O mérito da pandemia.

Apesar dos números alarmantes, a pandemia de covid-19 é relativamente leve em comparação com muitas das doenças que já assolaram a humanidade. Sally e Somir concordam que a reação global foi deficiente, mas não concordam sobre a necessidade de uma lição mais severa sobre o tema. Os impopulares transmitem sua visão de mundo.

Tema de hoje: o ser humano merece uma próxima pandemia?

SOMIR

Não. E podemos analisar essa questão por dois ângulos, um mais filosófico, outro mais prático. Vamos começar pelo filosófico para estabelecer uma base de pensamento, e dela vai surgir naturalmente o aspecto prático. O que significa merecer uma pandemia?

A humanidade já passou por várias durante sua história, algumas absolutamente devastadoras como a Peste Negra. Será que a humanidade mereceu perder quase um terço da sua população de forma lenta e dolorosa vários séculos atrás? O que será que aqueles camponeses extremamente pobres fizeram de errado? Excesso de ignorância? E durante a Gripe Espanhola no século passado? Será que foi uma punição por travar a guerra mais sangrenta já vista até então?

Mas… se tem uma constante na humanidade, é que o grau de ignorância médio sempre foi muito alto. Sempre vai ser uma comparação cruel com uma sociedade pós-industrial no seu auge da disponibilidade de informação. O povo dos anos 80 já era muito ignorante comparado com o povo de 2021. E na parte das guerras… bom, aí fica mais difícil tentar achar motivação para uma doença global, estamos em guerra uns com os outros desde… sempre. A cada avanço tecnológico importante, as guerras ficam mais e mais terríveis. Por que escolher só uma para isso? E quem disse que outras pandemias não aconteceram durante outras guerras?

Meu ponto aqui é que se você realmente quiser achar algum merecimento para uma pandemia na história humana, todo dia foi dia, há milhares e milhares de anos fazemos coisas erradas que merecem uma punição. E nem sempre somos punidos com uma doença terrível que se espalha pela população sem controle. Digo que essa é a parte filosófica da argumentação porque o ser humano tem uma tendência de querer enxergar padrões de ideias abstratas como justiça numa natureza que não está necessariamente preocupada com isso.

Merecimento é um conceito muito carregado de significados para o ser humano. Misturamos nossa necessidade de aprovação no meio disso tudo: queremos ser reconhecidos e recompensados pelos nossos esforços, queremos ser queridos e sentir que merecemos ser queridos. O que é completamente compreensível nas nossas relações com outros seres humanos, mas começa a perder a lógica na nossa relação com a natureza. A chuva não cai onde mais precisamos, o raio não atinge apenas aquele que faz mal para os outros… o mundo concreto está fora dos nossos desejos abstratos.

Doenças são em sua grande maioria outras espécies competindo conosco pelos recursos limitados deste planeta. O vírus não é bom ou ruim, o vírus sobrevive como pode. A humanidade não depende de um bom comportamento para vencer essas disputas, podemos chegar num futuro onde somos horríveis uns com os outros, mas a tecnologia da medicina é tão avançada que a maioria absoluta das doenças ficou no passado. Por isso eu tomaria muito cuidado de falar sobre merecimento de qualquer doença: na prática a doença não tem preferências sobre quão boa uma pessoa é.

E muito da mentalidade mística que tanto atrapalha nossa evolução como espécie atualmente vem dessa mania de querer atribuir propósito abstrato para o funcionamento concreto da realidade. Uma nova pandemia pode ajudar a humanidade a agir de forma que consideramos melhor, ou pode piorar tudo e impedir que cheguemos no ponto de alcançar essa melhora. Não é garantia de nada nesse campo. Podemos sair do coronavírus mais ou menos iguais, apenas com um processo de produção de vacinas mais rápido. Não acaba com os negadores, não desfaz o egoísmo de tantos que espalharam a doença para não abdicar do seu lazer…

Porque na prática, se a humanidade é consistente numa coisa, é em evolução desigual. As pessoas não avançam no mesmo ritmo, é sempre um grupo pequeno que consegue as condições ideais e com o passar dos anos distribui esses avanços para o resto. Provavelmente vamos ver um avanço considerável na tecnologia para combater vírus nas próximas décadas, porque a doença fez pressão seletiva nessa parte da humanidade. O povão parece não ter entendido de verdade por que usar máscara e ficar alguns meses sem ir beber num bar, e isso provavelmente porque não tinham condições de entender isso. Os que tinham aprenderam a lição, e como sempre, vão ter que achar formas de carregar essa gente toda rumo ao futuro, mesmo que essa gente toda não entenda patavinas sobre o que aconteceu.

