Depoimento: Crise de saúde em Manaus.

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Depoimento: Crise de saúde em Manaus.

Moro em Manaus e gostaria de compartilhar os fatos que estão acontecendo por aqui. A ampla cobertura pelos meios de comunicação não é capaz de traduzir os sentimentos prevalentes aqui na cidade: medo, desespero e revolta. Todas as comparações realizadas, por mais chocantes que sejam, são apenas uma pálida analogia da real situação. Tudo isso causado por uma mistura da imprudência e da negligência com as quais tanto o governo local quanto nós, manauaras, encaramos a pandemia desde o início.

Não entrarei no mérito de quem é a culpa, do que poderia ter sido feito e não foi. Não, não farei isso. Quero compartilhar os relatos e vivências que chegam até a mim.

A crônica da tragédia anunciada foi escrita por muitas mãos, nos mais diversos setores da sociedade manauara. A caminhada para a beira do abismo que se transformou o colapso da rede hospitalar começou com coisas do tipo:

  1. Houve um evento no Teatro Amazonas, organizado pela Secretaria de Cultura do estado, com um dos Bois de Parintins, cidade essa que é um dos principais focos de ocorrência da doença desde o início da pandemia. Resolveram trazer um número grande de componentes assegurando que todos estavam saudáveis. Resultado: algum assintomático na comitiva proporcionou a contaminação e o óbito de diversos integrantes da agremiação, inclusive o de uma grávida que teve que passar por uma cesárea de emergência para tentar salvar a criança.
  2. O recuo do governador após a passeata para liberarem o comércio na cidade. Ali a sirene do “vai dar merda!” foi acionada. Com a revogação do decreto, muito comemoraram a “vitória” da população (leia-se comerciantes) e do seu direito de ir e vir. Mas a conta chega, ela sempre chega.
  3. Aqui houve uma “epidemia” de rolês aleatórios e clandestinos TODOS os finais de semana desde que proibiram festas na cidade. Para todos os gostos! Funk, forró, “boi” (ritmo regional muito valorizado por aqui) e até gospel… parece que ao saber de que estava proibido de participar desse tipo de aglomeração, a cabeça do manauara explodiu e se tornou questão de honra organizar/participar desse tipo de coisa. E a vontade era tanta que eram blitz todos os finais de semana com vária detenções e eles iam cada vez mais longe, geograficamente falando, para realizar os eventos e cada vez mais lotados…

Apesar de haver muito mais fatos que colaboraram para o panorama calamitoso que atualmente enfrentamos, essa é uma amostra do que nos levou a chegar a este ponto.

Hoje podemos ver em todos os hospitais da cidade, sejam públicos ou particulares (que foram os primeiros a suspenderem os atendimentos, mesmo quando ainda não haviam alcançado a capacidade máxima de internação e cobrando valores exorbitantes de cheque caução para receber os doentes), cenas de desespero generalizadas.

Não adianta ter o melhor plano de saúde, ter dinheiro em espécie nas mãos (e, acreditem, rolaram muitos casos de tentativas de suborno para comprar leitos e furar a fila de internação com as pessoas literalmente se engalfinhando nas portas dos hospitais – isso a mídia não mostrou) se não há o que “comprar”. Aqueles com posses ainda buscaram mandar seus parentes para fora do estado, mas a maioria não conseguiu.

Como as pessoas estão sem a opção de socorro médico nas instituições de saúde, são forçadas a ficarem em casa, aumentou consideravelmente o número de óbitos domiciliares. Estava conversando com uma amiga, contando sobre o falecimento de um colega de trabalho, quando ela começa a chorar dizendo que a mãe estava morrendo na frente dela em casa. Eu acompanhei em tempo real isso acontecer, pude escutar ao fundo os gritos dos demais familiares, a angústia através da ligação…foi surreal… nunca imaginei passar por essa experiência macabra… NUNCA!

Houve também os casos de falecimento nas unidades hospitalares por falta de oxigênio medicinal, amplamente divulgado nas mídias, o que por si só já é de um absurdo sem precedentes. Falando com uma amiga médica, ela disse que o nível de depressão entre os profissionais de saúde aumentou e que muitos pensam em desistir não pela rotina extenuante, mas pelo fato de que não tem insumos básicos, não apenas oxigênio, para executar os procedimentos. Disse, ainda, que na tentativa de manter os pacientes até os auxiliares de limpeza se ofereciam para “ambuzar” (ventilar manualmente) os pacientes. Pessoas próximas a mim presenciaram isso. Não escutaram falar…

Ou receber mensagens como “Acabei de perde meu tio por parte de pai. Minha tia falou que estão morrendo em serie sem oxigênio. Cena de filme. Acabou o oxigênio. Meu tio foi um desses. Mana tô em Pânico. Agora vai ter toque de recolher. Eu vou fica em casa por esses tempo. Não vou sair pra nada nada. Vou me resguarda com a meninas.. Se cuide mana.. tá tenso por aqui” (sic).

