar racionalmente, especialmente quando você se insere nesse jogo.

O próprio funcionamento da mente humana se encarrega de criar esse problema, afinal, temos uma tendência natural de enxergar a grama do vizinho mais verde. Não custa muito para nos percebermos como oprimidos, mas admitir que estamos do lado privilegiado de uma questão parece que nos é praticamente alérgico. A pessoa faz a ginástica mental que precisar para tentar provar, para ela mesma e para outros, que se existe um jogo viciado, é ela que está perdendo. Afinal, a maioria de nós não se vê como alguém plenamente realizado na vida, e isso tem que ter um motivo externo!

Ninguém está acima disso. Com bilhões de humanos no mundo, cada um vivendo a própria vida, é praticamente impossível encontrar uma lógica social que faça com que todos acreditem que estão recebendo um tratamento justo ao mesmo tempo. Sempre vai ter alguém reclamando. O limite do que podemos fazer é nos organizar de tal forma a reduzir ao máximo o número de pessoas se sentindo injustiçadas. Mas isso não costuma ser o suficiente para controlar essa inquietude humana.

Tanto que se você prestar atenção no exemplo do jogo, é fácil se encaixar no papel de vítima das regras injustas. Comunistas culpam a burguesia, nazistas culpam os judeus. Não é como se você precisasse de uma base muito específica para moldar a Teoria Crítica à sua visão de mundo. Hoje em dia, a Teoria Crítica é base de movimentos pela justiça social, pregando que precisamos mudar uma sociedade que oprime mulheres, negros, homossexuais; mas também é cooptada por conservadores que dizem que pelo contrário, são grupos como homens, brancos e heterossexuais que estão realmente sendo oprimidos por esse movimento de justiça social e sua histeria punitiva.

É muito por isso que eu não quis seguir o caminho de nomear autores e datas para explicar o que seria a Teoria Crítica: parece algo vindo de um lugar muito profundo da experiência humana na vida. O senso de uma grande maioria que não sente que a humanidade se organizou da forma mais interessante para ela. O que é verdade! O mundo não gira ao seu redor. E toda vez que você tentar buscar um exemplo disso, ele vai estar ao seu alcance. O grande desafio diante dessa noção é tentar encontrar um equilíbrio entre as regras desse jogo, não um equilíbrio que garanta a vitória de todos, o que seria impossível e invalidaria a premiação, mas um que pelo menos garanta alternância de vencedores e perdedores.

Mas quando falamos do radicalismo político em voga no século XXI, não parece ser o verdadeiro tema das discussões. Quem tem privilégios gerados por regras injustas não quer abrir mão de nada, quem encontra alguma forma de igualdade acha pouco e quer que as regras mudem mais ainda até que sejam privilegiados. A Teoria Crítica não era sobre mudar quem seriam os vencedores do jogo, era sobre mudar o jogo. Mas infelizmente, parece que pouca gente entendeu.

E aí, você começa a ver exemplos cada vez mais estranhos: alguns pensadores dizem que a matemática é uma ferramenta de opressão que torna o jogo mais difícil para quem não é homem e/ou branco. Dizem que é baseada em formas de pensamento muito específicas do continente europeu e não leva em consideração outros tipos de visão de mundo que se desenvolveram no resto do mundo. E de forma provocativa, dizem que 2+2 pode ser 5 também, que não é um resultado errado, é um resultado diferente. E não tem nada de errado em ser diferente!

O que, num ambiente acadêmico, dada a devida conotação filosófica, pode ser algo discutido como um desafio à nossa visão limitada da realidade. Mas, que quando vaza dali para discussões da vida real, começa a cair em ouvidos cada vez menos preparados para lidar com a história toda. A ideia acaba se consolidando como ponto de discussão absoluto entre gente que acha que está defendendo minorias oprimidas com essa nova visão sobre matemática e gente que fica furiosa com a insanidade de tentar revisar algo tão básico para o funcionamento do mundo. No final das contas, são dois lados sendo traídos por levar algo muito mais a sério do que deveriam.

