O Embaixador – Parte 1

Eduardo observa seu celular desligar, levando com ele o aplicativo que o guiava pela estrada de terra naquele fim de tarde. Não que fosse de tremenda ajuda, afinal, há mais de meia hora parecia andar em círculos naquele mar de árvores e vegetação espessa no meio do nada. Mesmo assim, era alguma forma de se localizar.

Os faróis do furgão já se faziam necessários com o som poente, mas iluminavam apenas mais e mais quilômetros de descampados e fazendas virtualmente idênticas. Há muito tempo não via companhia na acanhada via rural. Era apenas a primeira semana do novo trabalho como entregador e já havia se perdido terrivelmente pela terceira vez. Senso de direção nunca fora seu forte, mas dado o aperto nas contas, era o único emprego que conseguira para se sustentar.

Já cansado pelos solavancos do caminho, resolve parar um pouco. Começa a imaginar seu chefe cuspindo fogo pelas ventas, certamente disposto a demiti-lo depois de tantas falhas em tão pouco tempo. Era o último pacote do dia, que se não fosse entregue logo, seria o último pacote de sua carreira. A noite começa a tomar conta dos céus, os últimos raios de sol se escondendo atrás das copas das árvores.

Ele desce do carro, resignado com o fracasso. Pensando agora, era óbvio que deveria ter uma bateria reserva para o celular com seu novo trabalho. Ou pelo menos um carregador que pudesse ser utilizado no carro. Um dos maiores talentos de Eduardo era perceber exatamente o que fazer quando era tarde demais, frase que escutara da última ex-namorada, palavra por palavra tatuada em sua memória.

Enquanto pensa como deveria ter chamado ela para morar junto porque ela claramente estava querendo um compromisso mais sério, segue em direção a um morro, na expectativa de uma visão melhor dos arredores, e quem sabe, uma ideia de caminho até a rodovia mais próxima. A inclinação do terreno queima suas panturrilhas, lembrando-o da promessa não cumprida de se exercitar mais naquele ano. Eventualmente, atinge o ponto mais alto, apenas para descobrir que fora algumas luzes muito distantes, aparentemente de casas nas fazendas locais, não há mais sinais de civilização.

A lua já está visível no céu, e com ela, uma série de estrelas que ele sequer sabia que estavam lá. Longe da poluição visual da cidade, havia algo de majestoso no firmamento. Por alguns instantes, se permitiu esquecer das dificuldades do dia a dia e apenas admirar o show que o universo o proporcionava. Se ao menos soubesse nomear algo além da lua cheia, provavelmente estaria curtindo mais o momento.

Talvez uma ou outra dessas mais brilhantes poderia ser um planeta. Eduardo demora um pouco para se lembrar de quais eram os mais próximos, voltando os olhos às mãos enquanto contava o caminho entre Sol e Terra. “Mercúrio, Mar… não… Vênus… Terra! Marte é depois, acho que nem dá pra ver…”. Com os olhos fixados num ponto luminoso que tinha quase nenhuma certeza de ser Vênus, algo se move na sua visão periférica. Um outro ponto de luz parece se movimentar. Ele sorri, imaginando que em compensação de um dia terrível do qual certamente emergiria desempregado, pelo menos conseguira ver uma estrela cadente. Sua primeira.

Eduardo se lembra de algo que sua vó disse, ou viu num filme americano, não tinha certeza: ao ver uma estrela cadente, a pessoa pode fazer um pedido. “Eu quero a Mariana de volta.” Ele suspira por um momento, e volta a pensar: “Não. Não adianta ela voltar se eu estiver desempregado morando na rua… eu quero um emprego.” Ele sorri esperançoso por alguns segundos, mas logo volta a uma expressão pensativa.

“Peraí, segura o do emprego… e se for um emprego ruim? Eu vou ser demitido de novo e a Mariana vai me achar um fracasso de novo. Pode ser um emprego bom que não seja muito difícil e não tenha muita pressão? Eu sempre fico nervoso com…”

Eduardo volta a olhar para a estrela cadente. Ela não está mais lá. Ele suspira decepcionado. Tenta se consolar com a ideia de que Mariana roncava, e que no final das contas nem gostava muito de ouvir as conversas dela sobre fofocas da empresa que trabalhava. Ele olha de volta para o Furgão, lanternas acesas na escuridão. Estava na hora de voltar para o mundo real. Ele desce o morro desviando do mato e espantando os mosquitos que começam a aparecer.

