The Great Reset

É possível que muitos aqui já tenham ouvido ou lido o nome “The Great Reset”, especialmente no contexto de alguma grande conspiração acontecendo debaixo dos nossos narizes. Estariam as elites mundiais preparando alguma coisa nefasta contra todos nós?

Um pouco mais de contexto para quem nem sabe do que diabos estou falando: “The Great Reset”, ou “O Grande Reinício” numa tradução mais literal, é uma proposta do Fórum Econômico Mundial (aquele das reuniões em Davos na Suíça) para mudar os rumos da economia mundial no mundo pós-pandemia. O grande porta-voz da proposta é o Príncipe Charles do Reino Unido (também conhecido como ex da Princesa Diana).

A mídia não deu muita bola para o lançamento dessa proposta, costumam só se interessar pelo Fórum Econômico Mundial quando fazem suas famosas reuniões com líderes mundiais; mas os conspiradores de plantão foram à loucura. Pudera: o grupo sediado em Davos é composto por muitas das pessoas mais ricas do mundo, e não à toa tem o poder de atrair os maiores líderes mundiais todos os anos numa espécie de convenção da economia global.

Em tese, o FEM é uma organização sem fins lucrativos que legalmente tem tanto poder quanto a ONG daquela sua prima maluca que acumula gatos sob o pretexto de salvá-los das ruas. Mas na prática, ter entre seus membros muitos dos maiores bilionários e políticos de destaque no mundo confere pelo menos o poder da influência. É um clubinho exclusivo com mensalidade caríssima, mas que com certeza se paga com os contatos feitos lá dentro.

A missão deles é literalmente influenciar os rumos do desenvolvimento global através da economia, então o argumento conspiratório já começa a ficar mais fraco: um plano para moldar a forma como países e empresas lidam com a recuperação pós Covid não chega a ser uma surpresa vinda da organização, não? É como dizer que a Associação Brasileira dos Cafeicultores está agindo de forma estranha ao lançar uma campanha de incentivo ao consumo de café. Não há um conflito de interesses aqui. O Fórum Econômico Mundial faz essas coisas mesmo.

Mas o que é esse grande reinício? A proposta pode ser resumida como uma mudança de mentalidade de empresas e governos para valorizar mais atitudes sustentáveis na hora de estimular a economia num mundo que sofreu tanto com a pandemia. Ou, em termos ainda mais simplistas: já que as coisas ficaram tão paradas, vamos aproveitar para colocar umas ecochatices na hora de voltar. É mais fácil mexer num carro parado do que em um em movimento.

É claro que o projeto vai muito mais longe nas suas explicações, afinal, dinheiro para pagar gente para fazer textão não falta em Davos. No escopo deste texto, tentando entender de onde vem o pânico conspiratório, a explicação simples basta. Todos podemos ter muitos motivos para desconfiar de bilionários e governantes, mas se a base do medo é o nome “The Great Reset”, então na prática não é nada muito mais assustador do que a Greta Thunberg fazendo caretas numa reunião da ONU.

Talvez seja o nome. Pode ser que o FME tenha excelentes profissionais de economia ao seu dispor, mas podem ter economizado na parte de propaganda e comunicação. Quem eu estou enganando? Eu conheço cliente rico: quanto mais dinheiro a pessoa tem, maior sua propensão de empurrar ideias goela abaixo do pessoal de publicidade. Que eu também conheço como um bando de mercenários. Aposto que foi ideia de quem assinou o cheque. Em 2020, o clima não está bom para nomes que parecem que vão virar o mundo todo de ponta-cabeça.

E a forma de apresentar é outro erro de iniciante: mostrar um mundo de pessoas simples e felizes como objetivo final liga o instinto de sobrevivência da maioria dos conservadores. Sim, é “simpático” ficar mostrando lavradores africanos sorrindo em campos verdejantes, mas essa coisa proletariado feliz já foi muito usada na propaganda de regimes comunistas. Eu teria focado numa coisa mais urbana e tecnológica para não acirrar os ânimos da turma das conspirações comunistas para dominar o mundo.

Já digo faz tempo que um dos problemas mais sérios dos tempos modernos é o excesso de informação que chega ao cidadão médio. É um tanto demais para mentes que não estão treinadas para lidar com tanta coisa ao mesmo tempo, por isso a tendência é resumir tudo e tentar encontrar uma grande ordem mundial por trás da infinidade de notícias, teorias e estatísticas com as quais somos bombardeados diariamente. Vou até mais longe: sem um modelo conspiratório para dar liga a todo esse material, o cidadão médio provavelmente perderia o resto da sanidade que ainda tem.