Pudera, está fácil de entender este texto? Provavelmente não. Quando as coisas ficam muito filosóficas é difícil não tentar buscar algum atalho para questões da vida real e tentar aplicar as ideias imediatamente para ver se fazem sentido ou não. Especialmente se você não tem experiência com esse tipo de ideia muito descolada da praticidade do dia a dia. Aí vem uma ativista de Twitter dizer que matemática é racista e que se 2+2 fossem 5 também, o mundo não seria tão difícil para as minorias, perdendo completamente o ponto da ideia original baseada na Teoria Crítica. E é essa pessoa que ativistas do lado oposto enfrentam nas discussões intermináveis de internet. O que também é prova de falta de entendimento, porque como diz o ditado, “quem fala demais dá bom dia a cavalo”. Toda bobagem suficientemente discutida ganha apoiadores.

E isso vai virando um ciclo: pessoas entendendo errado o que é a Teoria Crítica e discutindo sem parar conceitos altamente filosóficos como se fossem muito práticos. Não existe um jogo da humanidade com apenas um conjunto de regras, o exemplo do jogo viciado é um exercício de pensamento que pode ser adaptado a inúmeras situações. Se você acreditar que só existe um e que está sempre do lado injustiçado, provavelmente nunca vai perceber as vezes onde consegue o que quer ou quando perde de forma honesta. Porque tudo isso é possível ao mesmo tempo.

Alguns grupos humanos enfrentam injustiça com mais frequência que outros, e isso com certeza precisa ser trabalhado para criarmos um mundo melhor, mas ninguém deveria se definir apenas como oprimido. Porque ser apenas vítima é redutivo, e nos contextos atuais, é justamente o que se deveria combater no campo da justiça social: dizer que matemática é racista é dizer que uma das bases da evolução social humana é questão de genética “superior”. Esse tipo de distorção da Teoria Crítica é tentar tirar grupos humanos inteiros do que configura o mundo moderno, porque nasceram de uma forma ou de outra. O que eu considero muito ofensivo.

Se você voltar na base do que os pensadores da Teoria Crítica disseram, provavelmente vai encontrar discursos muito menos práticos do que as aplicações realistas que tentam empurrar por aí. Você pode achar que Karl Marx só pensava bobagem, mas dificilmente pode atribuir a ele as decisões horríveis tomadas por Stalin e Mao em seus regimes comunistas. Uma coisa é revolução em tese, outra é revolução na prática. Gente simplória não consegue ler quatrocentas páginas de algo como Teoria Crítica e tirar boas conclusões… era de se imaginar que o terror do comunismo teria nos ensinado essa lição, mas aparentemente não.

O que me leva ao ponto final deste texto: revoluções. Quando você internaliza um modo de funcionamento do mundo como um jogo viciado onde você nunca vai receber o prêmio que deseja, é óbvio que começa a considerar mudar o jogo todo. E uma das principais críticas à Teoria Crítica é sua propensão a gerar revolucionários cada vez mais radicais. Pouca coisa motiva tanto o ser humano como corrigir uma injustiça percebida. Se você começa a enxergar tudo como injustiça, fica praticamente impossível prever qual vai ser o estopim da sua mentalidade revolucionária. Não existem políticas públicas que acalmem a população o suficiente nesse contexto.

E não à toa, começamos a ver cada vez mais protestos ao redor do mundo. Grupos que até ontem pareciam ser só paz e amor armados nas ruas, enfrentando a polícia ao mesmo tempo que grupos reacionários se sentindo validados na defesa da estabilidade social tentando ganhar mais poder. E dada a devida “lavagem cerebral” causada pela distorção da Teoria Crítica por quem não tem capacidade de lidar com isso, todos podem se sentir preparados para uma revolução. Recordes de desigualdade social com certeza não ajudam com um barril de pólvora desses.

É tanta responsabilidade sua quanto você quiser assumir: se você entendeu que Teoria Crítica não é necessariamente a realidade prática das pessoas e sim uma forma de entender nossas relações e tentar encontrar os pontos de injustiça que podem ser corrigidos, pare de riscar fósforos perto desse barril. Uma hora ele pode explodir. E se ele explodir, não vai ter o que defender ou mudar…

Para dizer que prefere que eu volte a falar de pornografia, para dizer que Teoria Crítica não é isso e sim que você merece mais do que tem, ou mesmo para dizer que é só uma opressãozinha e vai passar: somir@desfavor.com

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