História perdida.

Se alguém colocou no bolão, parabéns: morreu aos 99 anos de idade o príncipe Philip, marido da rainha Elizabeth do Reino Unido. E isso provavelmente não vai surpreender ninguém, mas muita gente da esfera lacradora internacional está comemorando. Comemorando a morte de um nazista, racista, sexista e tudo mais que conseguiram atribuir à pessoa. Mau gosto, desinformação ou crítica justa? Um pouco de tudo.

Não vou fazer a biografia dele, até porque acho monarquia uma piada muito sem graça em pleno século XXI, deveria equivaler no máximo à morte de uma celebridade genérica. O que me chama a atenção é esse povo dizendo “bem feito” em redes sociais sobre uma pessoa que… tinha 99 anos de idade. Será que é possível comparar a vida de alguém que quase bateu um século com os padrões que temos agora?

Uma das acusações mais comuns à Philip foi sua participação no nazismo. Mas isso não conta a história real: ainda muito jovem, o futuro príncipe morou com uma parte da sua família na Alemanha Nazista. Muitos de seus parentes eram fervorosos defensores de Hitler, e ele conviveu com eles. Mas pouco tempo depois, ele fazia parte do exército britânico lutando contra os nazistas. Quem estava na Europa antes da Segunda Guerra Mundial provavelmente nem tinha muita opinião formada sobre o nazismo. E quem estava dentro do país foi ficando cada vez mais sem opção de demonstrar algo além de devoção à causa.

E é por esse ângulo que eu quero continuar essa história: imagine que você cai de paraquedas numa casa alemã durante a ascensão do nazismo… você é branco, não tem nenhuma relação óbvia com os judeus e tem o conhecimento sobre o mundo de alguém que no máximo escuta rádio dez minutos por dia. Se você não começou a fazer protestos imediatamente, quer dizer que você é um nazista?

Os alemães têm um ditado: “se dez pessoas estão sentadas numa mesa e um nazista se senta também, se ninguém levantar temos onze nazistas”. Mas você acha que esse ditado se popularizou antes ou depois da guerra? Sim, no mundo atual, quando você tolera esse tipo de radicalismo amplamente conhecido, está de alguma forma dando suporte para ele. Mas como a gente pensa sobre quem não tinha a cena completa na cabeça?

Se os alemães soubessem antes de 1939 que seu líder iria matar milhões dos seus numa guerra que terminaria no completo caos econômico e uma imagem de vilões por provavelmente séculos, será que dariam suporte a Hitler? O mundo não era muito conectado naquela época. Estrangeiros poderiam muito bem ser de Marte para boa parte da população. O conhecimento sobre culturas e povos diferentes era limitado. Povos liberados dos nazistas por soldados negros americanos ainda xingavam os soldados negros!

Era um planeta bem diferente do qual estamos acostumados agora. Às vezes eu me pego pensando se quem defendeu o nazismo na época não era equivalente a quem jogava esgoto nas ruas pelas janelas de grandes cidades no final do século XIX. Sim, nós sabemos que isso é terrível para a saúde pública e não toleramos mais esses cheiros, mas e para quem nem sabia que tinha alguma relação com a saúde e cresceu acostumado a esgoto a céu aberto?

Se tudo o que você conhece é a brutalidade de uma sociedade onde não havia nem o conceito de direitos humanos, será que um líder político pregando a superioridade racial do seu grupo seria tão chocante assim? Será que mesmo as pessoas mais inteligentes da época não achavam só um exagero pontual ao invés de um crime contra a humanidade? Se o normal é não considerar humanos pessoas de outra etnia, matar outros povos pela cor da pele é só um passinho além.

Não, não é defesa de nada: claro que isso não torna o fato de uma campanha de extermínio de “povos inferiores” aceitável. Não é aceitável hoje, não era em 1940 e não era há cinco mil anos atrás. Mas agora sabemos disso. Agora tem algo claro na nossa cultura, na nossa forma de criação e nos valores que nos são passados desde a infância sobre isso.

Estou falando disso porque talvez nem consigamos imaginar como era a vida de quem não teve essas lições claras na cabeça. A não ser que tenhamos leitores muito idosos que nunca se revelaram, todos nós nascemos num mundo pós Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os abusos não acabaram, evidente, mas é uma realidade totalmente diferente. Quem quiser fazer algo terrível como Hitler não pode mais fazer abertamente e ainda ter relações diplomáticas com o resto do mundo.