Ainda há a questão do sepultamento dos corpos. O maior cemitério em funcionamento, conhecido como Parque Tarumã, é localizado em uma área verde da cidade. Dia após dia tem sido necessário derrubar as árvores da mata interna para abrir clareiras e escavar as valas coletivas onde os caixões são colocados empilhados. Os cortejos só podem ser de até três pessoas e apesar disso sempre há congestionamento de carros funerários com longas filas na estrada que lhe dá acesso. Todos os que enterram seus familiares dizem que não conseguem esquecer a cena da retroescavadeira em ação…e para complicar mais a situação dramática, estamos em épocas de chuvas torrenciais na região norte, o que aumenta o risco de as “sepulturas” recentes serem destruídas ou levadas pelas águas já que a maioria está localizada em áreas declivosas com solo recém revolvido…

Quando eram apenas NÚMEROS as pessoas não se importavam, não havia caído a ficha…mas agora que se transformaram em NOMES, tudo saiu do campo do abstrato.

Lamentável é que tenhamos tomado consciência da necessidade de ficar em casa apenas após tantas perdas. Mais lamentável ainda é que essa consciência ainda não chegou a toda a população daqui.

Não sejam como nós. Observem e aprendam pelo o exemplo, pois o ser humano costuma aprender pelo amor ou pela dor. E a segunda opção é infinitamente pior.

Se cuidem. Fiquem bem.

Por: Saloli

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Comments (44)

    • Atenção para esses últimos dois parágrafos da matéria da BBC Brasil:

      Ao falar sobre as circunstâncias da morte do pai, Maria Cristina afirma que se sente frustrada “profissionalmente e individualmente”. “Do que adianta estudar tanto e não conseguir evitar que ele adoecesse?”, se questiona a epidemiologista.

      “As desinformações nas redes deturpavam todas as medidas que eu falava para o meu pai adotar. Não dá para competir (com fake news). As pessoas acreditam naquilo que querem. Essa confusão de comunicação de risco que temos no Brasil matou o meu pai”, diz Maria Cristina.

  • Infelizmente, o que aconteceu em Manaus vai se repetir nas outras cidades, porque o brasileiro achou razoável aglomerar no Natal e Ano Novo. A conta está chegando, e o preço é alto.
    Assim que a pandemia começou, os hospitais do RJ estavam com o fluxo razoável de contaminados. A coisa, aparentemente, estava tranquila. Tanto é que os hospitais de campanha foram desativados. Apesar do número de infectados e mortos ser alto, os hospitais ainda davam conta. A partir de outubro/novembro, a coisa mudou. Não sei dizer ae houve algum evento para essa mudança ou evolução normal de uma pandemia mal gerida por todos (governantes e população). O pessoal da área da saúde no RJ, começou a se sentir pressionado de verdade, e os pedidos de demissão aumentaram. Com isso, o plantão ficou mais caro, mas mesmo pagando mais, os médicos estão cada vez mais seletivos. No início da pandemia, não sei se todos se lembram, mas os veterinários entraram numa lista para trabalharem. Bem, se as coisas continuarem como estão, já sabem…
    Tem mais coisa. Para quem acha que a máscara não resolve nada, ela resolve. Saiu uma pesquisa, meio óbvia por sinal, que traçava a relação entre exposição à carga viral e desenvolvimento da doença. Adivinhem uma coisa?! Quanto mais você se expõe, mais o seu corpo é agredido pelo vírus e mais vai ter que lutar para se livrar dele. A máscara diminui essa carga viral, ou seja, mesmo se expondo, a carga viral que entra em contato com o seu organismo é menor, logo o esforço para se livrar do vírus também é menor. Então usem a máscara.
    Obs.: se você é gordo, diabético, possui qualquer síndrome metabólica, não dá bobeira! Se o vírus te pegar, as chances de vc ter complicações são altíssimas.
    Desculpa a dissertação.

