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Planeta Terra, 9 de Janeiro de 5621:

GUIA: Meninos e meninas, estamos adentrando a Reserva Especial da Humanidade, Planeta Terra. Vamos relembrar as regras? É proibido qualquer tipo de contato com os nativos, e isso inclui a transferência, mesmo que indireta, de tecnologias modernas à população local.

ESTUDANTE: O que a gente faz com o lixo?

GUIA: O veículo conta com seis recicladores sinalizados. A multa para deixar lixo na Reserva é de 200 Bits, e caso fique comprovado que qualquer objeto deixado aqui tenha potencial militar, há uma pena de 16 ciclos de reabilitação.

ESTUDANTE: Não é meio exagerado?

GUIA: Minha querida, em 4980 tivemos um incidente com o esquecimento de uma babá eletrônica na Reserva que acabou com mais de quatro milhões de mortes.

Os jovens arregalam os olhos.

GUIA: Dúvidas extras podem ser enviadas para o Processo 3, com tempo estimado de resposta em 3 milissegundos. Estamos entrando na atmosfera, vocês vão sentir uma pequena turbulência, mas é algo normal.

A nave treme por alguns segundos, mas logo se estabiliza novamente. Pelas janelas, pode-se ver uma densa floresta tropical se aproximando. Algumas clareiras exibem casas bem simples, feitas de tijolos aparentes, margeando ruas de terra batida e pequenos afluentes do enorme rio que corta a região.

GUIA: Jovens, estamos sobrevoando Nova Neymarlândia, no território que já foi conhecido como Brasil. A região sofreu um grande revés no final do século passado, quando entrou em guerra com a Federação dos Ronaldinhos e teve 50% do seu território perdido.

ESTUDANTE: Mas guerras não são desperdício de tempo?

GUIA: Excelente pergunta. Como os habitantes da Reserva perderam a capacidade de colonizar corpos celestes, não seguem as mesmas regras que o resto de nós. Sim, uma guerra entre as Alianças seria completamente inútil dado o imenso poder destrutivo das nossas tecnologias, mas neste planeta o máximo que podem fazer é usar explosivos de baixa capacidade. Só nos últimos cem anos, contabilizamos noventa e três guerras na Reserva.

Os alunos ficam impressionados, rostos grudados nos vidros.

ESTUDANTE: Eles não podem nos ver?

GUIA: Não. A tecnologia de camuflagem é posterior à Separação. Nesses três mil anos, nunca fomos detectados oficialmente. A tecnologia deles não dura mais que um ou dois séculos antes de voltar quase à estaca zero.

ESTUDANTE: Por causa das guerras?

GUIA: Sim.

ESTUDANTE: O que foi a Separação?

GUIA: Por volta do ano 3000, descobrimos uma falha na genética humana que causava boa parte dos comportamentos danosos para nossa evolução como espécie. Agressividade excessiva, tendência ao pensamento fantasioso, incapacidade de processar dados matemáticos de nível 5 ou maior… quase tudo mapeado numa pequena sequência de genes. A Primeira Aliança lançou um programa de reprogramação genética…

ESTUDANTE: Nova Humanidade?

GUIA: Isso mesmo! Mas é claro, toda reprogramação genética levanta questões éticas. Uma parte da humanidade aceitou fazer parte do programa, mas outra se recusou, e não podíamos obrigá-los a aceitar o procedimento. Nós somos a parcela que aceitou, os nativos da Reserva são os que se recusaram.

ESTUDANTE: Mas eles quiseram ficar… desse jeito?

GUIA: Não. Durante o primeiro século, eles continuaram prosperando, embora bem menos que nós ao redor no Sistema Solar e nas estrelas colonizadas. Mas, cada vez mais, o povo da Reserva escolhia líderes fanáticos que nos enxergavam como inimigos. Muitas de suas religiões foram modificadas para nos ver como vilões, e o contraste claro entre nossa prosperidade e a estagnação deles só aumentou o ressentimento.

ESTUDANTE: Foi aí que aconteceu a Última Guerra?

GUIA: Correto. Embora a palavra guerra seja um pouco mentirosa. No momento em que começamos a nos defender dos ataques deles, nossa tecnologia estava algumas ordens de magnitude mais poderosa que a deles. Nos defendemos por alguns anos, mas ficou clara a necessidade de limitar o número de casualidades. Foi quando iniciamos o protocolo de isolamento de 3142. Nossos drones destruíram 99% da capacidade militar espacial dos nativos e montaram um sistema de identificação e destruição de qualquer nave militar que deixasse o planeta.

ESTUDANTE: Eles estão presos aqui?

GUIA: Não mais. As medidas foram afrouxadas em 3409, mas os habitantes do Planeta Terra já haviam perdido a capacidade de chegar ao espaço, resultado de uma enorme guerra interna e o subsequente inverno nuclear. Sua tecnologia regrediu a níveis que os tornavam efetivamente inofensivos para nós. Lembrando quem em 3399 já havíamos desenvolvido a tecnologia de Salto Interestelar. A nave que estamos seria capaz de enfrentar praticamente todos os exércitos deles no momento, e olha que estamos numa nave escolar!

Os jovens riem.

GUIA: Infelizmente, a falha genética foi passada de geração em geração, e dado o estado de agressão constante da sociedade local, selecionada como mais vantajosa para a evolução do Planeta Terra. Hoje em dia eles não conseguem mais sequer se organizar em algo maior que um grupo de guerrilheiros. As nações foram dissolvidas e a imensa maioria dos habitantes se divide entre grupos identificados com sua religiosidade.

ESTUDANTE: Eles ainda acreditam em deuses?

GUIA: Sim, e o curioso é que boa parte desses deuses foram atletas e figuras da cultura popular do século 20 e 21. Ainda existem alguns enclaves das religiões clássicas que vocês aprenderam na aula de história humana, mas a maioria já foi substituída pelas novas, com regras mais relaxadas sobre sexualidade e violência.

ESTUDANTE: Sexualidade?

GUIA: Vocês ainda vão ter essa aula. Mas para resumir, quase todos os genes que modificamos eram baseados em uma forma de reprodução sexuada primitiva. Vocês não precisam mais se preocupar com isso.

ESTUDANTE: Podemos ver os pandas?

GUIA: Podemos sim.

Os estudantes vibram.

Para dizer que já sabia, para dizer que não sabia, ou mesmo para dizer que ficaria na Reserva considerando o custo: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • “comportamentos danosos para nossa evolução como espécie. Agressividade excessiva, tendência ao pensamento fantasioso, incapacidade de processar dados matemáticos de nível 5 ou maior…”
    Peguei a crítica, mas o “pensamento fantasioso” não seria a criatividade? Como a Nova Humanidade sobreviveria sem isso?

    • Criatividade é uma função da inteligência baseada em reconhecimento de padrões. Pensamento fantasioso é algo que se beneficia da criatividade, mas não é a mesma coisa. Uma coisa é a capacidade de criar Senhor dos Anéis, outra é ler o livro e começar a rezar para Ilúvatar achando que ele existe de verdade.

      E vai ter realidade virtual para brincar de tudo sem matar o amiguinho na vida real.

  • Eu estava lendo este texto com a cara mais séria do mundo… Até chegar na parte do “Jovens,, estamos sobrevoando Nova Neymarlândia, no território que já foi conhecido como Brasil.”. Talvez nem fosse a sua intenção, Somir, mas eu ri.

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