O cérebro tem limites de quanta coisa pode manter em foco. Todo mundo tem que fazer algumas concessões em relação a quanta informação consegue processar de forma decente, e o modelo de imaginar um grande conluio global para controlar sua vida é excelente para simplificar as coisas. Mesmo que as coisas pareçam confusas eventualmente, há a segurança de saber que desde que você saiba escapar desse controle (ou tirar vantagem dele), entender essas informações é secundário.

Pessoas como eu e provavelmente muitos leitores do Desfavor tendem a preferir outro modelo, um pouco mais difícil, mas que também aceita a impossibilidade de entender tudo o que chega até nós: o modelo do interesse seletivo. Já que não dá para entender de tudo, que pelo menos você entenda bem de algumas coisas através da sua curiosidade e não se obrigue a ter opiniões fortes sobre o resto. Como todo modelo, tem pontos positivos e negativos. Aceitar que tem muito mais coisa que não se entende do que entende te deixa mais vulnerável a ser enganado por discursos de autoridade e “poços envenenados” de informação manipulada.

O modelo conspirador está sempre com uma pedra na mão, o modelo de interesse seletivo não. Se por um acaso o Fórum Econômico Mundial realmente for uma entidade tramando um golpe para controlar a humanidade, eu provavelmente daria o benefício da dúvida para eles por muito mais tempo do que o indicado. Mas, o interesse seletivo de ir pesquisar o que era esse “Great Reset” ao invés de achar que algo muito terrível vinha por aí e pronto me indicou que se há algum risco de regime totalitário controlando toda a humanidade, provavelmente não vem daí.

O que me permite ir buscar outros interesses e continuar atento ao que acontece no mundo. O conspirador vai ficar preso nisso por muito mais tempo, provavelmente estressado com a ideia de um ataque iminente às suas liberdades. É o preço de carregar essa pedra pra cima e pra baixo. No final das contas, é muito mais provável que as pessoas usando o modelo de interesse seletivo percebam de onde vem o perigo, afinal, são elas que estão observando mais coisas ao mesmo tempo.

E curiosamente, eu entendo o lado do Fórum Econômico Mundial: se tem algo perigoso no horizonte, é a questão climática. Na época da Greta, criticamos o uso de uma menina com algum tipo de problema mental como imagem do ambientalismo, porque ela tomaria todas as pancadas sozinha; mas não necessariamente criticando as ideias que ela foi treinada a repetir. Existem problemas sim. E eles vão muito além de matar um mico leão roxo com bolinhas amarelas: o impacto na economia e qualidade de vida média do ser humano tende a ser grande.

Mesmo com minhas relativamente poucas décadas nesse mundo, já dá para perceber que algo saiu do padrão. Quando eu era pequeno, existiam estações, por exemplo. Hoje em dia, onde moro é Verão o ano todo, com uma ou duas semanas de frio. Não é aquela análise simplista de achar que só porque esquentou existe aquecimento global, é uma quebra dos padrões climáticos sugerindo uma mudança de larga escala. Eu estaria mais feliz se fosse o contrário com frio o ano todo e duas semanas de calor, mas estaria percebendo algo errado do mesmo jeito.

O interesse seletivo me fez olhar para mais coisas e não considerar só uma experiência pessoal como prova de teoria, e, aberto a escutar o que outras pessoas pesquisaram, eu comecei a entender que se é para estar com a pedra na mão contra uma ameaça, essa parece a mais evidente. Mudança climática não é problema de possíveis netos meus, é algo que acontece bem mais rápido do que se esperava. E mesmo pequenas alterações já começam a mudar a lógica de uma sociedade tão complexa como a nossa: um pouco de aumento no nível do mar já impacta a economia global, afinal, muitas das maiores cidades do mundo ficam à beira do oceano. Climas um pouco fora do padrão já mudam consideravelmente os resultados da agricultura, mexendo com preços e criando riscos de falta de alimentos. Deslocamento populacional e insegurança alimentar causam guerras desde a antiguidade.

Mas eu vou estender a mão aos conspiradores mais uma vez, assim como a turma de Davos não soube se vender bem com essa história de grande reinício, boa parte do discurso ambiental das últimas décadas errou feio ao falar de um mundo em colapso total em um século ou dois. Primeiro que não impacta diretamente o ser humano médio, que provavelmente não enxerga muito além do próximo final de semana, e segundo que tentar assustar o povão só os aproxima do modelo conspiratório de pensar. Na hora do aperto, a pessoa corre para o que acha mais seguro. E nada mais seguro para um cérebro acuado do que se fechar em negação.