“Eu podia ter pedido para ganhar na loteria!” – Eduardo dá um tapa na testa. Derrotado, se aproxima do carro, cabisbaixo. Subitamente, a luz dos faróis desaparece. O painel do carro parece desligar também. A lua cheia permite uma visibilidade razoável, seus olhos já acostumados por observar as estrelas poucos minutos atrás. Por detrás de uma grande árvore na sua frente, surge uma luz poderosa, erguendo-se por sobre a copa até se tornar cegante. Ele tapa os olhos com uma mão, colocando o outro braço à frente de forma instintiva.

“Shshsha Bshasha Ushosh!” – Uma voz poderosa chega aos seus ouvidos, como se viesse de um megafone no céu. Mas a chiadeira não fazia muito sentido.

“Eu estou perdido! Não queria invadir sua fazenda!” – Eduardo grita.

“Oshush?” – Embora o som ainda não fosse inteligível, o tom de pergunta ficara claro.

“Ai… espíque… Brasil!” – Eduardo faz o seu melhor para se comunicar numa língua estrangeira. A luz continua forte demais para ele fazer senso de quem estava na sua frente. “Off.. farol?”, ele continua.

Silêncio. Aliás, Eduardo começa a estranhar como um helicóptero poderia estar sobre a sua cabeça sem fazer barulho nenhum. A luz estava pelo menos uns três metros acima dele. Ou trinta… distâncias nunca foram seu forte.

“Eu venho em paz, terráqueo!” – a voz do megafone finalmente faz sentido. Pelo menos até a parte do “terráqueo”.

“Apaga a luz!”

“Ah, merda… desculpa…” – ainda forte, a voz parece um pouco diferente dessa vez.

A luz finalmente cede, e em seu lugar Eduardo percebe um objeto metálico arredondado, flutuando silenciosamente sobre sua cabeça. A superfície perfeitamente lisa reflete a luz do luar, e até mesmo algumas das estrelas. O objeto é maior que um caminhão, alongado e prateado, impossivelmente estático no ar.

“Você é um alien?” – Eduardo vira filmes suficientes sobre o tema para ter confiança no que dizia.

“Por suas habilidades ímpares, você recebeu a honra de ser chamado pelo Grande Conselho Galáctico. Por favor, afaste-se de qualquer arma que portar sob o risco de ser vaporizado imediatamente. Obrigado!”

A situação começa a realmente pesar na cabeça de Eduardo. O choque inicial dá lugar a um medo instintivo. Sem pensar duas vezes, ele se joga dentro do furgão e fecha a porta. Tenta girar a chave desesperadamente, na esperança de fazer o carro pegar. Sem sucesso. Sequer ouve o barulho da partida. O objeto voador não identificado continua parado diante do carro. Eduardo começa a considerar que pode estar dormindo e que tudo não passa de um sonho. Ele fecha os olhos e começa a beliscar várias partes do braço na tentativa de acordar.

Som de batidas no vidro do carro.

Eduardo se volta para a direção do som e se depara com um porco o observando do outro lado da janela. Não um porco comum, mas uma mistura entranha de pessoa com animal. A pele é rosa, o focinho é inconfundível, mas os olhos são bem maiores. No meio da testa, cresce uma crina escura, atravessando rumo às costas como se fosse o corte moicano de um punk. As orelhas são pontudas como se esperaria, mas a esquerda parece tomada por um aparelho metálico. O que se pode ver da roupa dele parece feita de um material parecido com alumínio.

“Me ajuda! Abre essa porta e vamos logo!” – a voz é parecida com uma das ouvidas anteriormente, mas agora abafada pela janela do carro.

“Quem é você?” – Eduardo sente alguma calma vendo a criatura, porcos não são tão assustadores assim.

“Shserant, mas todo mundo me chama de Bronco. Eu estou atrasado demais, não dá tempo de bater papo, humano. Sai daí e vamos, senão eu vou perder meu emprego!”

“Vamos pra onde?” – Eduardo abre uma fresta do vidro para pode se comunicar melhor.

“Eu te explico no caminho. Eu estou com pouca carga no reator, eu tive um… rrrronc… imprevisto.”

Eduardo sente um cheiro horrível de bebida vindo do ronco ou arroto vindo do porco falante. Agora também percebe que a fala de seu interlocutor está um tanto quanto enrolada.

“Você está bêbado?” – Eduardo fecha o vidro um pouco mais, tentando disfarçar o horror na expressão.