  • Kkkkk sumi com a bengala do meu velho.
    Vai sair não, fica em casa, se sair te tranco p fora de casa.
    O velho pirou, reclamou, só me fiz de surda.
    Ele tá criando raiz na frente da TV.
    Falei: melhor assim, vira teletonto, cria raiz no sofá, mas p mim não vai trazer corona não.
    E o tamanho daquela agulha? Vai estuprar nosso braço.

  • Ontem ouvi um relato de que um jovem foi desesperado levar o pai para o hospital e deixaram os dois do lado de fora. Ficavam falando de dentro do hospital que não havia mais como internar o coitado do pai. Nisso, o pai morreu, sem ar…Estou bugada até agora.

  • Eu só tenho saído quando não tem remédio, contra a vontade e reclamando, porque se fossem coisas que eu pudesse fazer de casa, faria. Mas tem coisa que nao tem jeito (especialmente burocracia) e vou, mas volto e acho que tomo dez banhos e mais cinco desinfetadas de álcool. Faz 10 meses que não saio, e meus vizinhos continuam num bundalelê que não entendo (sumiram, devem estar na praia ou afins, mas no ano novo, tinha uns mil em cada casa).

    2021 vai ser 2020 versão hardcore, porque o povinho está levando na brincadeira, achando que tudo é exagero da mídia comunista fascista analista esquerdopata anticristã e seilamaisoque… sera que eh caro um fosso de crocodilos na frente de casa?

  • Cansei de discursar para as paredes em casa para que façam isolamento e eles saindo como se não houvesse pandemia. Resultado em Setembro tive um diagnostico positivo (todos se recusaram a fazer exame) como o protocolo é isolar todos que moram na mesma casa aproveitaram o “atestado” e foram para praia. Tive sintomas leves, embora olfato ainda não esteja 100%, e isso parece que deu licença para eles reforçarem a tese da “gripezinha”. Cansativo e estressante demais.

  • Não vou a igreja (meu prinipal meio social) desde Março, e o tanto de vezes que minha família foi questionada, zoada, chamada de medrosa sem fé não ta na fita. Fora o que a gente não fica sabendo. Um dos membros que era mais proximo do meu pai morreu e eu jurava que iam pelo menos diminuir o negacionismo e a galhorfa, não didiminuiu Eu tenho certeza que se estivessemos frequentando meu pai teria pego desse membro e teria se complicado. É horrivel ficar em casa, sempre a mesmas pessoas, as mesmas discussões, mas é fichinha perto dessas cenas horriveis descritas e da culpa de infectar ou colaborar pra doença de um pai ou mães que se carrega o resto da vida. Não quero isso jamais. Cuidem se.

    • Que bom que você tem essa consciência. Tem muita gente nessa situação, contaminando pai/mãe e na cabeça das pessoas não passa um pingo de noção de “fui na aglomeração e matei meu pai”. É sempre decisão divina, era a hora. É sempre culpa dos outros. Nunca da pessoa.
      Aguente firme..

  • Acha que tá ruim? Calma que piora. A rota aérea Manaus-Guarulhos é a mais relevante das rotas brasileiras de transporte de cargas.
    A não ser que a Zona Franca esteja com as produções paralisadas, é questão de tempo pra isso chegar no centro-sul TAMBÉM por esse fator.

  • O Brasil não precisa se meter em uma guerra contra ninguém para ser destruído. Os próprios brasileiros se encarregam disso.

  • Como eu previa, me senti mal ao ler este texto. Mas era uma leitura necessária. Não há como não se chocar – e não se enojar – com a situação teratológica de Manaus. Lembrei de um comentário desabonador que o jornal espanhol “El País” publicou sobre esta pocilga logo após o hoje já esquecido incêndio no Museu Nacional e que também serve perfeitamente para este momento lamentável: “O Brasil é um construtor de ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais.”. E o mais triste é que agora as ruínas da vez são VIDAS! Um país que se deixa chegar a tal ponto de danação não tem como dar certo…

    • É pra chorar mesmo, afinal vcs também tem a sua parcelinha de culpa na eleição desse inútil que hoje é Presidente do Brasil. As suas mãos também estão sujas de sangue.

      • Claro, porque quando a gente escreveu que votar no Lula era inaceitável porque premiaria o maior esquema de corrupção da história da humanidade com mais um mandato, estávamos falando de uma pandemia que começaria na China em 2019…

        Qual a sua próxima previsão, profeta do acontecido? Os números da mega-sena da semana passada?

