Arte futurista.

Há algum tempo atrás, eu escrevi sobre criptomoedas, dizendo inclusive que a tecnologia por trás delas tem toda a cara de algo que vai se integrar nas nossas vidas nos próximos anos, uma quase inevitabilidade dado o rumo que a economia global está tomando. Quinta-feira (11/03) a casa de leilões Christie’s vendeu um conjunto de obras de artes digitais por mais de 380 milhões de reais, provando os pontos positivos e os negativos dessa história toda.

E o que uma coisa tem a ver com a outra? De certa forma, o material vendido pelo artista Beeple pela quantia absurda é uma forma de criptomoeda: isso se chama NFT (Non Fungible Token), quando se define um certificado de propriedade para uma sequência de dados específicos que pode ser comercializado. Qualquer pessoa pode copiar a parte visual, mas só uma pessoa pode ter sob seu poder o certificado de posse original.

De uma certa forma, nem é tão diferente assim do mercado de arte tradicional: todo mundo pode ter uma cópia da Mona Lisa em casa se quiser, mas a original está no Museu do Louvre em Paris. Salvo algum grande golpe, a pintura feita por Leonardo da Vinci só existe de verdade naquele lugar. Apenas o Louvre pode dizer que o objeto verdadeiro lhe pertence.

No caso dos NFTs, é parecido: não importa quantas cópias existam, apenas uma é considerada a original, e isso pode ser provado pela posse do NFT dela. Como tudo na economia, isso depende muito de consenso. As pessoas têm que acreditar que aquele formato é o original e achar que ele vale mais que as cópias. Desde que alguém esteja disposto a seguir essa narrativa, o conceito de peça original finalmente chega ao mercado da arte digital.

Mas não precisa ser apenas uma pintura, pode ser qualquer coisa passível de digitalização: uma música, um vídeo, um texto… se pode ser salvo como uma sequência de zeros e uns, pode ser transformado em NFT. Muito embora pareça mais um grande esquema de lavagem de dinheiro (como boa parte do mundo dos colecionadores de arte), existe algo de muito interessante nesse processo, do ponto de vista tecnológico.

Existe valor em ter uma confirmação de originalidade. Vários dos problemas que enfrentamos atualmente com segurança da informação passam pela alteração de arquivos por entidades maliciosas. É claro que essa não é a primeira forma de garantir que os arquivos não tenham sido alterados, soluções de criptografia diferentes funcionam há décadas, mas normalmente são mais complicadas que o cidadão médio é capaz de usar.

Talvez com um incentivo comercial poderoso, a ideia de certificados de posse de versões originais de arquivos digitais comece a se desenvolver em tecnologias que aumente o grau de confiabilidade dos arquivos baixados da internet. A blockchain (a tecnologia que permite a Bitcoin, as NFTs e todas as outras moedas digitais) usa poder de computação para confirmar as trocas de dados na rede, e quanto mais gente incentivada a oferecer esse poder de computação, mais rápidas e mais confiáveis se tornam essas operações.

Agora, como eu disse no começo do texto, fatos como esses também exibem o lado negativo da adoção de uma nova tecnologia: muita gente não vai entender bulhufas do que está acontecendo e começar a colocar dinheiro onde não entende. Esse já é um problema do mercado de criptomoedas, com muita gente achando que é uma fábrica de lucros e colocando dinheiro que não pode perder lá dentro.

E pior, sem entender o que diabos está acontecendo. Blockchain e criptomoedas são um ecossistema extremamente complexo de novas tecnologias, que ainda não terminaram o processo de desenvolvimento. Muitas das moedas mais valorizadas ainda são promessas de um serviço futuro. Algumas tem problemas sérios, típicos das fases iniciais de adoção de uma nova tecnologia. Eu diria, sem medo, que 99,99999% do dinheiro nesse mercado vem de gente que não tem a menor ideia do que está acontecendo.

Gente que aprendeu a ver criptomoedas como um mercado de ações pouco regulado e pulou na oportunidade de lucrar. Pra quase todo mundo nesse mercado, não é sobre o valor intrínseco das moedas, é sobre a promessa de poder trocá-las por dólares eventualmente. E infelizmente, são essas mesmas pessoas que acabam falando sobre o lado financeiro dessa tecnologia. Falam como se fosse só isso: coleções de elementos virtuais que uma hora voltam a ter valor “real”.

Nesse contexto, não posso negar que é uma bolha. Uma hora ou outra as pessoas vão assustar e tirar seu dinheiro, afinal, era só um substituto temporário. Mas, por incrível que pareça, essa bizarrice de pagar milhões de dólares por uma foto no computador começa a demonstrar o que quem realmente entende da tecnologia estava pensando desde o começo: criar uma economia real no mundo digital.