“Eu navego melhor quando bebo. E foram só umas cinco ou seis garrafas de uísque humano… rrrronc… as crianças do meu planeta bebem mais que isso… já vai… rrrronc… passar!” – Bronco tenta abrir a porta do carro, e rapidamente consegue.

Eduardo observa a porta se abrindo e pensa que deveria ter trancado. Tarde demais. Ele ergue os punhos na pose mais ameaçadora que consegue imaginar. Bronco ri. O porco levanta os braços claramente humanoides e aponta uma arma na direção de Eduardo. Os punhos cerrados se transformam em mãos espalmadas denotando rendição. Não é o suficiente, Bronco aperta o gatilho, Eduardo vê um clarão antes de perder a consciência.

“Comida?”

“Não!”

“Comida!”

“Não! Se ele estiver mordido quando a gente chegar eu vou te deixar em órbita!”

“Glau quer comida!”

Eduardo acorda ouvindo um diálogo, a visão ainda borrada não consegue fazer sendo do que está diante de seu rosto. Com o tempo, percebe dois pequenos olhos negros centralizados num rosto muito redondo e peludo que o observam de volta. Um pequeno ser, basicamente composto apenas de uma cabeça extremamente grande em relação aos pequenos membros, ajoelha-se sobre seu peito. Eduardo está deitado numa espécie de maca, braços e pernas amarrados. O estranho ser tem uma boca larga, e dela se pronunciam uma infinidade de dentes afiados.

“Glau tem fome, porco não dar comida.” – a boca cheia de dentes se move, mas o movimento não corresponde ao som emitido.

“Porco é sua mãe, bola de pelo!” – a voz é claramente de Bronco, mas a posição de Eduardo não permite verificar de onde ela vem. Ao redor do ser que aparentemente se chama Glau, ele consegue enxergar uma série de monitores e projeções de símbolos incompreensíveis. A única imagem reconhecível é um modelo tridimensional de um corpo humano, ao redor do qual vários elementos visuais igualmente confusos aparecem e desaparecem em velocidade frenética.

“O que é mãe?” – Glau pergunta, olhando para Eduardo.

“O que aconteceu?” – Eduardo pergunta, sem muitas esperanças de uma resposta de Glau, mas torcendo para que Bronco dê a resposta.

“Mãe é… esqueci que esses bichos se duplicam. Mãe é alguém igual a você, mas mais velha e mulher.”

“Bronco?”

“Fica tranquilo, o Glau no máximo consegue comer um braço seu, ele é pequeno demais pra te comer inteiro!” – A voz de Bronco vem em tom tranquilizador, pelo menos na visão dele.

“O que é mulher?” – Glau pergunta novamente.

“Pergunta pra alguém quando chegar lá. Esses bichos devem ser unissex. Assim que a gente passar por essa nuvem de poeira, eu já vou aí te ver, humano!”

Glau se senta sobre o peito de Eduardo, e olha longamente para seu braço exposto.

“Me leva de volta, eu vou ser demitido!” – Eduardo tenta argumentar, um olho buscando por Bronco, outro mantendo Glau sob vigilância.

“Não se preocupa, humano. Você vai ter… rrrronc… um emprego bem melhor. Aliás… qual é o seu nome?”

“Eduardo.”

“Eduardo, a gente tem um probleminha. Eu estava meio sem tempo, o Glau aí ficava do outro lado da galáxia, aqueles imbecis do Conselho me deram um prazo ridículo… acredita?”

“Acredito, mas… que probleminha a gente tem?”

“Eu tinha que pegar outra pessoa na Terra, mas acabou não dando tempo, então eu peguei você mesmo. Mas não rrrronc… se assusta, eles não vão saber a diferença! É só dizer que seu nome é… é… peraí… ah, nem eles sabiam o nome. Pode dizer qualquer coisa.”

“Eles quem?”

“O Grande Conselho Galáctico. Se perguntarem, diz que você é o embaixador mais condecorado da Terra.”

“Embaixador?”

“Parabéns, você vai ser o embaixador da Terra no conselho! Uma grande honra!” – Bronco diz isso de forma animada.

“Ung…” – Glau faz um barulho estranho e fecha os olhos.

“Eu não sei ser embaixador! O que eu tenho que fazer?” – Eduardo fica ainda mais nervoso com a ideia.

“Não deixa entrar na sua boca!”

“Oi?”

Glau começa a tremer, e de sua bocarra, lança uma quantidade assustadora de líquido verde.

Continua…

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