Descontinuidade.

Gustavo olhava fixamente para os carros em alta velocidade, buscando um espaço para atravessar. A próxima faixa de pedestres estava há algumas centenas de metros de distância, e o prédio que ele queria visitar estava diante dele, separado apenas por quatro faixas de asfalto e uma calçada.

Os retardatários do penúltimo sinal verde andam devagar o suficiente para que os apressados do último os alcancem, criando um fluxo interminável naquele ponto. Ele considera por alguns instantes se render ao caminho mais longo pela faixa, mas percebe a abertura que esperava.

O último carro da fila, um Fusca azul, vem em baixa velocidade, mas logo vai ser alcançado pelos carros mais modernos. Gustavo calcula rapidamente e acredita que é sua chance. Ele dispara para chegar do outro lado. Infelizmente, Gustavo calcula mal: não dava tempo, e agora o Fusca está chegando muito perto. Se ele parar, corre o risco de ser pego pelos carros que vem atrás, se ele continuar, o risco de atropelamento é muito alto também.

Ele só deseja que o Fusca ande um pouco mais devagar. E funciona: é clara a desaceleração do veículo, o motorista deve ter percebido ele. Gustavo faz força nas pernas para dar a acelerada final, mas não percebe a diferença. É como se estivesse debaixo d’água, movimentos impedidos por uma força muito maior que o de costume. O carro fica ainda mais lento, e a resistência exercida pelo seu corpo igualmente.

Antes mesmo que possa fazer senso da situação, tudo parece estático. O Fusca parado no asfalto, motorista com os olhos esbugalhados e os braços como se estivessem forçando um desvio. Atrás dele, os outros carros da rua igualmente parados no tempo. Gustavo tenta virar o rosto para ver o que está acontecendo ao seu redor, mas os músculos não respondem. Ele também está impedido de se movimentar, campo de visão fixado na rua.

Sua mente, porém, continua funcionando na velocidade normal. O terror que começava a tomar conta ao perceber que poderia ser atropelado vai passando. Na verdade, nem consegue sentir seu corpo, quanto mais ter algum controle sobre ele. O silêncio é absoluto, o que se torna em paz depois de alguns minutos. Ele tenta encontrar explicações, mas só se lembra de cenas de filmes de super-heróis. Só que mesmo nelas, as coisas não paravam de vez… o que acontecia com ela era diferente.

Por algum tempo, tentou formular teorias sobre sua situação, o que o manteve ocupado por algum tempo. Sem referencial, já tinha perdido a noção de tempo, não sabia se estava assim há poucos ou muitos minutos. Ele pensou e pensou, até finalmente ficar entediado. Mesmo sem uma contagem precisa, ele percebe que se passam horas nessa condição. O tédio vai dando lugar à angústia.

Nada se move. Nenhum som. A mesma imagem dos carros parados em sua vista, e nenhum sinal de mudança. Gustavo até considera se as outras pessoas estão assim também, se foi algo generalizado, ou se foi só com ele. Vai notando mais e mais figuras no horizonte. Uma mulher de pele morena e cabelos negros observando a tela do celular, com um vestido azul de motivos florais. Andando em direção a ele, um senhor idoso, levantando a boina enquanto olha para o acidente prestes a acontecer. Num bar na esquina, apenas uma mesa ocupada por um homem muito gordo, banhas contidas pela cadeira de plástico amarela.

O tempo passa. Gustavo decora cada elemento da cena diante de seus olhos, conta quantos pontos de ferrugem tem na lataria do fusca, as pedrinhas soltas no asfalto. Relembra escalações do seu time desde que nasceu, pensa nas suas comidas prediletas, lembra da primeira namorada…

“Você está consciente?”

Uma voz vem de direção desconhecida, mas é o primeiro som que ouve sabe-se lá em quanto tempo, o que desperta uma reação desesperada de Gustavo:

“…”

Ele não consegue falar. Nada que dependa do corpo está disponível.

