Dia do Nerd?

Hoje é o Dia do Nerd na República Impopular do Desfavor, mas estamos em dúvida sobre o quanto comemorar. A pandemia nos fez perceber como o Nerd faz falta nos dias de hoje, especialmente quando está soterrado embaixo de uma avalanche de falsos nerds. Desfavor da Semana.

SALLY

Hoje celebramos o Dia do Nerd aqui no Desfavor. Mas, sinceramente, não tem muito o que celebrar. O Nerd é uma espécie em extinção e está desaparecendo quando mais precisávamos dele.

Décadas atrás, ninguém queria ser Nerd. Era pejorativo, era sinônimo de uma jornada de fracasso (desde levar cuecão na escola até ter uma vida amorosa patética). Porém, o mundo mudou e, com o avanço da tecnologia, os Nerds começaram a criar computadores em suas garagens, monetizaram suas invenções e subiram para o topo da cadeia econômica.

Como boa sociedade merda que somos, quem está no topo da cadeia econômica é o mais valorizado. Rapidamente, ser Nerd virou uma coisa bacana, virou moda, virou status. Começaram então a surgir uns pseudo-nerds para surfar a onda, que não tinham as qualidades do Nerd Raiz, mas, por serem muitos, viraram o novo conceito de nerd.

Um Nerd, no original, é uma pessoa com sede de conhecimento, alguém que estuda, pesquisa, busca informação e compreensão de como as coisas funcionam por prazer. Hoje, o Nerd Nutella dá uma passada de olhos sobre os assuntos do momento e caga regra. É mais sobre posar de Nerd do que sobre ser Nerd. Se as pessoas se dizem católicas mesmo sem seguir os mandamentos da igreja para terem uma presunção de boa pessoa, agora as pessoas se dizem nerds mesmo sem ter o empenho necessário, para terem uma presunção de inteligência.

Em meio a uma pandemia, o Nerd Raiz está fazendo muita falta. Um Nerd Raiz move montanhas. Cria a Apple na garagem da sua casa, cria o Windows no porão da casa dos pais, cria o mouse em uma tarde de brainstorm com amigos. Seu conhecimento acumulado ao longo de décadas de estudos intensos faze surgir outputs maravilhosos e impensados. O poser que se diz Nerd e tem apenas um conhecimento superficial tirado de um vídeo de Youtube ou de uma reportagem de revista e nunca será capaz dos mesmos feitos.

Muita gente vem me perguntar “Nossa, como você tem paciência para ficar escrevendo essas coisas sobre covid?”. Aí é que está, quando você gosta de estudar, pesquisar, pesquisar e pesquisar não requer paciência, é um prazer. Isso é ser Nerd, ter prazer em aprender, ter prazer em aprofundar o nível de conhecimento básico que tem por aí, juntar as informações que tem e recombiná-las para criar coisas novas. Mas hoje o povo só quer saber da parte da criatividade. Só que sem muito conteúdo, não adianta ser criativo, você não monta nada.

Claro que tem criatividade envolvida, mas a grande estrela do processo é a quantidade de conhecimento profundo e consolidado. Pense nesse conhecimento como peças de Lego. O Nerd Raiz, quando acumula peças suficientes, é capaz de montar qualquer coisa com elas, até mesmo de recombiná-las e montar coisas novas. O Nerd Nutella foca apenas na criatividade, mas ela não adianta de nada se você não tem peças suficientes, nunca vai sair nada grandioso.

Um exemplo prático. Dois países no mundo eram conhecidos por serem grandes “produtores” de Nerds: EUA e Japão. Uma rápida olhada para eles e para as últimas notícias nos dão uma clara noção do processo de extinção do Nerd.

Os EUA conseguiram a proeza de criar a variante Espilon para covid-19, que, ao que tudo indica, não é muito agradável e pode ter a capacidade de escape de vacinas de RNA Mensageiro. Sim, a sua preciosa Pfizer, aquela à qual os brasileiros ficam agarrados tipo Gollum ao anel, pode se tornar uma belíssima bosta de vacina se a Epsilon conseguir dar o drible. Olha que maravilha, poucas mentes brilhantes conseguiram fazer funcionar o RNA Mensageiro e uma infinidade de idiotas pode ter afundado o barco com pouco tempo de uso.