        Segue um texto que já foi escrito sobre isso: http://www.desfavor.com/blog/2020/05/culpando-e-andando/

      • Sim! a culpa é de quem votou! Receber voto te dá aval para fazer qualquer coisa!

        A culpa não é de quem foi à praia e ao puteiro. De quem foi a jantarzinho “em nome da sua saúde mental”.
        Todas essas pessoas negacionistas, ignorantes e sem senso de sacrifício ficaram assim POR CAUSA DO BOLSONARO!

        Meu anjo, Bolsonaro não é a doença, é o sintoma. A doença É O BRASILEIRO. E enquanto pessoas como você continuarem tratando o povo dessa forma paternalista, de quem “precisa de um líder para serem conduzidos por uma crise”, vai continuar esse povo infantilizado e imbecil.

        Aqui pra você. Cresce e para de jogar a culpa nos outros!
        http://www.desfavor.com/blog/2020/05/culpando-e-andando/

      • Sim, claro. Bolsonaro esses dias veio na minha casa, colocou uma arma na minha cabeça e disse “VAI PRO BAR AGORA!”

        Essa mania que brasileiro tem de terceirizar toda a culpa do que tá acontecendo, essa mania de colocar essa aura de inevitabilidade no evitável, essa alergia a autorresponsabilidade, tudo se acumula em uma grande bola de neve e vem cobrar a conta quando o bicho pega.

        Alías, menção honrosa a essa pensamento simplista de achar que o Bolsonaro é o grande culpado por toda a danação que o Brasil tá vivendo. Até parece que antes dele assumir, o Brasil era uma Finlândia da vida. Posso te contar um segredo, fera? Bolsonaro não piorou o Brasil. Ele só abriu a tampa do país. Bem-vindo ao país onde você mora.

  • Renato Silva Pires

    Tô muito apreensivo de acontecer algo comigo ou com a minha família. E para piorar, aqui na minha rua tem aglomeração em todo final de semana.

  • Aliás, não é pra amarrar só a vó, é hora de TODOS que puderem ficarem casa. Estamos todos no mesmo barco. Essa merda de vírus se mutando aleatoriamente está pegando todos os que sairem e abusarem um pouco.
    Sim, é hora de medo, pânico mesmo.
    O povo tem que deixar de querer provar que é machão, feminista e merdista. Tem que se trancar p q estamos todos expostos independente da idade e fator de risco.
    1 ano e ainda tem quem nega a periculosidade desse serzinho invisível e destruidor.
    Eu não quero não só não pegar esse vírus, não quero ficar na cama, no hospital, com tubos e oxigênio (apesar que até o mais básico estar faltando).
    Quero ficar em casa com saúde,lendo, brigando com a parceria, vendo seriado bobo, mas em casa.
    Mão na consciência, se preservem, acreditem na merda do perigo que estamos vivendo.
    Não é hora de direita/esquerda. Parem com isso.
    É hora de ficar em casa.
    Não mandem crianças para as escolas.
    1 ou 2 anos atrasado, que mal tem?
    SE CUIDEM. TODOS, TODOS, TODOS.
    É hora de temer pela vida.
    Criem raizes nas cadeiras, mas fiquem em casa.
    Io

    • Concordo com cada palavra. E digo mais: quem ainda fica politizado uma situação como esta só está passando recibo de que NÃO ENTENDEU PORRA NENHUMA!

    • Estou vendo muitos pais pedindo a volta às aulas, pois acham um absurdo o filho perder um ou dois anos.
      O filho morrer (ou o risco de) tá tudo bem, né? Parece que os pais estão mesmo de saco cheio dos próprios filhos.

      Na primeira onda eu aconselhava a quem pudesse a ficar em casa. Hoje eu aconselho a que todos que não vão passar fome fiquem em casa.

      • Minha mãe queria ir à cabeleireira ‘pq o cabelo está grisalho’. Sumi com as chaves do carro. Sorry, not sorry, pode me processar. Isso lá é preocupação para essa época?

        E a cabeleireira tem filha de 5 anos que brinca no ‘praygrond’ mas ‘segue todas as normas de segurança’, apesar do vetorzinho não usar máscara. Okay, e eu sou a Mulher-Maravilha.

      • Lotérica é o lugar que quero evitar. Talvez nesse momento pós auxílio emergencial esteja menos caotico, mas na média consegue ser pior que ônibus em horário de pico.
        E ainda me instalam esses pontos dentro de supermercado sem ter a menor estrutura pra um distanciamento social efetivo.

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