Mas naquele tempo, podia. Tanto que aconteceu. Claro, no começo não estava tão claro assim que começaria uma campanha de extermínio, apenas de perseguição e roubo, como eram relativamente comuns naquele tempo. E quanto mais você se aprofunda na história, mais percebe que foram interesses financeiros conflitantes que desencadearam todo o processos da guerra. Mas que ficou um trauma global com a brutalidade do ser humano depois do nazismo, ficou.

Pois bem: como julgar alguém viveu num mundo que guarda tão poucas semelhanças com o mundo atual? Pelos padrões do tempo antigo ou pelos nossos modernos? Que tal pelos dois? Porque história serve para aprendermos com os erros e os acertos do passado. Uma análise objetiva considera a realidade do fato quando ele ocorreu e nossa visão sobre ele atualmente. Se você ficar só com uma ou só com outra, vai ficar confuso, porque não são mundos equivalentes.

Philip provavelmente não foi mais ou menos nazista que 99% da população europeia durante aquelas décadas do século passado. Muita gente lacrando com a morte dele provavelmente teve um antepassado ou outro que estava no mesmo barco. Mesmo os que não são brancos, tivemos vários soldados de outras etnias lutando pelo Eixo durante a guerra. Naquele tempo, pouca gente estava enxergando a coisa pelo ângulo da “pureza racial” prometida por Hitler, era mais uma questão de sobreviver ao conflito e tentar proteger o próprio país. Quase todo mundo que lutou contra os nazistas era bem racista também, até porque essa era a média da população mundial na época.

Claro, gente fazendo post comemorando a morte desse “nazista” no Twitter não costuma ser exemplo de intelectualidade, mas me preocupa essa tendência de superficialidade na análise da história humana. “Cancelamento” de figuras históricas, como se isso fizesse alguma diferença. Aquela parte importante de entender o contexto no qual muitas dessas pessoas viveram vai se perdendo aos poucos. Panfletar se sobrepõe a ensinar. Sim, a mensagem pode até ser bem melhor do que gente negando o Holocausto e coisas do tipo, mas também esvazia a lógica básica do que é analisar o passado.

Se você olha para um período histórico e a única coisa que consegue fazer é comparar a sua visão de mundo com aquela situação, está vendo uma novela ou uma série, não está aprendendo nada com aquilo. Nós já sabemos quais são os paradigmas de comportamento modernos, não é essa a informação que a pessoa tem que tirar dali. É importante entender como saímos daquele momento para o qual vivemos agora, e todo o processo de amadurecimento gerado nesse caminho.

Essa superficialidade gera o problema que eu já descrevi da futilidade e até mesmo o mau gosto de ficar batendo em gente que já morreu, hipervalorizando os preceitos éticos e morais que a pessoa simplesmente herdou, tentando se sentir superior a quem não teve as mesmas chances (paradoxo que lacrador de rede social nunca vai ter profundidade de entender), ou começa a cair num erro que eu vejo muitos impopulares daqui caírem também: achar que está tudo piorando porque estamos ficando diferentes de épocas passadas. Ficamos melhores ou piores pela análise da realidade que vivemos.

Esses exageros são enxergar a história sem entender contextos. Coloque mais cem anos na história humana e seremos selvagens fazendo várias coisas absolutamente impensáveis para as gerações futuras. E não é necessariamente culpa nossa. Talvez daqui a uns dez anos comecemos a perceber isso, talvez só saibamos nos últimos anos da vida, mas que alguma coisa que você faz agora sem pensar muito vai ser tabu no futuro, vai. Tudo tem contexto. Eras não podem ser comparadas diretamente porque a pessoa que analisa o passado está contaminada pelo presente.

Ou você aprende com a história, ou você fica falando besteira em rede social.

Para dizer que não sabe quem eu estou defendendo ou atacando, para dizer que pelo menos não é coronavírus (me aguardem), ou para dizer que nem sabia quem era esse cara (justo): somir@desfavor.com

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Comments (16)

  • Ridículo comemorar a morte de um cara que viveu 99 anos e que teve uma vida excelente, bem melhor do que a de quem está comemorando.