O Japão… nem sei o que dizer. Foi declarado Estado de Emergência em Tóquio por causa do coronavírus. O país está vacinando mal, não tem nem 10% da população imunizada. É um país com muitos idosos e com boa parte da população vivendo em pequenos espaços, com aglomeramento. Ainda assim, eles decidiram manter as Olimpíadas. Membros de diferentes delegações já testaram positivo para covid, o que indica que “todos os protocolos de segurança” é o caralho, e, ainda assim, vão fazer o evento.

Parece que a popularização da informação, ao alcance de um clique, está fazendo com que as pessoas se contentem com pouco. Um exemplo didático: a pessoa quer saber como fazer um bom bolo de chocolate. Normalmente se pesquisa uma receita no Google e pronto. Uma pessoa que se diz Nerd, o Nerd Nutella, vai pesquisar review de produtos ou receitas e ver qual é o melhor. Um Nerd Raiz jamais faria isso.

Um Nerd Raiz primeiro pesquisaria sobre chocolate: seus tipos, sua composição química, sua reação ao calor. Depois sobre bolos: seus tipos, sua química, suas especificidades. Depois sobre batedeiras: a física que rege o processo, os ângulos, as formas. Depois sobre fornos: influência do calor, temperaturas ideais, velocidade de aquecimento. E por aí vai… O Nerd Raiz pesquisaria tudo que está envolvido no evento e, ao final, entenderia qual é a melhor forma de fazer um bolo de chocolate, por suas próprias conclusões.

Se tivéssemos uma quantidade significativa de Nerd Raiz olhando para covid, provavelmente já teríamos um insight, um breakthrough, um avanço daqueles que nos coloca dez anos à frente. Um salto quântico. Mas não temos. Todo o processo do Nerd Raiz virou uma “perda de tempo”, afinal, “tempo é dinheiro” e as pessoas atocham suas vidas com mil e uma tarefas, compromissos e eventos, acreditando que é assim que se encontra a felicidade.

Fazer as coisas do zero, aprofundadas, de um jeito considerado “demorado” parece ser incompatível com o frenesi atual para o qual o mundo te suga. Taí o resultado: o vírus vencendo o homem. O ser humano, que seria a ponta da cadeia evolutiva, errando sucessivamente, acreditando que tudo vai melhorar quando os contágios e as mortes diminuem, sem perceber, após um ano e meio, o efeito sanfona que essa merda provoca.

É gente tomando três, quatro doses de vacina. É gente escolhendo que vacina quer tomar (e errando nos critérios). É gente se recusando a tomar vacina. Não está funcionando. Queria que surgisse um Nerd Raiz daqueles bem fora da caixinha e criasse uma forma de imunizar a população via oral e despejasse tudo no Aquífero Guarani sem o consentimento de ninguém. Como faz falta o Nerd Raiz…

Para dizer que eu estou com discurso saudosista de velho, para dizer que o vírus tá indo embora ou ainda para dizer que está tão de saco cheio que está torcendo para o vírus: sally@desfavor.com

SOMIR

Quando eu era bem mais novo, eu temia que me chamassem de nerd. Era uma imagem terrível para se ter diante das outras crianças e adolescentes, presunção imediata de pessoa excluída. Não é como se eu pudesse evitar os comportamentos nerds, eram mais fortes que eu, mas eu tentava mantê-los em segundo plano, mais discretos, para ter uma chance de socializar.

Chegando mais perto da vida adulta, resolvi pegar o termo que me assombrava e assumi-lo como uma qualidade. Era um ato de desafio ao mundo, talvez até uma imposição do meu jeito de ser. Não me fazia feliz fingir que não era doido por acumular informação e extremamente curioso sobre temas como ciência e tecnologia.

Só que ao mesmo tempo que eu tinha juntado coragem para ser quem eu era e parar de ter vergonha dos meus gostos, a figura do nerd entra no centro da revolução da internet. Vários se tornam bilionários, e a rede de computadores nos conecta de tal forma que todos nos sentimos um pouco mais poderosos. E essa confiança começa a ser projetada no resto da sociedade.