E isso pode ser provado pela onda de negadores científicos em pleno 2021. Não entenderam nem porque a Terra era redonda ainda, mas se beneficiam desse conhecimento todos os dias. A evolução é assíncrona. E foi assíncrona por milênios, mesmo com todas as provações pelas quais a humanidade passou. Não há motivo algum para crer que uma doença ainda mais perigosa que a covid-19 magicamente abra os olhos dessa maioria atrasada. Eu argumento que se essa pandemia fosse mais mortal o ser humano provavelmente reagiria melhor, mas não do ponto de vista de um aprendizado consistente. Medo ajuda a controlar o povo por algum tempo e reduzir a transmissão. Mas não que as pessoas fossem tirar lições profundas disso, era só um predador fora da caverna, algo que nossos genes já nos ensinam a lidar: espera passar antes de sair de novo.

Essa história toda de aprender na dor ou no amor tem muito mais a ver com aprender do que amor ou dor. Você precisa da capacidade de entender o que está acontecendo, o estímulo externo positivo ou negativo para de te influenciar eventualmente. E numa sociedade de evolução assíncrona, não faz muito sentido depender de tragédias para ensinar lições valiosas. Elas ajudam quem está pronto para dar o próximo passo, mas são apenas sofrimento sem sentido para quem não está.

Não tem atalho. O ser humano demora muito para consolidar os ganhos mais básicos em desenvolvimento intelectual. Tem muita gente enxergando o mundo como enxergaria na Idade Média atualmente. A Peste Negra não ensinou nada para a humanidade como um todo, só para uma minoria que conseguiu passar esse conhecimento para minorias cada vez… maiores… com o passar dos séculos. Demora. Demora muito.

Muito cuidado com essa ideia de merecermos uma doença ou tragédia, não merecemos mais hoje do que merecemos ontem, e não merecemos por igual. O conceito de justiça é abstrato e por isso exclusivo de mentes abstratas. O mundo natural não joga com essas regras, por isso o ser humano precisa de alguma margem de respiro para poder continuar sua evolução, mesmo que sejam poucas pessoas por vez carregando uma maioria nas costas. Quem tinha que aprender, aprendeu.

Um dia poderemos sair do planeta e deixar os religiosos (tradicionais e modernos da lacração) se matando como bem entenderem, mas até lá, eu gostaria muito de ter tempo de preparar as naves…

Para dizer que a saída é um foguete, para dizer que ninguém merece porra nenhuma, ou mesmo para dizer que queria uma doença que só matasse quem não acreditasse nela: somir@desfavor.com

SALLY

O ser humano merece uma próxima pandemia?

Sim. Não aprendeu nada com essa, vai fazer uma pá de bosta novamente, portanto, bem merecida será. E, não se enganem, não é uma possibilidade, é uma certeza. Uma próxima pandemia virá.

Eu preciso elencar aqui a quantidade de merdas que o ser humano fez, desde o início para que um vírus que estava presente em animais selvagens chegue a ponto de contaminar o mundo todo? Não, né? Todo mundo tem um mínimo de noção da péssima condução que houve para que culmine nessa danação gigante que estamos vivendo. É merecido, é mais do que merecido. E os erros se repetem, dia após dia.

O estilo de vida da atual sociedade nos empurra novamente para isso. E não, não é um papo hippie sobre viver em comunhão com a natureza, é sobre algo maior, sobre atochar o mundo de pessoas e, mesmo abarrotado, continuar fazendo filho porque “é o meu sonho”. Plantar árvore e reciclar lixo é fácil, quero ver fazer esforço real. Esforço real, sacrifício que pega, que dói, ninguém quer fazer. Continuem abarrotando o planeta, deixando suas proles irrelevantes, os vírus agradecem.

Gente consome recursos, gera lixo e poluí o planeta. Uma pessoa não viveria tempo suficiente para plantar as árvores necessárias para atenuar o impacto que seu filho vai causar no planeta. Vai continuar depredando, tirando espécies selvagens do seu habitat, majorando as chances de novas pandemias.

O ser humano é assim, ele separa o lixo orgânico em um saco diferente e se sente com a consciência tranquila, mesmo com três filhos em casa. E ainda aponta o dedo para quem não o faz. Fato: a melhor ajuda que você pode dar ao planeta é não fazer filhos. Vale mais a aparência do que o ganho real do que se faz. Pois bem, quando o que se faz não é muito útil, as consequências chegam.

Quando você precisa depredar recursos finitos para tentar atender a 8 bilhões de pessoas, acaba se enviando onde não deve, destruindo o habitat de quem não deve, comendo o que não deve. Quando você precisa encaixar 8 bilhões de pessoas em uma bola que é 70% água, as pessoas ficam próximas demais e potencializam o contágio de qualquer doença. Quando você precisa educar 8 bilhões de pessoas e não há disponibilidade ou recursos para isso, você cria uma massa de imbecis que potencializam os danos de qualquer doença.

O ser humano é idiota. Alguém ousa discordar? Idiotas merecem colher todos os frutos de sua imbecilidade. Ou vamos começar a defender que uma coletividade que faz merda por cima de merda merece uma colher de chá? Negativo. Ações tem reações. Escolhas tem consequências. Não vou dizer que estou torcendo por uma nova pandemia, não estou, mas se ela acontecer, eu não tenho como negar que foi merecida.

