Sonhos e desastres.

Não anda fácil conseguir sua casa própria. Seja pelos preços cada vez mais absurdos ou pela competição cada vez mais acirrada, a casa dos sonhos é sonho… para poucos. Sally e Somir discutem o quanto ela vale a pena quando o preço é encarar a fúria da natureza. Os impopulares ocupam suas posições.

Tema de hoje: você aceitaria ir morar de graça (com a condição de trabalhar de casa também) na casa dos seus sonhos se ela ficasse numa região com grande risco de desastres naturais?

SOMIR

Não. Nos meus sonhos eu não enfrento terremoto, enchente, furacão, etc. O ser humano é um bicho teimoso que faz residência nas áreas mais perigosas desse mundo, quase sempre com resultados desastrosos. Até entendo que não teve escolha e já nasceu num lugar arriscado desses, mas com a possibilidade de escolha?

Talvez seja questão de personalidade, eu sou do tipo que aceita abrir mão de algumas vantagens em troca de estabilidade e segurança. A vida exige um certo equilíbrio. Talvez você seja do tipo que tope viver numa situação extrema para ter algo melhor. Não julgo a sua escolha, mas com certeza não é a que eu faria.

Da mesma forma que eu não arriscaria uma vida de criminalidade pela chance de grandes retornos financeiros ou não aceitaria uma vida de puro hedonismo por causa dos riscos à saúde, eu não iria morar numa casa maravilhosa que me deixasse frequentemente preocupado por causa de desastres naturais. Ônus e bônus.

Você pode argumentar que pessoas vivem em áreas perigosas desde que a humanidade deixou de ser nômade. Sobrevivemos até aqui, não? Se tem gente na Indonésia e no Japão até hoje, é porque o ser humano é uma praga muito difícil de eliminar.

Sim, o conjunto é muito resiliente, mas não confunda isso com o indivíduo. Uma cidade com milhares de pessoas vai continuar lá décadas depois de um grande terremoto ou tsunami, mas muita gente vai ter morrido durante o desastre natural e depois reposta, seja pela multiplicação da população local ou por imigração.

Nós falamos hoje de uma decisão do indivíduo: você está indo para uma casa, que por melhor que seja, está sob risco elevado de ser arrebatada pelas forças da natureza. E é você que vai sofrer ou mesmo morrer nela. A humanidade continua numa boa, você não. É uma escolha entre risco e recompensa: se você conseguir viver na casa num período de tempo que milagrosamente não tenha nenhum desastre, ganhou a aposta.

Se não conseguir… e é aí que a coisa toda se define: existem consequências nessa escolha. Podemos até imaginar uma das situações menos dramáticas, como você ter uma casa de alvenaria numa região assolada por furacões. Pode ser que você resista a vários, e lá pelo quinto já esteja até acostumado. Mas toda vez vai ter consequências por isso.

Ninguém é uma ilha. Mesmo que sua casa escape, sua região vai ter sido devastada, você vai ficar sem serviços básicos, vai ter que lidar com histórias horríveis de vizinhos… tudo isso tem um preço. Inclusive na manutenção dessa casa dos sonhos. É menos dos sonhos se você troca o telhado a cada ano, não?

E quando falamos de coisas como terremotos, enchentes ou tsunamis, a chance da sua casa sair intacta ou com danos leves é cada vez menor. Seu sonho é ter uma casa que vive em reforma por causa da fúria da natureza? O meu não. Goteiras já me deixam mal humorado, imagina só perder quase tudo na casa porque ela ficou inundada?

Sem contar o risco óbvio de você morrer por causa disso. Um terremoto forte o suficiente faz o teto cair na sua cabeça. Não acho que gostaria tanto de uma casa ao ponto de querer morrer por causa dela. Lembrem-se das condições: você tem morar e trabalhar nessa casa. A chance de você simplesmente não estar em casa no momento do perigo é minúscula.

Se você é brasileiro, provavelmente não tem muita noção do que é viver em regiões naturalmente perigosas. Para a média mundial, essa é uma região bem tranquila, acho que até por isso o povo apronta tanto para poder compensar… não tem nada a ver com ufanismo dizer que o Brasil é um solo muito seguro para se morar. Geografia não se importa com seus sentimentos.

Então, pode começar a ter algumas ilusões de grama mais verde no vizinho: sim, um Japão da vida oferece um grau de civilidade absurdamente superior a um país como o Brasil, mas sob riscos muito mais elevados de desastre naturais. Quem disse que você precisa escolher uma coisa ou outra? Por que não um lugar relativamente mais civilizado e naturalmente seguro? Não tem muito com o que se preocupar no interior do Uruguai, por exemplo. Não precisa ir para debaixo de um vulcão para encontrar gente civilizada, oras!