Existe um problema de publicidade nessa história toda. A menina de cara fechada na ONU e iniciativas com nomes como “Great Reset” são prova disso. É a humanidade achando que ainda está no mundo pré-internet, onde o cidadão médio tem amplo espaço para novas informações. Essa não é mais a lógica das coisas. Terraplanismo e antivacinação funcionam porque tem o poder de desinformar; aliviar a pressão sobre um pobre cérebro abarrotado de informação sobre coisas que nunca tinha pensado antes. Negacionismo científico e tendências conspiratórias são sintomas de uma alergia à informação que vai se instalando na humanidade.

O meu interesse seletivo me faz ficar com a pedra na mão contra esse problema, tanto que mesmo sem ganhar um centavo por isso, continuo escrevendo aqui. Acredito que alguma utilidade tem. Mas eu consigo enxergar que existem outros problemas no mundo: a questão climática com certeza é uma delas. E nesse ponto, debaixo dos erros de comunicação do Fórum Econômico Mundial, “The Great Reset” é uma ótima iniciativa. Eu teria chamado de algo como “Riqueza Verde” ou algo que remetesse a desenvolvimento, mas a base é sólida. Digo faz tempo que acredito que o mundo só consegue resolver a questão ambiental aumentando a eficiência e a lucratividade de iniciativas sustentáveis, e de uma certa forma é bem isso que eles propõem: aponta o dinheiro para esse lado e deixa as empresas correrem atrás das verdinhas.

Espero que mais gente comece a perceber que não dá para ignorar uma maioria de pessoas que se assusta com o que não entende por não estar treinada para ir aprender sobre o tema. Esse povo começa a achar que tudo é conspiração porque é o que cabe na cabeça delas. É uma questão de reeducação também, até mesmo quem consegue ir para a escola aprende as coisas na base do decoreba para passar em vestibular, aprendendo que o que a sociedade quer delas é que saibam de tudo, não que sejam curiosas e apliquem seu interesse em algo que lhes pareça valioso.

Num mundo onde saber é mais importante que aprender, tudo é conspiração.

Para dizer que ainda está desconfiado(a), para dizer que o Príncipe Charles escolhe sempre a opção mais feia, ou mesmo para dizer que eu sou um inocente por não me informar por corrente de WhatsApp: somir@desfavor.com

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Comments (16)

  • O que sei de reset é que o dinheiro vai ser digital então vai complicar a vida quem gosta de esconder roubo na cueca e que como a maioria dos empregos vai acabar, os países vão dar uma renda básica pros cidadãos que dê pra viver. Obs: Renda pra sobreviver só nos países normais, aqui no Braslixo vai ser de 100 reais quando só um pacote do arroz vai estar custando 50.

  • A fake news que eu ouvi por aí então tem fundamento? Será possível?
    O que ouvi por aí foi que um tal sistema econômico quântico (mas oi?) chamado “gesara” vai entrar em vigor, e não vai ter mais cartão de crédito, vai ter dinheiro pra todo mundo, não vai ter mais banco pilantra enriquecendo às custas dos outros, enfim, uma ideia bem comunista mesmo e que nada condiz com a realidade.

    Somir, sobre o modo de funcionar seletivo, acredito que seja até uma forma de proteção contra a insanidade, não?

    • Estou esperando a “gesara” junto com os alienígenas do Chico Xavier…

      E sobre o método de interesse seletivo, eu diria que sim, excesso de estímulo pifa cabeça de qualquer ser humano. Sem um chipzinho ou dois na cabeça, Uga Buga não é realmente bem equipado para saber sobre o mundo inteiro e dez mil campos de estudo ao mesmo tempo. Mas, como os adeptos do método conspiratório provam, dá para perder o fio da meada até mesmo se você tentar limitar ao máximo sua visão de mundo.

    • Gesara chega a ser piada tendo em vista a MERDA que é o PIX.
      Além de dar como alternativas documentos (CPF e CNPJ, no caso), celulares e emails (deixando dados pessoais vulneráveis) e chaves aleatórias como identificação, ainda fica uma chave presa a uma conta bancária e quando você tenta levar a chave pra outra instituição financeira é uma dor de cabeça.
      Mesmo considerando que a portabilidade da telefonia móvel por vezes é um parto, isso nem se compara a problemática da portabilidade da bendita chave PIX, que seria uma alternativa pra facilitar a questão de pagamentos e recebimentos, mas cuja aceitação anda pior do que a do cartão virtual da caixa pelo qual se paga o auxílio emergencial.