Há 12 anos eu passo a minha semana colhendo diariamente todas as notícias que posso sobre comportamento idiota humano para a coluna “A Semana Desfavor”. Eu garanto a vocês: a humanidade é imbecil e joga contra sua própria sobrevivência. Tudo que lhe aconteça é bem feito, é merecido, é consequência das suas escolhas.

Qualquer animal que faça escolhas erradas sofre as consequências disso. Por qual motivo o maravilhoso ser humano, esse alecrim dourado, estaria isento da regra? Faz um monte de merda? Não sabe se cuidar? Não sabe cuidar do lugar onde vive? A consequência natural disso é que surjam sucessivos problemas, entre eles, uma pandemia.

Fica muito fácil de constatar quem é mais bem adaptado nessa disputa: o vírus. Ele é mais competente, faz o que tem que fazer e se aprimora a cada dia. Calcula-se que existam, no planeta Terra, um nonilhão de vírus (são 30 zeros).

Se você não sabe mensurar esse número, vou simplificar: estima-se que existam mais vírus na Terra do que estrelas no universo. O vírus tem mais mérito do que os humanos, está no planeta há mais tempo e não se sabota. Obviamente ele tem os méritos para voltar e fazer estragos, quantas vezes quiser.

No meio de uma pandemia, no mundo todo, temos gente negando a existência do vírus, se recusando a usar máscara ou qualquer outra medida preventiva, burlando as regras por falta de senso de sacrifício e acreditando em tudo quanto é teoria da conspiração. Olhem para as praias lotadas, para os bares lotados, para os negacionistas. Vocês acham que essa humanidade não merece uma nova pandemia?

Talvez você ache que não é justo que uma maioria de pessoas sensatas paguem pelos erros de uma minoria inconsequente. Depende. Depende do comportamento que essa maioria sensata tem.

Em colônias de morcegos, quando alguns começam a se portar de forma a colocar em risco a vida de todos, eles são imediatamente executados, enxotados ou neutralizados. Essa comunidade não merece pagar pelos erros dos imbecis. Mas os humanos sim, pois eles foram permissivos e tolerantes com aqueles que se portaram de modo a colocar toda a espécie em risco.

Então, sim, todos nós somos culpados, por permitir, tolerar e aceitar que grupos imbecis coloquem em risco a sobrevivência de toda a espécie. Todos nós merecemos uma próxima pandemia, até mesmo aqueles que, como eu, estão há um ano em uma quarentena muito restrita, fazendo tudo que podem para conter o vírus. Quem se cuida ainda erra, pela inércia, por tolerar que terceiros coloquem em risco os demais.

Não dá para passar pano para o ser humano, por dezenas de motivos ele faz por merecer uma nova pandemia. Como eu disse, por motivos óbvios, não estou torcendo por isso, mas consigo ser racional e perceber que sim, fizemos por onde.

Para dizer que todo castigo para a humanidade é pouco, para dizer que melhor um meteoro pois é mais rápido ou ainda para dizer que ainda dá tempo de eliminar os negacionistas: sally@desfavor.com

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Comments (10)

  • Enquanto a Humanidade continuar tão obtusa como temos visto, vai continuar merecendo tantas pandemais quantas ainda estiverem por vir no futuro.

    • Temo que essa “obtusidade”, infelizmente, esteja no DNA de boa parte da Humanidade… Ou, para usar as palavras da Sally: “Não aprendeu nada com essa, vai fazer uma pá de bosta novamente, portanto, bem merecida será. E, não se enganem, não é uma possibilidade, é uma certeza. Uma próxima pandemia virá.”

  • *Um passeio pelo Google Earth e uma rápida pesquisa sobre as taxas de natalidade em cada país desmente toda a narrativa de superpopulação. O mundo não se resume a São Paulo, Nova York e Pequim, e casais pobres com uma penca de filhos já se tornaram a exceção há pelo menos 20 anos;

    *Superpopulação é desculpa pros grandes empresários poderem empurrar apartamentos minúsculos a preços absurdos e atrapalhar a compra de terrenos no campo (quem vocês acham que financiam aquelas invasões e assassinatos de pequenos fazendeiros?);

    *Nos lugares onde nascem muita gente são lugares onde também morrem muita gente, antes mesmo de chegarem à maioridade, e a maioria das pessoas do mundo é pobre demais pra causar impactos ambientais (digamos, comprando maquiagem e celular todo ano, produtos que dependem da exploração de recursos e levam anos pra se decompor uma vez descartados).

    E concordo com o Somir que pedir por extermínio é basicamente culpar a vítima, no caso a vítima da pobreza.

    Dito isso, de forma alguma passo pano pra procriação desenfreada. No meu mundo ideal, cada pessoa ao nascer passava por algum procedimento esterilizante que só poderia ser revertido sob autorização, depois que a pessoa tivesse pelo menos 20 anos, uma renda mínima e tivesse passado num teste pra provar que não é um descompensado mental.

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