Semana Anta – Acerto de contas.

“Senhor, Senhor, a gente está com um probleminha…”

Um jovem rapaz de feições um tanto quanto andróginas atravessa as nuvens de uma gigantesca clareira nos céus. Ele se move através de duas grandiosas asas brancas. Diante de si, um senhor de meia idade vestido com um robe branco, barba frondosa tão branca como os longos cabelos.

“E qual seria esse probleminha?”

“É uma doença que saiu de controle.”

“Eu já disse para vocês, se eu ficar intervindo em cada doencinha, não faço mais nada…”

“Sim, eu sei, Senhor, mas acho que fizemos alguma coisa diferente dessa vez, algo deu errado e não entendemos o quê.”

O homem mais velho materializa uma poltrona dourada, na qual se senta com um calhamaço de papéis igualmente trazido à realidade num passe de mágica.

“É uma das normais, rapaz! Isso não mata nem uma cidade deles…”

O jovem alado se aproxima, expressão preocupada:

“Sim, mas dessa vez eles se recusam a combater.”

O homem continua analisando os papéis.

“Estranho. Muito estranho…”

“O senhor pode nos dizer como lidar com isso?”

“Eu nunca disse pra eles que medicina era coisa do demônio! De onde tiraram essa ideia?”

O jovem fica em silêncio.

“Vamos resolver isso!”

O senhor se levanta da poltrona, e em poucos segundos os dois estão num ambiente completamente diferente. Lagos de fogo e iluminam a escuridão de uma caverna virtualmente infinita. Gritos de desespero e choro preenchem o ar. Eles estão diante de um ser humanóide, vermelho como o sangue, no alto da sua testa, dois imponentes chifres completam o visual maligno.

“Argh, o que foi agora?” – diz o ser.

“Foi você que disse para eles não cuidarem da doença?”

“Você vai ter que ser mais específico, barba.”

“Covid-19. Minha equipe está dizendo que as pessoas não estão tentando escapar dessa doença, parece até que acham bonito pegar!”

“E você acha que é coisa minha?”

“Quem mais faria tamanha crueldade?”

“Pensa comigo, barba… isso não traria mais gente pra cá. Eu estou acompanhando, a maioria que morre é sua fã.”

“Você não influenciou eles a não tratar a doença?” – o homem de barba branca parece genuinamente confuso.

“Claro que não, a doença está sendo péssima pra mim. Ninguém decidiu ainda se pecado vale pelo computador, está tudo enroscado. Caiu o número de pessoas entrando aqui! Já viu como está o Purgatório? Lotado!”

“Eu… eu ainda não vi…”

“Claro que não viu, desde que você desligou as vozes deles da sua cabeça, ficou tudo uma bagunça.”

“Eles nunca iriam sair da Idade Média se eu não fizesse isso…”

“Bom, não fui eu. Essa confusão está no seu departamento.”

O jovem bate as asas lentamente e se aproxima do senhor, ele começa a sussurrar:

“Você nos disse que ele sempre mente.”

O ser vermelho responde imediatamente:

“Semeando discórdia? Quer vir parar aqui?”

O jovem arregala os olhos e se afasta.

“Estão te passando a perna, barba. Olha pra dentro do seu departamento…”

O homem fecha a expressão antes de desaparecer, levando o jovem junto. O ser demoníaco abre um sorriso.

Imediatamente reaparecem numa espécie de escritório entre as nuvens ao céu aberto, milhares de jovens alados se acorcundam diante de computadores, digitando freneticamente.

“Onde está o meu filho?” – o homem barbudo pergunta para um dos jovens. Ele aponta na direção de um rapaz com longos cabelos e barba escuras. O rapaz logo percebe que tem companhia, e fica com uma expressão assustada.

“Pai! Eu… eu não sabia que você… que você tinha voltado.”

“Um dos funcionários veio me avisar de um probleminha que vocês estão tendo…”

O rapaz olha para um dos alados, olhar furioso.

“Eu disse pra ele que não era para te incomodar… está tudo sob controle.”

“Mas ele me incomodou. E fez bem. Porque vocês não parecem estar com tudo sob controle.”

“Imagina, pai. É só uma gripezinha!”

“Quando eu te deixei cuidando deles, eu disse que era para deixá-los aprenderem a se virar sozinhos, por que eles não estão se virando sozinhos?”

“Eles estão, é que muitos começaram a sair do nosso caminho desejado…”

“Que caminho desejado? Eu não disse com todas as letras que eles tinham que aprender como as coisas funcionam por conta própria? Que não era para impedir a ciência?”

“Mas tem um meio termo, né pai? Se eles deixarem de acreditar em você…”

“Não muda nada! Eu não os fiz para puxar meu saco!”

“N-não, não é puxar saco, é ter… ter fé…”

O homem da barba branca se aproxima de um dos computadores. Um dos seres alados que digitava furiosamente se assusta, parando tudo o que estava fazendo.

“Filho, porque a mensagem que você mandou passar para eles usa o seu nome e não o meu?”

“A gente… fez uma pesquisa… e dava… dava mais resultados…”

O homem fecha os olhos e ergue a cabeça, como se estivesse buscando mais informações. Uma voz vem na sua cabeça, a mesma voz da criatura avermelhada com a qual conversara segundos atrás.

“Eu preferia que você visse com os próprios olhos, barba. Desde que você saiu, ele está fazendo isso. E quando os humanos criaram a tecnologia de comunicação imediata, ele ficou fora de controle. Nem eu estou conseguindo acompanhar a quantidade de besteira que seu filho está colocando na cabeça das suas criações. Alguém está tentando tomar conta da empresa…”

O homem da barba branca abre os olhos. As nuvens começam a ficar escuras e o som de trovões começa a ser ouvido. O jovem alado que o acompanhava desde o começo se transforma em uma pequena criatura, também alada, mas de pele vermelha e escamosa. O ser faz um gesto obsceno para o filho do homem e desaparece numa pequena explosão de fogo.

Os computadores desaparecem, mesas e cadeiras também. Os seres alados desabam no chão, assustados. Eles começam a sair dali, voando desesperados para todos os lados.

“Nós precisamos conversar, meu filho.”

De volta ao plano inferior, o pequeno ser voador conversa com seu chefe:

“Você acha que vai funcionar, patrão?”

“Não, ele é um frouxo, vai perdoar.”

“Então por que você me mandou fazer isso?”

“Por que irmãos implicam uns com os outros? Adoraria ver a cara dele agora. Há há há há!”

“Volto a colocar mensagem para as pessoas se vacinarem?”

“Volta sim, se eu tiver que influenciar mais uma orgia de Zoom, eu vou me jogar na água benta…”

Feliz Semana Anta!

Para dizer que não acreditou em nada, para dizer que sempre desconfiou do rapaz, ou mesmo para dizer que não reconheceu as personagens: somir@desfavor.com

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