Na hora que eu achei que estava assumindo o maior risco da minha curta vida ao perder a vergonha de ser nerd, ser nerd entra na moda. E por um tempo, as coisas vão muito bem, obrigado! Fica muito mais fácil fazer amigos e conseguir namoradas. E eu não tive que me forçar a agir de forma diferente do que realmente queria! Melhor: com tanta informação fluindo para todos os lados, nem precisava mais gastar quase todo meu tempo buscando novos estímulos para o cérebro.

Mas se tem algo previsível na vida, é que tudo tem data de vencimento. A onda de valorização ao nerd começa a criar imitadores. No começo parecia uma forma de lisonjeio: tem gente que acha a gente tão legal que quer ficar parecida. O problema é que o nerd não é um óculos ou um interesse pontual em gadgets. Muita gente que quis se aproveitar da onda de popularidade desse arquétipo de pessoa não tinha a base para cumprir as outras característica do nerd.

E aí, ao invés de desistirem, resolveram baixar o nível de exigência. Surge o fantástico nerd burro, o que não estuda, não tem quase nenhuma curiosidade, apenas tenta emular um visual e alguns interesses estereotipados para passar uma imagem que acredita ser popular. O nerd burro, ou o nerd nutella, não só sobrevive no mundo moderno como se torna a maioria.

O nerd raiz gostava de Guerra nas Estrelas sim, mas também gostava de astronomia, tecnologia, história (para entender as referências), tinha um background em matemática e biologia para tecer teorias malucas sobre os acontecimentos nos filmes… o nerd nutella só colocava a roupa da sua personagem preferida para ver a estreia do filme no cinema.

Para o cidadão comum, eles eram indiferenciáveis. Toda a parte do conhecimento que o nerd raiz tinha era impenetrável para ele mesmo, mas ter mania por uma história ficcional era bem mais fácil de entender. De uma certa forma, o cidadão médio tem esse mesmo tipo de mania pela sua religião, então entra rápido na cabeça dele. O mundo viu a ascensão do nerd à figura admirada, mas não tinha como diferenciar os originais das cópias.

E essa é minha teoria da conspiração, então leiam com um grau ainda maior de desconfiança, mas… eu tenho a impressão que essa leva de nerds burros é uma das causas da onda de negação científica que vemos atualmente. A humanidade adorava excluir os nerds, mas quando a coisa apertava, sempre foram eles que vieram com teorias e tecnologias que ajudaram a resolver problemas. Era uma relação de amor e ódio, mas tinha um certo grau de respeito pela informação que o nerd detinha.

Quando a imagem de nerd se populariza como uma pessoa qualquer que usa os “acessórios de nerd”, joga videogame e assiste filmes de ficção, sem necessariamente ter uma inteligência apurada e/ou grande conhecimento sobre um ou vários temas, as pessoas perdem o referencial de quem escutar. O nerd não é mais aquela pessoa que você tem que aturar porque tem informações que ninguém mais tem, é só mais uma moda.

Era meio óbvio de das características do nerd raiz, os nutellas iam pegar justamente as mais fáceis de emular. O problema é que isso enfraqueceu o discurso de autoridade de quem fazia a parte difícil. “Ninguém precisa escutar essas criançonas que jogam videogame o dia inteiro!”. Especialistas e estudiosos foram jogados na vala comum da nerdice dos posers, tirando aquele respeito que as pessoas tinham pela categoria como um todo.

Se o nerd é qualquer um com uma “cadeira gamer”, inteligência e estudo não fazem mais parte do pacote. E aí, é melhor ouvir suas informações da fonte que mais te agrada. A situação atual parece ser uma falha dos nerds: as pessoas que deveriam saber mais sobre o vírus e o que fazer para se proteger deram as informações erradas e estamos vivendo um ciclo de erros que cria mais e mais ondas da doença. Mas aqui eu defendo os nerds raiz: se você prestou atenção em quem estava estudando mesmo sobre o tema, a taxa de acerto é enorme.

Aqui no Desfavor a gente se esforça para escutar os nerds certos, por isso as informações estão bem consistentes com o passar dos meses de pandemia, com as melhores práticas para não se contaminar e gerar imunidade. A gente ainda valoriza quem estuda e provavelmente troca muito do resto da vida pela sede de conhecimento. Nada é de graça nessa vida: não é fazer pose de nerd que te dá os poderes do nerd. Por isso, é muito importante saber valorizar quem ainda paga o preço (caro) de ser viciado em conhecimento.