Pela percepção que existem opções melhores que eu não assumiria uma estratégia de alto risco e alta recompensa como ir morar numa casa maravilhosa numa área de desastres naturais. Porque por mais feliz que você fique enquanto está tudo bem, a conta provavelmente vai chegar. E aí, você pode descobrir da pior forma possível que não queria pagar o preço.

Prefiro recusar a oportunidade, obrigado. E nem é necessariamente querer conforto acima de tudo: eu toparia fácil viver numa nave espacial cheia de perrengues com 50% de chance de sobrevivência para poder visitar outros planetas, por exemplo. É a questão da recompensa: casa tem em tudo quanto é canto desse mundo, você pode deixar uma passar para evitar perigos que eu julgo desnecessários.

Basta um desastre para acabar com seu sonho. Se puder, evite-o.

Para me chamar de medroso, para dizer que o desastre natural do Brasil é o brasileiro, ou mesmo para dizer que também iria fácil para o espaço: somir@desfavor.com

SALLY

Você aceitaria uma casa dos seus sonhos, de graça, com a condição de que você resida e trabalhe lá, ciente de que ela fica em uma região onde existem severos desastres naturais?

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!
Eu morei no Rio de Janeiro e na Bahia, não tem desastre natural pior do que carioca e baiano, é óbvio que eu aceitaria!

Não somos homens das cavernas, não moramos em palafitas ou em casas na árvore. Há tecnologia para conter os danos de desastres naturais, tanto é que que vemos ser humano morando em tudo quanto é canto do planeta. Se for uma casa bem feita, com toda a segurança e tecnologia disponível, eu vou ficar bem.

Se colocar a casa no local mais seguro possível dentro da realidade do local (se houver tsunami bota em um local alto, por exemplo), se equipar ela com toda a tecnologia de segurança, se colocar um bunker à prova de tudo, se houver um sistema de resgate eficiente caso tudo dê errado, não vejo como o fato de ter desastre natural seja um impedimento.

Pior morar com um povo desgraçado, violento, involuído e ignorante. Para isso não tem tecnologia que te proteja e, quando acontece uma situação como a que estamos vivendo agora, sua vida é colocada em risco diariamente. Francamente, quem mora no Brasil não deveria torcer o nariz para essa proposta, dificilmente um desastre natural te coloque no mesmo patamar de risco diário que morar no Brasil.

Hoje em dia a prevenção de desastres naturais evoluiu muito. Vemos anúncios de furacão com dias de antecedência. As placas tectônicas são monitoradas 24h por dia e sismos costumam ser previsíveis com relativa antecedência. Tornados também são previsíveis e não levam uma casa bem estruturada e um bom bunker garante sua vida.

E, se tudo mais der errado, sempre pode ser montado um sistema de resgate para te tirar dali antes do desastre, se ele for muito feio. É a casa dos seus sonhos, certo? Nada impede que ela tenha um aeroporto ou um heliponto.

“Ain, mas imagina viver sempre com esse medo, com essa ameaça” – disse quem vive com risco de contágio por um vírus que pode ser letal, no meio de uma população que usa máscara no pescoço e não faz quarentena. Um desastre natural é algo bem esporádico, eu prefiro um furacão uma ou duas vezes por ano (que não vai derrubar a minha casa) do que ter que conviver diariamente com pessoas irresponsáveis que podem me infectar, me dar um tiro ou me matar de tantas outras formas.

É que quando a gente pensa em desastres naturais, sempre acaba vindo à mente aquelas imagens de jornal, de cidades/países arrasados: Indonésia, Índia e outros. É isso que vira notícia, quando o desastre natural destrói uma cidade. Quando ele acontece em cidades bem estruturadas e não quebra um palito, não vira notícia, afinal, não há nada para ser mostrado.

Então, sim, já temos tecnologia para fazer construções que resistam a desastres naturais e protejam sua vida. É só passar pelo cagacinho de sentir a terra tremer um pouco ou se sentir um vento forte. Bem-vindo vento, muito melhor do que ter que aturar brazuca furando fila sem máscara no calor.

Não é como se estivéssemos apresentando duas opções boas e você tem que escolher a melhor. A menos que você seja muito rico ou não more no Brasil, a outra opção (continuar morando onde você mora) é uma merda. A pergunta, traduzida de forma muito simples é: “você troca um país subdesenvolvido com um povo ignorante por morar na casa dos seus sonhos, feita como você quiser, em um lugar com desastres naturais?”. Sim, mil vezes sim. De desastres naturais eu posso me proteger.