    O cara viveu no luxo, sem precisar trabalhar, viajou o mundo todo, fez todas as piadinhas que queria, deve ter tido amantes…

    E os tontos comemorando…

  • Puta do SUS new era

    Somir, a militância faz macaquice porque tem quem aplauda. É ridículo como a brutalização das repostas e a dicotomia são incentivadas. Mas, o que mais me irrita no militante é ser desarrazoado. É sempre assim: vc não concorda comigo, automaticamente, está indo contra mim.
    Profunda preguiça desse povo que acha que sabe tudo (simplórios)

  • Talvez ele tenha feito mais coisas erradas do que o divulgado, mas não tem mta utilidade cair na alma de quem já morreu. Criticar em vida poderia surtir algum efeito. Tudo bem não sentir empatia por ele, porém vale uma certa consideração pelas pessoas que ficaram, pelos familiares que não tem culpa do que ele fez.

  • Millenials perturbados das ideias (quase um pleonasmo) acusando de “nazistas” figuras históricas conhecidas justamente por combater o nazismo. Um dia vou conseguir entender essa tara dessa geração por acusar tudo e todos de “nazismo”

  • “e você olha para um período histórico e a única coisa que consegue fazer é comparar a sua visão de mundo com aquela situação, está vendo uma novela ou uma série…”

    Somir, tá aí algo que eu tenho visto bastante entre os xófens de hoje e que irrita bastante, viu? Ooo mania de achar que o mundo, no passado, deveria ser como eles querem que seja hoje!

    É totalmente o contrário do que o trabalho de um filólogo de peso faz. Exemplo que cito rapidinho é o de Auerbach, que fez um trabalho de filologia literária digno, se atentando justamente às particularidades específicas de cada época, daí resultando numa análise literária mais profunda que levasee em considerações essas mesmas particularidades. Em outras palavras, o que Auerbach tentou fazer – e diria que conseguiu com algum sucesso -, foi tentar pensar o texto literário dentro do “espírito próprio” da época. Tá faltando justamente isso entre os xófens lacradores de hoje…

  • Eu vi as fotos mais recentes e cheguei à conclusão de que Príncipe Philip estava empalhado já há alguns anos, só cansaram de brincar de Um Morto muito Louco com ele.

  • “achar que está tudo piorando porque estamos ficando diferentes de épocas passadas”
    Nossa, pior coisa é interagir com pessimista patológico que se diz realista, se está tudo tão terrível e não existe solução, por que não se matam logo? Pelo menos parariam de infestar discussões interessantes da internet com mi-mi-mi-tenho-tempo-pra-vagabundear-na-internet-mas-o-mundo-está-horrível. Você pode ter tendências pessimistas e se preparar pro pior sem precisar transformar isso numa identidade.

  • “ou começa a cair num erro que eu vejo muitos impopulares daqui caírem também: achar que está tudo piorando porque estamos ficando diferentes de épocas passadas.”

    O “politicamente correto” e a “positividade tóxica” podem ser um porre, mas os males que a total falta de filtros e o doomscrolling trazem são ainda maiores. A internet tem muito sociopata e gente disfuncional (geralmente negligenciados pela família e sem diagnóstico) espalhando negatividade e radicalismo. Daí para acreditar em fim do mundo, conspiração nazista ou conspiração satanista é um pulo.
    Para pessoas com dificuldades sérias de socialização e organização mental, é preciso ter cuidado pra não cair nessa armadilha.

  • Essa militância histérica teima em medir o “ontem” com a régua do “hoje”, critica sem pensar tudo aquilo que “não cabe” em suas “medidas” e prefere apagar o passado em vez de tentar aprender com ele.

    • A militância identitária é colocada como sendo pertencente a “direita” no espectro político. Isso até pode ser verdade no que diz respeito a grupos extremistas de caráter xenofóbico nos EUA e na Europa, mas se ignora os identitários de “esquerda”, que são demagogos que falam muito que em estão em favor das “minorias”, mas na hora de fazer, fazem pouco.

  • Eu repudio a família real e o príncipe Philip, mas não consigo enxergar como alguém acha correto comemorar uma morte. Não é nem questão de “coitadinho dele! Nunca fez nada de errado!”, o cara fez e pensava muita merda sim, porém não era um assassino em série que merecia ter a morte celebrada. Talvez seja empatia posta no lugar errado, não sei, só acho a reação geral bem cruel.

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