Passamos muito tempo achando que bits e bytes da internet eram apenas pontinhos numa tela, sem valor real. Mas a nossa vida cotidiana já demonstra como isso não é toda a história: sim, precisamos de comida e muitas das coisas que compramos são físicas, mas você provavelmente já tem algum elemento digital compondo seus gastos e seus rendimentos. Com o passar do tempo, mais e mais pessoas vão comprar coisas que nunca estiveram fora de um computador.

E mais e mais pessoas vão ganhar a vida com isso. Automatização no mundo real significa menos empregos “braçais” disponíveis. O ser humano vai ter que achar algo para fazer quando a maioria desses trabalhos físicos começar a rarear, e eu argumento que não vai demorar tanto tempo assim. Um dos caminhos mais óbvios é a virtualização do modo de vida e, por consequência, a noção de valor das pessoas. Hoje em dia é ridículo achar que um veículo de videogame vale mais que um veículo da vida real, mas e quando o status de ter um ou outro se equiparar?

E quando pra pegar mulher cidadão precisar ter um perfil cheio de itens caríssimos que nunca foram nada além de dados num computador? Acha impossível? Então você nunca ficou sabendo dos podres do mundo dos jogos virtuais. Muita gente já se prostituiu por itens de jogos, seja de forma virtual ou mesmo real. O ser humano vai vendo valor onde outros seres humanos começam a ver valor. É uma bola de neve.

E pra criar ordem no caos de elementos que podem ser copiados com tanta facilidade (afinal, esse é o grande ponto de arquivos digitais), é bem provável que projetos tecnológicos baseados em certificados de propriedade de valor continuem se desenvolvendo. Ainda estamos numa espécie de “velho oeste” das criptomoedas, com inúmeras corridas pelo ouro, alguns se tornando milionários e outros perdendo tudo, mas como já vimos com as redes sociais, uma hora a parte técnica amadurece e ganha adesão em massa.

Nessa hora, vamos começar a ver as dezenas de moedas virtuais que surgem por dia sofrerem a seleção natural do mercado, e somente algumas devem se manter viáveis. O próximo Google e o próximo Facebook vão vir daí. Não sei qual, antes que me perguntem. Pode ser que já exista, pode ser que ainda vá ser lançada, mas vem algo gigante por aí.

Algo com poder de imprimir seu próprio dinheiro, com mais poder que a maioria dos países. Oremos para que as coisas se mantenham descentralizadas, sem um grupo com poder de tomar todas as decisões, mas considerando a história da humanidade, eu não esperaria por essas preces serem atendidas.

Valor virtual não é tendência, é realidade. Ainda não tomou o mundo de assalto porque a tecnologia ainda não está madura, mas um dia desses vai estar. E aí, essa venda que nos choca hoje vai parecer apenas uma gota no oceano.

Para dizer que colocou todo seu dinheiro em Doge, para dizer que vai preferir ficar no mundo real mesmo, ou mesmo para dizer que tem uma ponte para vender para quem comprou essas obras digitais: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • NFT é claramente um golpe, uma arapuca.
    O problema é que quem refuta usa o mesmo argumento imbecil que usam contra criptomoedas, que “destrói o meio ambiente”, e essa crença está forte entre a liberalzada na terra no liberalismo doentio, EUA.

  • Só mais um instrumento especulativo para irresponsáveis e oportunistas. Mercado de arte moderna é uma das maiores demonstrações da estupidez humana, de resto.

  • Eu tenho a impressão que Marx não estava de todo errado sobre o capitalismo…
    Sim, é o único sistema funcional apesar de não ser bom, mas está virando tecnocracia, e atualmente os bilionários são os novos nobres e reis. No fim o sistema que realmente funciona é monarquia, pois ela é natural.
    Democracia não existe, é praticamente uma monarquia/oligarquia velada, quem tem mais dinheiro manda.

  • Sobre arte, design e afins: pode envolver lavagem de dinheiro sim, mas uma coisa que aprendi em meia década trabalhando com UI/UX é que pra maioria dos clientes, um design simples/mediano/okay é mais do que suficiente, contanto que seja funcional. Clientes não costumam reparar em coisas que os profissionais pensam que eles estão reparando. Por essas e outras razões que não cabe escrever aqui pra não fugir do tema, esse estilo minimalista, flat (google “Corporate Art Style”) se tornou onipresente.

    Não é uma apologia à mediocridade, tem que fazer um bom trabalho sim, é uma nota de incentivo pra quem se interessa na área. Nomadismo digital é um mundo mágico e não pretendo sair dele.

    • Design é design, arte é arte. Eu sempre dizia isso para os meus estagiários, pra evitar crises de estrelismo e também para lembrar desse ponto que você mencionou: design é baseado em função. Faz funcionar direito e ser fácil de usar/entender e o trabalho está mais do que bem feito.

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