Daí vocês podem dizer que nada é 100%, que se a terra se abrir no meio da casa e ela for engolida pelo chão não vai ter tecnologia que te salve etc. Bem, o risco de algo dar muito errado, de acontecer algo muito extremo (envolvendo ou não desastres naturais), existe para qualquer lugar.

E talvez em países zoneados tenhamos menos controle desses riscos do que em um lugar civilizado onde se monitora constantemente eventuais desastres naturais. Risco sempre existe, em qualquer lugar, a questão é qual risco vale mais a pena correr.

Basicamente, você só estaria trocando de risco. Abandona a violência urbana, o risco de contágio, o risco de morrer por falta ou atendimento ruim, o risco de ser contaminado por agrotóxicos proibidos no mundo todo, o risco de receber água suja para beber e todos os riscos inumeráveis que a incompetência e corrupção sistemáticos podem trazer à sua vida e os troca por um risco calculado de alguns desastres naturais ao longo da sua vida, monitorados e com uma casa preparada para eles.

Francamente, já passei por terremoto, furacão e por tsunami (fico devendo a erupção vulcânica). Se você está em uma ilhota tropical que só tem uns bangalôs para turista, provavelmente você vai morrer. Mas se estiver em um país sério e com tecnologia de ponta, vai receber o aviso com antecedência, vai poder se preparar, vai receber instruções do que fazer e, se for necessário, será evacuado para um local seguro. Se desastre natural severo fosse sinônimo de morte, ninguém moraria nos locais onde eles acontecem. E as pessoas moram, inclusive pessoas com muito dinheiro.

Não faz sentido ter medo do previsível e do manejável para ficar com centenas de riscos diários pequenos, que são imprevisíveis e incontroláveis. Isso é falta de cultura de desastres naturais, gente que nunca os vivenciou e acredita que eles sejam como nos piores filmes catastróficos. No geral, são apenas eventos desagradáveis cuja consequência é te impedir de sair de casa. Essa é a regra, tanto é que quando passam disso, viram notícia.

Vocês têm noção de que, em média, acontecem 300 terremotos por dia no planeta? Nem todo terremoto é aquela coisa de filme. Poucos são e eles acontecem muito de vez em quando. E mesmo para esses, há tecnologia para manter de pé prédios de mais de 20 andares. Existem sensores espalhados por todo o planeta que medem ventos, correntes marítimas, atividades de vulcões e movimentos da terra. Esses dados são monitorados 24h por dia, por pessoas competentes. Tem alguém constantemente medindo e controlado o que te coloca em risco no Brasil?

Desastres naturais são hipervalorizados por filmes e pela mídia, que dão visibilidade apenas aos mais catastróficos, em áreas vulneráveis, e que, por isso, geram mais danos. Tenha mais medo do brasileiro do que da natureza.

Para dizer que mesmo que fosse em um bangalô toparia, para dizer que o lugar dos seu sonhos fica no Brasil ou ainda para dizer que para sair do Brasil topa até ir para a Síria: sally@desfavor.com

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Comments (9)

  • To com Somir.
    Segurança e estabilidade é tudo de bom, não troco por nada.
    No Brasil posso evitar o RJ não indo ao RJ, posso ficar atenta com a bandidagem nas ruas.
    Morar apenas em terreno alto, construir sobre base sólida, etc.
    Nenhum lugar do mundo vale o sossego que temos com a ausência do caos das forças da natureza como temos por aqui.
    O ruim do Brasil é o povinho sem vergonha que povoa essa terra de Sta Cruz, porque se tem terra boa ela cá está, onde se plantando tudo dá.
    Esse Brasil é abençoado.
    Fora a tal malandragem política que faz leis que não são cumpridas temos acidentes tipo Brumadinho e outras loucuras do mesmo naipe.

  • A casa dos meus sonhos certamente não fica no Brasil. Então, pra me livrar do Brasil eu encaro qualquer coisa: terremoto, enchente, tsunami, furacão…

  • O Rio tá dum jeito, que qualquer chuva moderada já faz o chão virar oceano com correnteza e tudo. Então mudar pra um lugar que o problema fosse só a natureza, seria uma grande evolução!

  • Fico com o Somir nessa. Assim como ele, eu também abro mão de certas vantagens em troca de estabilidade e segurança. Não convém correr certos riscos. E, por mais que a tecnologia de prevenção a desastres naturais já esteja bastante avançada e que haja preparação prévia para enfrentá-los, eu prefiro não ter que passar por esse tipo de coisa. Afinal, como ele próprio diz ao encerrar seu texto: “Basta um desastre para acabar com seu sonho. Se puder, evite-o”..

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