Eu sei que os falsos nerds irritam bastante, mas nunca deixe que eles te façam ignorar os nerds verdadeiros.

Para me chamar de nerd agora que eu me ofendo de novo, para dizer que nerd verdadeiro nem fala, ou mesmo para desejar um feliz Dia do Nerd: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Então quer dizer que sou nerd? Quer dizer, vou confessar que não curto “cultura estereótipo nerd”, essa coisa de gostar de ficção científica, star wars não é comigo! Me considero mais um “erudito” desses qualquer que tu encontra por aí, por ter lido trocentos livros de literatura clássica, e livros teóricos de filosofia, antropologia, psicologia e psicanálise na infância e adolescência e, enfim, agora na vida adulta, não sabe o que fazer com tanto conhecimento acumulado, já que não tem lá muita aplicação prática. Mas, essa parte de despertar a curiosidade aprofundada sobre determinados assuntos e ir lá pesquisar por conta própria, eu ainda mantenho em mim.

    • Não existe isso. Ninguém nasce sabendo nada. Tudo depende do tempo e esforço que você investe em aprender algo. O Nerd não é Nerd necessariamente por aprender rápido e sim por estudar até aprender.

  • “Seu conhecimento acumulado ao longo de décadas de estudos intensos faz surgir outputs maravilhosos e impensados”.

    Sim, aprofundar os estudos por prazer traz esse outro desenvolvimento: saber como relacionar conhecimentos de diferentes campos e aplicá-los ao caso concreto. Esse parágrafo vai no ponto e me emociona, pois ouvi a vida toda elogios irônicos a esse respeito.

    Sugiro ler dois livros: “Range”, de David Epstein e “Start-Up Nation: The Story of Israel’s Economic Miracle”, de Dan Senor. Eles vão na linha do que foi explicado aqui. Exemplos:

    No Range, eles contam sobre os tipos de inventores mais bem sucedidos: generalistas que agregam valor ao integrar campos de conhecimento e retirar uma tecnologia de uma área para outra. Conta que são esses Nerds raízes que sempre trazem inovações em maior quantidade e relevância para um concurso dado por uma empresa (acho que é a 3M, se não em engano), em relação aos especialistas, por mais qualificados que sejam. Talvez pudessem fazer um concurso assim para as vacinas agora, pagando uma boa grana quem sabe…

    No Start-up Nation, eles explicam que o maior benefício do serviço militar obrigatorio em Israel, baseado em conhecimentos multidisciplinares, é apurar Nerds raízes para o exército e aprimorá-los para a vida privada, pois os soldados lá se veem obrigados muitas vezes a achar sozinhos soluções para qualquer problema.

    Numa das situações em que o militar tinha que se virar era relacionado ao terreno largamente irregular e inóspito do país: pilotos de helicoptero sendo obrigados a pousar em locais com a grama super alta para ver o que eles fariam para conseguir pousar sem tombar o aparelho nem colocar toda a tripulação em risco durante uma situação de guerra para transporte e resgate de tropas (soube de uma mulher aqui no Brasil que morreu atingida pela helice do helicoptero quando o piloto fez um pouso de emergencia e o helicoptero ficou torto no chão).

    O militar mais esperto usou a hélice traseira do helicóptero para aparar a grama antes de pousar…assim, por conta de um treinamento que envolve ser inventivo e criativo, aliado ao conhecimento multidisciplinar fornecido pelo exercito, que você vê por lá startups que lançam produtos mais inventivos do mundo, sobretudo na área hospitalar e de segurança.

  • Acontece que pra um país produzir nerds, é preciso ter estudo de qualidade, por isso no BR não tem mais nerds. Vcs já viram nerd brotar em escola pública sucateada? Até as particulares andam umas merdas. Outro dia vi um vídeo da mãe reclamando que na escola do filho criança estavam debatendo poliamor. Em vez de eatudar o que presta, virou antro da lacração esquerdista.

    • Eu já vi, no período pós-internet.
      Quem tem internet tem a possibilidade de pesquisar qualquer coisa, acessar infinitos tutoriais e cursos gratuitos. Basta ter interesse.

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