  • O conspiracionismo é o grande negócio do século XXI, seja para grupos reacionários, seja para movimentos de caráter identitário que buscam a todo custo se autopromover, com grandes benefícios em especial para as lideranças que propagam tais questões, que se colocam na condição de influencers.
    A exploração ai pode ser em cima de um problema real sendo exacerbado ao extremo, seja de uma questão fictícia baseada numa visão deturpada da realidade, por vezes havendo a mistura de realidade e ficção de uma forma que a pessoa não enxerga o jogo falacioso de caráter demagógico que visa tão somente a formação de um gado político em favor de um grupo constituído e consolidado dentro do jogo político.
    Nesse jogo, é sempre tudo culpa do neoliberalismo, do marxismo cultural, do racismo, do machismo, da homofobia, da transfobia, da gordofobia e o que mais der pra inventar.
    Como já dizia Homer Simpson: “A culpa é minha e eu boto em quem eu quiser.”

  • Só estou esperando os boomers morrerem de velhice pra ver se as coisas melhoram um pouco.
    Kitnet 15 x 15 construída em 1970 a 300 mil reais, vai tomar no CU

  • Eu vi o vídeo promocional no youtube, tiveram até que desativar os comentários e os dislikes lol
    O que me intrigou, admito, foi aquela frase “você não terá nada, mas você será feliz”.
    Mas enfim, o jovem de buchinho cheio, protegido do calor e do frio, sem ter que fazer força na vida pra nada, livre pra dizer o que quiser e fazer praticamente qualquer coisa acha que vive numa distopia…

    • Vender essa “felicidade simples” nos dias atuais, com desigualdade em alta, é falar de corda em casa de enforcado. Faltou assessoria.

  • Greta é asperger, e a natureza deles é reclusa. A sociabilidade os deixa exaustos e irritados. Para continuar e ficar bem sem crises eles precisam se afastar e depois voltar. Nada a ver terem jogado ela nos holofotes desse jeito.

    “Mesmo com minhas relativamente poucas décadas nesse mundo, já dá para perceber que algo saiu do padrão. Quando eu era pequeno, existiam estações, por exemplo. Hoje em dia, onde moro é Verão o ano todo, com uma ou duas semanas de frio.”
    Por aqui é imprevisível. Um ano é verão com uns 2 meses de frio, no ano seguinte é outono com 2 meses de verão, no ano seguinte as estações se resumem em verão com chuva e verão sem chuva, no ano seguinte as semanas alternam entre muito frias e muito quentes… Também percebo que faz tempo que não vejo alguns tipos de insetos que eu sempre via na infância, como joaninhas e borboletas.

    • Imprevisibilidade é um dos sintomas. Pra quem é da cidade é mais encheção de saco, mas para a agricultura é um perigo dos grandes.

    • Um autista “asperger” pode até ir bem e apresentar certa desenvoltura… Contanto que seja no campo de hiperfoco da pessoa. Fora disso pode ser um completo desastre.
      A Greta estava claramente em crise no dia que foi na palestra da ONU de forma similar ao Mark Zuckerberg quando foi ter de prestar contas com o Congresso Norteamericano.
      Em tempo, um desfavor é o que envolve agora o Facebook. Se fala que o mesmo teria marcado posição de monopólio com a compra do Whatsapp e do Instagram, mas o mais daninho ai não é tal aquisição e sim a política de Zero Rating implementada por operadoras em geral, em completo desacordo com a pretensa “neutralidade de rede” da qual se falava há alguns anos atrás.
      Inclusive, o Google (também “monopolista”, mas mais “esperto” a ponto de não se deixar ser pego no pulo), vendeu a Motorola a Lenovo já se antecipando a eventuais problemas que poderia ter com a justiça americana.

  • Já é um parto pra chegar a consensos em blocos econômicos regionais de uns poucos países que compartilham vários pontos culturais e históricos, imagina entre uns 200 países…
    Esse negócio aí vai ficar na teoria enquanto caminhamos para o fim.

    • Acho que a grande questão aqui é conseguir que alguns governos e empresas façam isso. O Fórum Econômico Mundial não manda em nada, mas pode influenciar o rumo do dinheiro. Se essa visão “verde” começar a render, mais gente pode seguir.

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