“Pensa no que gostaria de falar, com calma. Eu só estou ouvindo gritos da sua mente agora.”

“Eu… sou… Gustavo… eu estou vivo…”

“Olá, Gustavo. Meu nome é Chronos. Eu sou o agente responsável pela continuidade nessa realidade.”

“O deus grego do tempo?” – Gustavo começa a pegar o jeito de falar com a mente.

“Quase isso. E o Chronos da mitologia grega não era um deus. Era uma manifestação do conceito de tempo.” – a voz é poderosa, mas transmite segurança. As palavras são ditas de forma metódica e assertiva, como se fossem a leitura de um texto sagrado.

“Eu não consigo te ver, você pode vir para a minha frente? Eu não posso mexer a cabeça.”

“Eu estou na sua frente. A imagem que você vê é a última que seu cérebro capturou, e por falta de continuidade, é a que ele continua te mostrando.”

“O que aconteceu?”

“Pelo o que eu percebo da sua mente, você trabalha com computadores. Então, numa analogia que creio que você vá entender, o tempo está parado para uma manutenção programada.”

“Você parou o tempo para consertar alguma coisa, é isso?”

“Não tem nada quebrado, Gustavo. É parte do meu trabalho garantir isso.”

“E quando isso vai acabar?”

“Já era para ter acabado, mas eu notei uma pequena consciência num pequeno planeta… uma consciência escalando um time de futebol.”

“Eu fiquei entediado… mas… peraí, isso quer dizer que só eu estou vendo isso acontecer?” – a voz mental de Gustavo começa a ficar mais empolgada.

“Sim, a chance de uma desconexão dessas é pequena, mas acontece. Terráqueos parecem especialmente suscetíveis. Sinto muito pelo tempo que você ficou preso aqui. Pode ficar tranquilo que logo você volta à sua vida.”

“Não precisa, você acabou me salvando.”

“Como assim?”

“Eu estava pensando em segurar o passo para deixar o Fusca passar. Mas se eu fizesse isso, o Corsa atrás dele, que está vindo para a esquerda ultrapassar… tá vendo?”

“Verdade, o Corsa parece que vai te acertar mesmo. Infelizmente, você não pode voltar com a memória dessa conversa.”

“Espera… eu posso morrer! Peraí… você sabe se eu vou morrer, né? Você é o dono do tempo!”

“O meu trabalho é não saber o futuro. Eu mantenho a flecha do tempo andando na direção certa. Os humanos não me dão trabalho, mas outras civilizações já estão mexendo com tecnologia problemática.”

“Você vai me deixar morrer?”

“Eu não sei se você vai morrer.”

“Mas você sabe que o risco é enorme!”

“Não fui eu que atravessei fora da faixa, não?”

“E a punição é a morte?” – Gustavo diz desesperado.

“Eu não estou te punindo. Aliás, já estou me arrependendo de ter vindo me desculpar.”

“Não acredito que você vai fazer isso comigo, por favor… me deixa lembrar pelo menos de acelerar o passo.”

“Eu tenho que parar de ficar ajudando vocês, sabe? Um dia eu ainda vou me meter em problemas…”

Dias depois, num bar, Gustavo bate papo com os amigos:

“Pois é… eu estava atravessando a rua, estava vindo um Fusca velho, eu achei que dava para chegar antes, mas na hora não sei se o carro acelerou, eu achei que não ia dar mais… eu quase parei antes dele e deixei passar. Mas não sei o que deu na minha cabeça, eu resolvi arriscar do mesmo jeito… se eu tivesse parado, o carro que vinha atrás teria me pegado!”

Ele dá um gole na cerveja e continua:

“A mente funciona de forma misteriosa…”

Para dizer que perdeu seu tempo, para dizer que o serviço é sempre uma porcaria, ou mesmo para dizer que aceitava uma falha dessas para descansar: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas:

Comments (4)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: